quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
PARA LER: ANTÓNIO TELMO
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
PENSANDO À BOLINA, 26

O trilho argênteo da Lua
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
AFORISMOS, 16

76 – O Menino (Desejado) nasce na noite mais escura, a noite encoberta ou do Encoberto. Os pastores anunciaram o nascimento; os navegadores portugueses anunciaram a Idade Moderna.
79 – Uma das celebrações mais universais é o Natal. Porém, cada povo gosta de decorar a gruta à sua maneira; de sentir o bafo do que lhe está próximo; de escolher o ágape festivo sob a toalha apetecida na noite em que a Luz do mundo toca os pequenos luzeiros, em cada casa, iluminando de esperança mais um ano.
80 – Entre o verso da Ilíada «Terríveis são os deuses quando nos aparecem às claras» e a misteriosa naturalidade e simplicidade com que um ser divino se mostra como Homem, nascendo entre nós, estende-se a multiplicidade do mundo que, de tempos a tempos, se interroga mais alto, ora para constatar o poder (aparente) das trevas, seja para discernir , através de uns poucos, que o excesso de luz cega o que a não pode fitar. Por isso, em algum grau, há analogia do Encoberto português e a verdadeira natureza do Menino ou Cristo-Jesus.
sábado, 26 de dezembro de 2009
EDIÇÕES SERRA D'OSSA 2009

O Plutocrata, de Ernesto Palma
(p. v. p. € 8,00)
Cadernos de Filosofia Extravagante: Universalidades
(p. v. p. € 10,00)
O Plutocrata + Universalidades
(preço promocional: € 15,00)

O Canto dos Seres: saudade da Natureza, de Pedro Sinde
(preço promocional: € 10,00)

O Céu e o Quadrante: desocultação de Álvaro Ribeiro, de Pedro Martins
(preço promocional: € 12,00)

Filosofia do Ritmo Portuguesa, de Rodrigo Sobral Cunha
(preço promocional: € 8,00)
Pedidos para: serradossa@aeiou.pt
Portes de correio suportados pela Serra d'Ossa
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 44

Tomar a Pedra
Eduardo Aroso
Outro ano para tomar
A pedra dura do mundo,
Num olhar sem temor.
Torná-la macia na gruta
Mais escura onde labora
O incansável cinzel do amor.
Bem podes dizer aos outros
Das estrelas pelo céu fora...
Deixar arder o silêncio duro
Talhando o que na alma mora,
Sob as vestes ainda de ser aqui
Renovadas de esperança nesta hora.
Burilar a palavra, nascer da luz,
Fogueira de Natal a crepitar dourada...
Natal de 2009
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
RAZÃO POÉTICA, 6
Na coluna do meio, descem e sobem as palatais; na coluna da direita, as labiais; na coluna da esquerda, as dentais.
Este ajustamento perfeito à árvore sefirótica, pelas três colunas, pelos dez elementos, pelas vinte e duas consoantes, vem-nos mostrar, com o exemplo da língua portuguesa, que se enganaram de todo em todo os linguistas ao porem de lado os ensinamentos da kabbalah por incompatíveis com o rigor da ciência. Estamos aqui perante um dado positivo, que nos enche de confiança e de fé numa sabedoria que importa encontrar para que a ciência não fique só no dado e chegue a justificar-se a si própria.
Na língua portuguesa predominam as vogais e os ditongos. O ritmo é grave.
Depois da grande ruptura, no reinado de Manuel Primeiro, tem-se vindo progressivamente a perder a sonoridade vocálica e uma avassaladora consonantização da fala põe em perigo a própria subsistência da língua. Tal degenerescência pode ser explicada como uma reacção de defesa contra a acção dos vários regimes policiais que sucessivamente se abateram sobre os portugueses. O medo de ser percebido pelos que estão sentados na outra mesa é uma situação típica dos últimos cinquenta anos, o que prova ter sido apenas aparente o desaparecimento da Inquisição, pois reaparece noutras vestes o mesmo espírito adversário da liberdade.
Nas Gramáticas do século XVI, nos nossos primeiros compêndios de gramática, lê-se a apologia de uma língua em que todas as vogais eram sonoras, mesmo até as de fim de palavra, em contraste com as línguas do Norte da Europa, onde predominam as consoantes.
Câmara Júnior indica sete vogais no português, aquelas que podem formar uma sílaba tónica, aquelas que têm direito a ser chamadas de vogais porque comandam o ritmo grave do discurso. São o A, o É, o Ê, o I, o O, o Ô e o U.
Segundo Helmut Lubdtke, as vogais portuguesas dispõem-se na seguinte dupla escala
Numa e noutra direcção se formamos vários ditongos, cujo ciclo de geração se fecha e torna perfeito pelo ditongo ui/iu que liga os dois extremos.
Platão no Crátilo, e também no Theeteto e no Sofista, refere-se à vogal como àquela potência que circula entre as consoantes, as envolve e as penetra, enlaça umas com as outras. Os gramáticos medievais chamavam às vogais «potências». As consoantes, seriam os «actos» dessas potências.
Com efeito, podemos ver nas consoantes as formas que as vogais assumem conforme o ponto e o modo de articulação.
No primeiro, superior triângulo, explodem, no segundo incorporam-se em sopros, no terceiro vibram. Deste ponto de vista, que é de Platão, as vogais são a alma da língua. O filósofo grego refere-se ao ser em movimento, ao ser, o primeiro dos grandes géneros, na medida em que identifica ón a íon.
É esta também a razão por que não figura na árvore sephirótica. Estão em toda a parte e em parte nenhuma. Poderíamos, no entanto referir o A a keter, o I a tiferet e o U a malcuth.
O A, o I e o U formam o triângulo das vogais puras.
O leitor que nos lê é natural que, desde trás, tivesse começado a descrer de uma teoria dos fonemas que, embora assente em dados positivos irrecusáveis, se afigura no desenvolvimento e aplicação demasiado fantasista. Eis por que importa reflectir.
Não se trata de uma simbólica das letras, como à primeira vista se julgará, análoga à que se poderia construir utilizando, por exemplo, linhas ou cores em vez de letras. Não é uma simbólica, porque os elementos não são figuras sensíveis. Não são aistheta, mas noêtá. São direcções do espírito do homem, a imanência nele das formas transcendentais, que nada simbolizam porque são o que se simboliza. Podemos imaginá-las como traços repentinos, como grammai. Os elementos são indivisíveis e invisíveis. Só o visível simboliza.
Quando escrevemos, por exemplo, que o U exprime a essência da treva, já não estamos a falar do elemento U, pois ele não representa, mas é essência. Somos obrigados a simbolizar, porque nos situamos, em certo sentido, num ponto de vista exterior. O contacto imediato com o elemento, aquela visão directa das essências, a que se refere Platão na Carta VII, é que é o supremo conhecimento. Se conseguimos esse contacto, e com mais nada ele é possível, porque mais nada existe de não simbólico além dos elementos, senão Deus que os criou, formou e fez, a necessidade de haver símbolos apenas se põe como uma exigência da comunicação indirecta.
Tudo no Universo se organiza sobre os dez elementos. Para quem os conhece, as letras aparecem, não como símbolos, mas como o fundamento sem o qual o símbolo não é possível. Quando muito, o A, o I, o B ou o C poderão ser vistos como os símbolos de si próprios, aos quais terão de ser referidas todas as demais figuras sob pena de não terem sentido nenhum.
Daqui a importância de determinar a gramática secreta de uma língua, o modo como nela se manifestam e articulam os elementos e nela vivem.
António Telmo
terça-feira, 22 de dezembro de 2009
RAZÃO POÉTICA, 5
Definido assim o elemento como o vazio de um fonema, quantos são os elementos?
Postas de parte as vogais, por capazes de formarem por si só uma sílaba, dir-se-á que os elementos são tantos quantos as consoantes, o que levaria a fazer variar o seu número consoante o número de línguas existentes. Não é assim. Como parece ser é do seguinte modo: o B e o D são a dupla forma do mesmo elemento; também o G e o K, o D e o T, o F e o V, o S e o Z, o X e o J. Aos termos dos vários pares chama o grande fonologista Trubetzkoi «termos correlativos». Só há correlação através de um terceiro termo, nem audível enquanto som (o B e o P já não o eram), nem visível como letra, mas apenas inteligível.
Dispondo na árvore sephirótica os pares e as tríadas correlativos temos a representação desenhada na figura 2.
Haverá, neste ponto, leitores que não quererão aceitar a ideia de uma base invisível ou de um comum ou de um terceiro como constituindo a raiz dos termos correlativos. Terão, no entanto, de reconhecer que há só dez conjuntos de termos correlativos, dez e não onze, dez e não nove. Pela nossa parte, vemos no P a explosão e no B a implosão do mesmo elemento; é, como para os restantes duplos, a face exterior e interior do mesmo.
Para o referido Livro da Formação, «dez e não nove, dez e não onze é o número dos elementos»; as letras são vinte e duas. Ambas as séries, porém, desenvolvem-se dentro de géneros distintos. As sephirot são propriamente números. A propósito escreve G. G. Scholem em La Kabbale et sa Symbolique, p. 49: «Quando les kabbalistes parlent d’attributs divins et de sefiroth, ils décrivent ce monde caché sous dix aspects; mais quand ils parlent de noms divins et de lettres divines, ils doivent nécessairement revenir aux vingt-deux consonnes de l’alphabet hebreu, avec lesquelles est écrite la Tora, c'est-à-dire, selon leur idée, dans lesquelles son essence obscure est devenue communicable. Pour résoudre cette contradiction notoire, on a proposé plusieurs solutions.»
Nenhumas das soluções propostas passam pela determinação de dez elementos, subjacentes às vinte e duas consoantes, e a partir dos quais estas se desenvolvem. No entanto, a ideia poderia ter ocorrido a quem observasse que os dez primeiros números (as sephirot) são ligados na árvore por vinte e dois ramos ou caminhos, cada um dos quais é representado por uma consoante. O que perturba Scholem é a combinação no mesmo esquema da gramática e da aritmética, sem se ver bem como uma se liga com a outra.
Se os dez elementos são a base invisível comum a todas as línguas, já o número das consoantes que a partir deles se geram é diferente em cada língua, assim como a forma que adquirem. Na língua portuguesa as consoantes são vinte e duas. Consideramos consoantes aqueles sons que não são puramente vocálicos e que só existem tendo por suporte as vogais. Pomos de lado a variedade supérflua, que não desempenha uma função fonológica, isto é, só consideramos as consoantes capazes de se assumirem como traços distintivos.
Quer dizer: o português fala-se com vinte e duas consoantes multiplicadas pelas vogais; com elas é uma língua completa, sem uma delas seria uma língua corrupta. Apresentámo-las já distribuídas por conjuntos na árvore das sephirot. Veremos daqui a pouco como se desenvolverão nas correntes que ligam entre si as sephirot.
Antes disso, demoremo-nos algum tempo sobre os elementos. No triângulo superior distribuem-se as oclusivas. São os elementos instantâneos, que se manifestam com a rapidez dos relâmpagos. Os kabbalistas designam as sephirot superiores como keter (a coroa), hochmah (a sabedoria suprema) e binah (a inteligência).
Vem em seguida a esfera da Criação. As letras são sopros, puros espíritos. Por uma coincidência perturbante as iniciais de Jesus Cristo (Iésous Xristos) ocupam a sephiroth do meio, em hebreu tiferet (a beleza) onde convergem e de onde divergem as correntes.
Segue-se o mundo das energias, a esfera da Formação, constituída por letras vibrantes. Entre as duas nasais, o M e o N, vibra o som comum ~, vasto mar onde se reflectem os mundos superiores.
O R é a letra correspondente à décima sephirah, malcuth, o Reino do Padre Nosso que Estais nos Céus. Platão vê no R a expressão do movimento, por ser de todas as letras a mais vibrátil.
O que designamos por natureza é constituído pelos quatro últimos elementos.
Eis agora como os elementos se desenvolvem em consoantes. Com excepção do M, os elementos constitutivos da natureza têm cada um deles uma forma tríplice. O décimo é o R em cara, – em carro, r em ar. O RR é o denso, o pesado, o movimento que se arrasta, o movimento do réptil; o r constitui a vibração pura do elemento na sua forma subtil; intermediário é R, vibração líquida. Os três significam os vários estados da matéria, do sólido ao gasoso ou as várias formas que assume a energia física.
Tríplice é também o elemento seguinte, em Iesod. Na palavra Lua é a líquida por excelência, uma energia expansiva, mas volitante ou grave, conforme a referimos, a primeira consoante de final de sílaba que exprime o leve, o ligeiro, o ágil, o alado. Como o R exprime os três estados da matéria física, o L exprime os três estados da matéria subtil psíquica.
Ao desenvolverem-se cada um destes elementos em correntes tríplices, dirigem-se para o alto, atraídos pelo movimento rotativo das três sephirot superiores, espécie de movimento em si mesmo como o motor imóvel teorizado por Aristóteles.
O mundo físico e o mundo psíquico (o R e o L) formam, como dissemos, a natureza. Não são dois mundos separados, mas ligados entre si em M e N e na vertical.
M é o princípio de ambos, a Matéria, nem física nem psíquica, mas base de ambas. Nada de denso existe neste elemento, que é ele mesmo em si, em relação aos que lhe são inferiores. Repercute-se no subtilíssimo som ~ até N, que, por sua vez, responde com um eco. É uma onda de amor entre a Mãe e a Filha: Mas o N tem um outro aspecto, o nh, a força plástica pela qual se formam e condensam os seres psíquicos e os seres físicos, os filhos de Eros e da imaginação.
A relação seguinte é a da Natureza com o mundo dos espíritos. No centro da Árvore se cruzam as energias inferiores que aspiram à ideia, vibrando de amor, depois de se terem concentrado em Iesod (L), o lugar da Lua, as influências do alto (B, D e G), as potências da direita e da esquerda.
Assim, na árvore da língua portuguesa, não estamos perante sucessivas emanações a partir de Keter. Aristóteles poderia ter pensado a sua filosofia, contemplando-a, e também Leonardo Coimbra, Sampaio Bruno ou os mais recentes discípulos do primeiro.
António Telmo
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
AFORISMOS, 15

RAZÃO POÉTICA, 4
A gramática secreta da língua portuguesa consiste no seguinte: há dez elementos ocultos que se desdobram em vinte e duas consoantes visíveis, que por sua vez se multiplicam por sete sons audíveis – as sete vogais.
Para que o leitor não perca no caminho da leitura todo o sentido do que dizemos torna-se necessário dar algumas prévias informações, na hipótese de esse leitor não as ter já antes adquirido.
Com efeito, pertencem hoje ao domínio público certos dados exteriores da kabbalah hebraica, segundo os quais o Livro Sagrado terá vários sentidos sobrepostos em profundidade, do literal até ao anagógico, só apreensível este último por quem souber pensar as letras como significantes, senão como significados, trocando-as entre si, combinando-as em novas palavras, numerando-as, elevando-as até à ideia que elas representam. É um processo análogo ao apresentado por Platão no Crátilo. Os modernos linguistas nunca referem o Sepher Ietzirah ou o Sepher Hazzohar – o Livro da Formação e o Livro do Esplendor –, onde se expõe aquela doutrina, mas, dado o prestígio de Platão, o Crátilo não pôde ser escondido e, por isso, tem sido apresentado como a divina comédia da linguística antiga.
Os kabbalistas, apoiados no ensinamento contido naqueles dois livros hebreus, forneceram como chave de interpretação anagógica aquilo a que eles chama a Árvore Sephirótica. Representam-na habitualmente pelo esquema da figura 1.
figura 1: clique na imagem para a ampliar. Na figura faltam dois traços, que deveriam ligar a sephirah 1 à sephirah 2 e à sephirah 3.
São dez números e vinte e dois caminhos ligando-os uns aos outros; tantos como as letras do alfabeto hebraico. Segundo os kabbalistas, Deus manifestou-se ao mundo, que criou, formou e fez, por meio desses dez números e das vinte duas letras. Ao mundo da Emanação, constituído pelas três primeiras sephiroth, segue-se o mundo da Criação, formado pelo segundo triângulo, o mundo da Formação (terceiro triângulo) e por fim o mundo da Acção, o décimo número.No seu aspecto numérico, a Árvore Sephirótica corresponde exactamente à tetrada pitagórica, aos quatro primeiros números que somados perfazem dez, o número da totalidade completa em si. É no Crátilo que se encontra o mesmo ensinamento relativo às letras.
Era inevitável que tão estranha concepção viesse a ser considerada uma expressão da mentalidade mística, incomparável com a sóbria seriedade de uma verdadeira teoria da língua, à qual se pretende dar um fundamento científico. No período do romantismo, ainda houve linguistas que tentaram atribuir significados às letras e aos fonemas. A ligação da origem das línguas feita por Herder às onomatopeias e interjeições deve-se talvez às sugestões provindas da kabbalah. Todavia, Ferdinand Saussure acabou definitivamente com as pretensões de certos linguistas ao considerar completamente arbitrária a relação do significante com o significado. Curiosamente, foram os estruturalistas, que se dizem discípulos ou continuadores de Saussure, que encontraram a sua ideia de estruturas fonéticas e de traços distintivos na própria kabbalah. Benjamin Lee Worf declara ter recebido o primeiro, decisivo e sério impulso no livro do teósofo Fabre d’Olivet, A Língua Hebraica Restituída, e nas árvores de Noam Chomsky é possível ver a remota projecção da árvore sephirótica.
De tudo isto se falará adiante. Para já, o que nos importa é verificar que a língua portuguesa se desenvolve, como aliás todas as línguas, sobre dez elementos simples, que, por sua vez, se desdobram em vinte e duas consoantes, exactamente os dois números que organizam a árvore sephirótica.
O leitor perguntará: como dez elementos e vinte e duas consoantes? É isso que nos propomos em seguida mostrar.
Diga-se primeiro o que se entende por «elemento».
A designação de «elementos» dada por Platão e restantes filósofos gregos às letras do alfabeto encontra-se também no Sepher Ietzirah. Elementos e não fonemas. Dizem os historiadores da linguística que os antigos gramáticos não distinguiam as letras dos fonemas. É completamente falso. Platão, por exemplo, distinguia-os tão bem que só considera fonemas as vogais. Aconselha no Filebo, como se estivesse a criticar os foneticistas do século XIX, que se procure determinar a indefinida variedade sem termo da voz humana. Entre o uno do som e o seu múltiplo, deve-se sim pelo contrário determinar os grandes géneros que, segundo ele, são três: o das vogais, o dos áfonos e um terceiro constituído por sopros e vibrações. Esta divisão corresponde à dos vários mundos indicados na árvore sephirótica, como veremos depois. É, em termos modernos, a das oclusivas (B, D, G, etc.), das fricativas (F, V, X, J, etc.), das vibrantes (R, L, etc.), e a das vogais.
Como dissemos, só as vogais são vozes. Para a consoante ser fonema, tem de apoiar-se numa vogal. Em si não tem som, é um elemento puro, um simples e um indivísivel. Será por esta mesma razão que o alfabeto hebraico é constituído só por consoantes, vinte e duas.
Está aqui uma noção decisiva. De se aceitar ou não como princípio da língua o elemento, depende a orientação da linguística. Os modernos, para os quais a matéria-prima de uma língua é o fonema e não o elemento, isto é, que consideram a sílaba a unidade mínima, desenvolveram um tipo de «ciência» radicalmente diferente, que fatalmente viria a subordinar a linguística, vendo nela um capítulo da semiótica, tal como foi definida por Saussure. O homem, diz-se então, pode utilizar fonemas, ou desenhos, ou cores, ou qualquer outro sistema de sinais para comunicar o que pretende comunicar. As línguas são espécies de um género que é a linguagem, le Langage.
Se, porém, é um indivisível ou um invisível que constitui o fundamento material da palavra, o homem não o utiliza, fala-o. É dele que a palavra emerge. Não é o outro que a linguagem vai colher para lhe dar sentido. Ele é o próprio sentido e, por isso, tudo se passa como se não tivesse sentido nenhum.
(continua) António Telmodomingo, 20 de dezembro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 43
a António Telmo
Em tempos dediquei um volume de “Estudos Gerais” a quem quisesse dizer-se meu discípulo. Comecei pelos estudos triviais de gramática. Vejo agora com alegria que só o António Telmo chegou enfim a prestar-me atenção. Por isso me significo muito grato.
Muito esperei do grupo de colaboradores da “Escola Formal”, mensário de ensino, para não dizer de doutrina. Vi de número para número acentuar-se a intervenção crítica, polémica, ou bélica, em um periódico que mais me parece digno de intitular-se “Quartel General”. Os temas não aparecem racionalmente programados, as teses não aparecem explicadas de modo a persuadir e convencer os ignorantes, os teoremas não se realizam na evidência das figurações geométricas, como seria exigido pela acepção de tão nobre termo helénico. Só o António Telmo, figurando na Árvore Sefirótica a sua doutrinação fonética, parece respeitar a essência do que para Pitágoras, e até para Euclides, se chama verdadeiramente um teorema, apesar da indignação de Hegel no seu grande livro de “Lógica”.
Pena é que o António Telmo continue a descuidar-se, ou a confiar no cuidado de outros, quanto à revisão das provas tipográficas, deixando que os maus espíritos, ou os egrégores, maculem a expressão escrita da sua inteligência iluminada, ou inspirada. A “Escola Formal” tem sido, sob o aspecto tipográfico, uma lamentável calamidade!... É o caso, que muito bem sabemos, de quantos se recusam a considerar a gramática, – tipos e letras, – como a primeira das artes.
Com longa e profunda amizade pelo António Telmo, sincera estima por sua Esposa e seus Filhos, queira aceitar esta oportuna e prestimosa carta do
PENSANDO À BOLINA, 25

Manifesto Contra a Televisão [3.ª parte]
Era preciso adormecer gradualmente a imaginação aos homens, tão gradualmente que eles nem reparassem. Tendo em conta que imaginar era criar imagens, ocorreu-lhe que uma boa forma, se isso fosse possível, seria dar-lhes as imagens prontas, em vez de os deixar imaginar ou criar as imagens. Já sabia quais eram os fins, mas ainda não via os meios. Foi dormir com isto em mente. Foi num sonho que obteve a sua resposta. Quando acordou já sabia que era preciso criar uma máquina de fazer imagens, de tal modo poderosa que prendesse a si hipnoticamente os homens. Não disse nada a ninguém, pois sabia que seria alvo de chacota. O seu trabalho agora era apenas lançar esta ideia de uma máquina que construísse imagens em movimento naquele domínio em que os homens captam as ideias. Pode o leitor estar a interrogar-se por que razão não procurou o próprio demónio criar uma tal máquina. Ora, é que os demónios não criam, estão proibidos de criar desde que caíram. A sua missão é apenas “descriar”, isto é, destruir, levar o homem, incitar o homem à destruição. Destroem os demónios aquilo que os anjos fazem; numa palavra, a sua missão é destruir a criação. Ora, está então visto que um demónio não pode criar, nem sequer uma máquina que sirva para destruir. Pode, isso sim, instigar os homens, sugerindo-lhes algumas ideias. Há ainda uma outra razão evidente: os demónios podem entrar nos homens e até na natureza, nos animais ou nas plantas, mas eles mesmos não são materiais e por essa razão não podem também interferir materialmente.
Adormeceu novamente e enquanto dormia dormiam também dois irmãos simpáticos e bastante criativos; por ironia, esses irmãos tinham o apelido “Luz”. Digo por ironia, porque o novo invento iria manipular a luz para fazer imagens. Foi nesse sono que os dois irmãos receberam a ideia de dar movimento a imagens estáticas; é claro que não davam movimento, porque só o motor imóvel é a fonte do movimento. Tudo se passava por um acto de ilusionismo: manipular as imagens com a velocidade, ludibriando aquele que vê, enganando-o, mentindo-lhe, fazendo-o “ver com os olhos” as imagens paradas como se estivessem em movimento. Todos sabemos que acreditamos no que vemos…: vi com os meus próprios olhos, vi com os olhos que esta terra há-de comer. O grau maior de acreditar no que se vê é o do “olho do intelecto” ou “do coração”, mas isto seria outra história. Certo é que o demónio viu o que iria a acontecer, viu que tinha encontrado a solução: o invento que iria desanimar ou tirar a “anima” aos humanos estava mesmo ali; um aparelho de destruição massiva. Foi um momento sublime, tanto quanto se pode falar assim de um demónio. A humanidade estava perdida, desta vez era possível com um só aparelho manipular a humanidade inteira; “já não era necessária uma legião, como nos tempos de Cristo, pensou maravilhado – basta um só, basto… eu!” O leitor dispensa-me, é certo, do resto da história. Estamos bem familiarizados com ela. Sampaio Bruno chama ao “eu humano” o “último Satã”. Isto necessita de uma hermenêutica que o leitor também não deixará de realizar, sem se deixar cair num neo-orientalismo barato ou fácil, porque o Fernando Pessoa também diz neste sentido muito preciso e numa oração maravilhosa: “Senhor, livra-me de mim!”
sábado, 19 de dezembro de 2009
CARTAS DO EDITOR, 2
excerto fac-similado da carta de Álvaro Ribeiro: clique na imagem para a aumentar
____________
Amanhã, será aqui publicada uma carta inédita de Álvaro Ribeiro, dirigida a António Telmo aquando da publicação, na revista Escola Formal, do artigo Gramática Secreta da Língua Portuguesa, que esteve na origem do livro homónimo, de 1981, que o desenvolve, e que viria a ser integrado em Filosofia e Kabbalah, de 1989. A publicação da carta antecede, de muito perto, a do próprio estudo de António Telmo, que, durante a próxima semana, será dado à letra de forma nesta página. O editor permite-se chamar a atenção do leitor para a carta do filósofo da razão animada. Nela se revelam as ressonâncias que o escrito do discípulo causou no espírito do mestre. Mas a missiva vale também como um importante documento, porventura surpreendente, porventura impressionante, decerto indispensável a quem se dedique à feitura da história da filosofia portuguesa.
PENSANDO À BOLINA, 24

Manifesto Contra a Televisão [2.ª parte]
Estava ele a cogitar como é que podia deixar o rame-rame do dia-a-dia, as pequenas posses e fazer uma coisa maior, em grande. Para isso observava o comportamento dos homens e o modo como os seus colegas, os outros demónios, agiam.
Rapidamente se apercebeu que quase todos caíam num erro: não atacavam o homem a partir de dentro, mas a partir de fora. Vou-me explicar: um procurava convencer os homens de que não havia Deus, outro, mais arguto, procurava convencê-los de que não havia diabo, outro, que não havia moral. Tudo isto eram coisas exteriores ao homem e que, é certo, produziam os seus efeitos, mas era preciso chegar ao cerne, pois por este modo apenas se estava a actuar “fora” do homem. Era preciso actuar no seu íntimo, era preciso roubar-lhe alguma coisa, adormecer qualquer coisa nele. Pensou, pensou… era difícil. Tudo aquilo estava a ser feito por demónios com pouca imaginação. E foi aí que lhe ocorreu: a imaginação! É isso mesmo! Lembrou-se que um seu colega tinha começado um trabalho em tempos em que procurou convencer os homens de que a imaginação era a louca da casa, isto é, era a causa dos desvarios dos homens. Opôs à imaginação a razão e convenceu-os de que pela razão é que iriam. Mas esse trabalho não chegou a bom termo, que, no caso, porque falamos de demónios, era mau termo. Os poetas logo começaram a opor-se a esta ideia.
Era por ali, mas seria preciso intervir de outro modo. Ele sabia que o seu colega tinha visado, destruindo a imaginação, criar um sistema no mundo inteiro apenas regido por princípios da razão, é que ao separarmos a razão da imaginação tornamos esta última apenas um formalismo vazio que tudo aceita; os sistemas totalitários tinham nascido daí, mas isso já passara, apesar do sucesso que tiveram entre os demónios. O seu colega era estudado na história como um caso exemplar, mas certo certo é que já quase ninguém se lembrava dele.
Fechou-se na sua cela ascética e começou a maquinar – digo maquinar porque os demónios não meditam, maquinam.
Voltou a pensar na imaginação e percebeu que se tratava de uma força colossal. Dominando-a poderia fazer o que quisesse com os homens. O erro do seu colega foi não ter conseguido chegar às massas; era preciso encontrar qualquer coisa tão poderosa que começasse de baixo para cima. Esta expressão na sua mente significava também que era necessário que o reino demoníaco se começasse a infiltrar, a partir de baixo, para conquistar os céus, tal como em tempos fizeram com a torre de Babel, cujas fundações estavam assentes mesmo onde terminava o inferno; os trabalhadores que edificaram as fundações sentiam um estranho cheiro a enxofre e um calor que não sabiam de onde vinha; nem sonhavam que estavam mesmo por cima do inferno.
ANTÓNIO QUADROS, IPSIS VERBIS

Sobre o grupo da Filosofia Portuguesa "Desapareceremos para sempre do mapa, como dizem os augures da desgraça, ou acabará enfim por vencer a razão portuguesa, a filosofia portuguesa, o pensamento de Portugal, expresso afinal pelos melhores, de entre os portugueses deste século?" António Quadros, in Manuel Gama «Pensar a Europa a Partir do Movimento da Filosofia Portuguesa»
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
PENSANDO À BOLINA, 23

Manifesto Contra a Televisão [1.ª parte]
O título é um isco e por isso aqui me penitencio. É que eu queria apenas chamar a vossa atenção para a história que se segue. Podem tomá-la apenas por uma alegoria, podem tomá-la pelo panfleto de um louco, mas não podem tomá-la por uma brincadeira.
Manifesto contra a Televisão
Agora mesmo, nesta hora em que vos escrevo, ela está ali, pendurada num suporte fixo à parede num lugar alto, para obrigar as gentes a olhar para cima. Ali, precisamente naquele lugar, esteve já a imagem de Santo António, agora desaparecida.
Estamos no fim dos tempos. Os homens não acreditam, porque são tão estúpidos que nem sabem que eles mesmos vão morrer. Julgam-se eternos, apenas pela razão de que não perdem tempo a pensar nisso. O mundo, tal como o temos, não é eterno, é composto de mudança; mudanças há que são tão grandes que são como uma ruptura ou parecem tal. É assim que vai ser.
Nos tempos do fim, o mundo, os homens, os animais, as plantas e até as pedras, estão cansados; a criação está farta de sofrimento, está farta de mudança, pressente no ar que qualquer coisa está para acontecer. E está.
Nestes tempos, como em nenhum antes, andam os demónios à solta. Não, não se trata de uma metáfora. Os demónios andam mesmo à solta, possuíram já uma boa parte dos homens; quando não de um modo constante, pelo menos com intermitências.
É para vos contar a história de um desses demónios que este manifesto é escrito. Estou certo que só os loucos perceberão de que se trata, mas isso também é um sinal dos tempos: só os loucos são lúcidos. Os outros, julgando-se equilibrados… pobres coitados, vivem num cárcere.
Um dos demónios que mais sucesso teve e, ao que parece, terá é o que inventou aqueles aparelhos que formam imagens e as põem em movimento: as máquinas projectoras de filmes, as televisões, os computadores e as máquinas holográficas. O deus dos demónios dá-lhes como missão virem à Terra, que é o purgatório entre o inferno e o céu e onde um e outro começam (na verdade, este purgatório já foi quase todo tomado pelo inferno, mas isso fica entre nós), para possuírem o maior número possível de homens.
Por que foi dada esta missão aos demónios é coisa que não se sabe, é, aliás, coisa, que nem eles mesmos sabem; mas cumprem-na como qualquer um de nós cumpre a missão que sente na alma ou apenas como quem pica o ponto no trabalho. Há demónios mais empenhados, há demónios menos empenhados; a burocracia e a obrigatoriedade do trabalho são obra de um demónio genial que fez tanto sucesso que foi adoptada mesmo entre os próprios demónios.
Em todo o caso, o demónio de que vos quero falar é um daqueles que gosta do que faz e quer desempenhar o seu trabalho o melhor que puder. Não é tanto para ‘tirar’ um excelente na sua avaliação, mas porque realmente gosta do que faz, quase poderia dizer, ama o que faz, se fosse possível dizer que um demónio ama.
(continua)
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
PALAVRAS QUE FAZEM VER, 15

[Álvaro Ribeiro e a transformação dos sentimentos pela arte]
“O instinto, pela sua interioridade corpórea, nem sempre se apresenta à superfície da consciência, e mais dificilmente projecta uma imagem que o torne consciente. Só por indícios e vestígios é que o psicólogo pode descobrir o instinto reprimido, mas a técnica da descoberta já está muito aperfeiçoada pela psicologia das profundidades. Se a doutrina de Freud ganhou fácil e rápida celebridade por conter um requisitório contra a repressão daquele instinto que é objecto da maior hostilidade social, e que portanto mais obriga o homem ao vício da hipocrisia, certo é também que a insatisfação de todos os outros instintos situa a alma humana numa indeterminação doentia de que só as imagens podem dar libertação.
Na relação do instinto com o sofrimento, e do sofrimento com o sentimento, segundo um ritmo biológico que se transforma em rito psicológico, viram alguns escritores a origem das artes rítmicas: da dança, da música e da poesia. Esta origem ctónica, tão apropriada ao pessimismo alemão, foi, aliás, lucidamente descrita por Frederico Schiller, conforme nos é dada notícia em A Origem da Tragédia de Frederico Nietzsche. A arte transformadora dos sentimentos – dos maus em bons sentimentos, como diria um moralista, ou dos sentimentos depressivos em sentimentos exaltativos, como diria um político – pode ser efectivamente aplicada na regeneração sentimental e mental dos delinquentes, se for praticada em ambiente dominado também pelas artes plásticas.”
Álvaro Ribeiro (excerto retirado de A Razão Animada, INCM, 2009)
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 42
Cynthia Guimarães Taveira
Neste blogue diferente, porque possui a marca da elegância, Pedro Martins, na rubrica “No Coração da Arte”, foi escolhendo, texto a texto, imagens da nossa pintura. De uma pintura que praticamente já não se faz. Isso, se calhar, foi choque para alguns porque hoje o bom gosto parece ser chocante e há até quem lhe chame “Kitsch”. Ou então há quem argumente que o bom gosto é relativo. Para alguns, ele é evidente; no entanto, para outros, ele nada mais é do que uma falha na educação. Passo a explicar. Por altura da Cimeira Ibero-americana em Portugal, há umas semanas, portanto, encontrava-me eu a rever um longo texto no computador quando, na televisão, transmitiam parte dessa cimeira. Completamente embrenhada no que estava a fazer, começo a ouvir, ao longe (porque a televisão estava com o som muito baixo) música clássica tocada com uma alegria contagiante. Procurava, em vão, concentrar-me no que estava a fazer, mas aquela música era mais forte, e decidi parar, para ver e ouvir o que estava a acontecer. Surpreendentemente, quem tocava eram jovens. Jovens que tocavam com tanta alegria que a própria música transmitia isso. Alguma coisa passava deles para aqueles instrumentos. Porque a música tem esse dom de nos dominar, fui ficando alegre também, mal sabendo que, no fim, me esperava um mar de lágrimas (hoje as lágrimas de emoção são muito mal vistas, elas normalmente só aparecem em frente às câmaras quando morre uma estrela de Pop, Rock ou de futebol). No fim, a surpresa: aqueles jovens de vinte e poucos anos ou menos tinham sido todos retirados das ruas miseráveis da Venezuela e tinham sido educados pela arte. E mais uma vez senti que havia algo de profundamente podre na nossa educação. Aqueles jovens eram sensíveis à dita música clássica porque tinham sido educados assim e por esse caminho.
Cá em Portugal há, ou antes, havia, porque se zangou e com razão com o país, alguém que tentou fazer o mesmo, associando à arte a vertente da educação pela natureza. Falo obviamente de Maria João Pires, mais do que uma grande pianista, uma mulher vinda de um futuro que nada tem a ver com o futuro que nos querem impor. É claro que Maria João Pires deve ter sido considerada pelas nossas elites políticas (que estão sempre associadas a outras elites artísticas altamente duvidosas) como sendo uma excêntrica, uma louca e quiçás uma patetinha. Fazer uma casa no meio de nada, num meio rural e interior, onde as crianças podiam ser educadas nas artes e no respeito e amor pela natureza, não mereceu qualquer resposta de aprovação ou qualquer incentivo que se notasse por parte de abutres que nada percebem sobre a condição humana. E a visionária, tal como Agostinho da Silva, partiu para o Brasil porque lá há espaço e ainda há quem sorria perante as ideias loucas de um futuro diferente.A Orquestra Sinfónica da Juventude Venezuelana Simón Bolívar, sob a direcção do maestro Gustavo Dudamel
A ideia de educação está intimamente ligada à ideia que temos de futuro. Se olharmos para os programas e currículos dos nossos 1º, 2º e 3º Ciclos e olharmos com olhos de ver, nota-se perfeitamente a marca do positivismo do século XIX. Estão lá sempre, em qualquer que seja a disciplina, o facto, a prova, a experiência, a comprovação, o argumento científico. A História é dada como um conjunto de factos: há poucos dias, pediram-me para sublinhar num livro de História aquilo que era mais importante – porque, por estranho que pareça, os nossos jovens não sabem fazer resumos -- e dei por mim a sublinhar tudo. Tudo era importante porque a História era dada como um conjunto de factos pegados uns aos outros com total ausência de narrativa. O grande relevo, é claro, está na ciência, biologias, físicas, químicas, tudo isso é dado com grande vigor, pormenor e grande avanço (a comparar com aquilo que aprendi). As artes e letras são meras consequências, satélites de uma civilização que só se tornou grande e poderosa à custa da tecnologia , e são leccionados no primeiro ciclo por professores satélites e mal pagos em horário infantil pós-laboral, sem incentivos e sem materiais. A natureza está totalmente ausente porque, se calhar, não é necessária no futuro, ainda estou para saber como.
O futuro que imaginamos é feito de robots e chips e a natureza só pode ser preservada à custa da tecnologia com painéis solares, reciclagens complicadas feitas em fábricas, electricidades vindas de motores transformadores.
Chorei ao ver aqueles jovens tocar, porque a arte e a natureza são as únicas vias para uma educação melhor, até porque estão intimamente ligadas. A falha de ensino é uma falha antropológica porque, como nos ensinou António Quadros, “A Antropologia precede a História”. Se educássemos o bom gosto nas crianças (sem relativismos teóricos), se as fizéssemos sentir e amar a beleza que há numa flor e a beleza que há numa flor pintada, ela intuitivamente percebia para que tinha nascido. A harmonia está a um passo e foi por isso que eu chorei, se calhar ingenuamente, embora as lágrimas fossem tão verdadeiras como a dor do mundo.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
AFORISMOS, 14

domingo, 13 de dezembro de 2009
CARTAS DO EDITOR, 1
EXTRAVAGÂNCIAS, 41
Pedro Sinde
Nem de propósito e a propósito do artigo mais recente de António Carlos Carvalho, ia eu hoje a passar numa livraria na baixa do Porto quando vejo um livro intitulado: “Casas em entornos naturais”. Voltei a olhar, pensando que lera mal o “em” por “en”, um erro de simpatia com a língua portuguesa perfeitamente justificável. Não. Era mesmo português porque estava escrito depois “naturais” e não “naturales”, como deveria ser se fosse castelhano.
Na dúvida, perplexo, cheguei a casa e procurei nos meus dicionários: No Lello, o meu amado Lello, não existe nada a não ser derivados de “entornar”; no Dicionário da Academia (ouço já os apupos… não, eu não gastei um tostão com este “dicionário” – é assim que se auto-intitula esta coisa – foi uma generosa oferta): nada, a não ser o mesmo “entornar”. Em desespero, consulto um dicionário prestigiado de português do Brasil, o “Novo Dicionário Aurélio”: aí está! Num dicionário de português do Brasil existe a palavra “entorno”. Afinal não é castelhano, é “português”! Talvez seja apenas uma coincidência e se trate de um “castelhanismo” que existe no português do Brasil, mas não no de Portugal.
O que é perfeitamente aceitável, naturalmente. Esta palavra não foi definida pelo acordo, mas muitas outras foram e, isso sim, é de todo inaceitável. Fernando Pessoa tão citado conforme as conveniências de uns ou de outros, dizia isto, textualmente: “A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado NÃO TEM (o destaque, é claro, é meu) direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito.” (Fernando Pessoa, “A Língua Portuguesa”, Assírio, p. 90).
Pessoa aceita que haja um acordo ortográfico, mas apenas para os documentos de Estado, nada mais. De resto, naquela época havia, de facto, uma profusão de grafias e, de algum modo, fazia-se sentir a necessidade de ordenar um pouco esse campo. Nada disto se passa hoje; Pessoa seria, certamente, integralmente contra este acordo, que não se devia chamar acordo, que etimologicamente designa um ato [sic] feito com o coração e este é apenas uma abstração [sic] feita a pensar em mercados e coisas escuras assim. E por falar em etimologia, a tónica empirista que preside a este acordo está a matar a etimologia e, por isso, a Tradição. Quer dizer, se passarmos a tendencialmente escrever como falamos, vamos omitir letras que nos ajudavam a identificar a etimologia da palavra; pois, é verdade que não é nada democrático que uns poucos saibam e uns muitos ignorem, é melhor que todos ignoremos, pois claro, a teoria dos vasos comunicantes (água em cima num vaso, água em baixo no outro, ligamos um ao outro e ficam iguais em termos de quantidade; perfeito: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, … todos iguais, todos diferentes). Tudo isto não passa de um artifício falso, de uma camisa-de-forças.
Se não soubermos a etimologia das palavras, não saberemos o que estamos a dizer quando dizemos, desconheceremos a sua origem, a nossa história, a nossa memória. Este acordo é em tudo contra a etimologia, porque privilegia a oralidade (haveria, de resto, que perguntar qual oralidade, porque cada um destes países tem uma oralidade maravilhosamente diversa. A propósito do plebeísmo deste acordo, cito o mesmo Pessoa, como se antecipasse em quase 100 anos o que agora está a acontecer: “A ortografia etimológica é a expressão gráfica da continuidade da nossa civilização e da nossa cultura com a civilização e a cultura dos gregos e dos romanos, em que aqueles tiveram origem e têm vida.” (Esta ideia está expressa, de resto, consequentemente, na “Mensagem”, quando Pessoa faz correr os impérios como uma sequência que Portugal vem a herdar espiritualmente – a luz vem do oriente grego desembarcar em Lisboa com o mito de Ulisses; assim Pessoa passa um pouco por cima de Roma, todos sabemos porquê). Este acordo desrespeita esta maravilhosa diversidade, é apenas mais um elemento desta homogeneização a que por todo o lado assistimos. Quem quer ler o espantoso “brasileiro” de Suassuna em versão “pós-acordo”? Para não me alongar mais sobre este tema aqui, sugeria esta ligação: http://novaaguia.blogspot.com/2008/01/ortografia-acordo-ou-desacordo.html É claro que não se espera que uma língua permaneça sempre igual; ela é um organismo vivo e, como tal, vive no tempo e do tempo. Mas estas alterações eram feitas sabiamente pelo povo na oralidade, integrando com suavidade, por exemplo, os estrangeirismos. Mas a ação [sic] sutil [sic] da elite é apenas uma pobre atuação [sic] no espetáculo [sic] da economia, o único valor que hoje é aceite como “motor”; ou então tudo isto não passa de uma conjetura [sic] minha. Seja como for, é caso para ficar estupefato [sic]! Mas é a fatura [sic] a pagar pelo “progresso”, é um fato [sic] inegável e até mesmo um fator [sic] de “progresso”. Também podemos ver aqui o reflexo da hiperatividade [sic] caraterística [sic] desta época, que sempre tem de tudo destruir, como Picasso no seu ato [sic] de “canibalismo” a recriar (recriar é uma forma simpática de dizer “destruir”, mas hoje dir-se-ia antes “dialogar” com o passado) quadros antigos. Bom, mas talvez isto fosse apenas um traço do caráter [sic] de Picasso e não a expressão de uma época. Temos de usar de circunspeção [sic], sim, temos de ser circunspetos [sic] nos nossos juízos. Enfim, são os contrassensos [sic] da nossa época. No fim, todos os que, sem qualquer tato [sic] nos querem impor o acordo serão corresponsáveis [sic] por este ato [sic]. Será que já ninguém se lembra de um texto, tão tremendo e lúcido como maravilhoso, de António Telmo intitulado: “Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade”? Esta será a ocasião para ler o no seu livro “Filosofia e Kabbalah”, da Guimarães Editores.
Nota: O leitor pergunta-se, talvez, como é que eu descobri, detetei [sic] ou fiz uma inspeção [sic] a tantas palavras que sofrem alteração na grafia; é fácil: ofereceram-me um dicionário da Porto Editora que é bilingue: quer dizer, português antes do acordo e outra coisa qualquer depois do acordo – afinal, temos de estar preparados para aprender a falar com correção [sic]!
Todos temos de nos atualizar [sic] neste setor [sic] ou seção [sic] da língua portuguesa. Aqueles que gostam de futebol sempre podem esquecer estas dificuldades e ir ver a seleção [sic] a brincar ao bola-pé, como lhe chamava o nosso imenso Pascoaes; bom, no fim, no fim, agora até será mais fácil escrever, é quase só uma questão de subtração [sic] de letras. A menos que o leitor seja muito suscetível [sic] a estas questões de letras e outras coisas afins. Enfim, mas eu devo ser, como o António Carlos Carvalho, apenas um ultrarromântico [sic] ultrapassado que continua a achar que toda a volutuosidade [sic] da nossa língua se vai perdendo, deste modo, em secura agreste.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
ANOTAÇÕES PESSOAIS, 36
Blogtailors, um dos poucos blogues que consulto diariamente para saber novidades do mundo da edição e do livro, dava conta, há dias, da venda a pataco do espólio da extinta livraria Buchholz – local que frequentei durante muitos anos e cujo fecho me deixa magoado, embora pareça ser esse o destino de quase tudo o que conheci.
O mesmo blogue citava uma notícia desses saldos publicada pelo DN, jornal em que trabalhei durante dezoito anos, antes de me trocarem por uns mais novos e mais baratos. Com espanto – porque ainda me espanto e indigno com estas enormidades –, verifiquei que tanto a notícia do jornal como a do blogue falavam em venda do «estoque» da livraria. Não resisti e enviei um comentário para o tal blogue, perguntando se aquilo era, afinal, uma corrida de touros à espanhola, com morte do touro e tudo, visto que se falava em «estoque»; ou se o estoque era para matar os livros, numa tarde de sol, «às cinco em ponto»; ou se, vendo bem, não estaríamos já perante as funestas consequências da aplicação do famigerado (des)Acordo Ortográfico ... Claro que o meu comentário não foi publicado.
Aguardando a queda do touro, após a estocada
Mas a minha pergunta fazia sentido, com ironia e tudo, porque bem sabemos por cá (pelo menos alguns de nós) que os brasileiros transformaram «stock» em «estoque», ignorando que «estoque» é uma «arma branca comprida e direita, de forma prismática e que só fere com a ponta», como diz o dicionário. E também sabemos, ou começamos a perceber, que o tal (des)Acordo é uma cedência às normas que os brasileiros inventaram – e que nós, obedientemente, vamos aplicar a partir do próximo ano, para honra e glória da língua portuguesa, claro. Ou seja, vamos agora assistir – ver, ouvir e ler – a muitas mais destas verdadeiras estocadas na língua comum, dadas na arena triste dos jornais, das legendas dos filmes e das séries, dos textos da Internet e dos próprios livros. Um dia destes só nos restará, para não nos indignarmos muito mais, ler apenas o que se publicou antes da instauração desta ditadura. E, como em todas as ditaduras, a palavra de ordem é – RESISTIR!quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
NO CORAÇÃO DA ARTE, 33

A Paz
Disseram-lhe: - Esse seu quadro feito de azuis transmite-me paz.
Paz, uma palavra que nunca lhe tinha ocorrido. Uma palavra que raras vezes sentia. Uma palavra longínqua como o voo de uma ave. Tendia a não assinar os quadros pela infinita razão de saber que não era sua a autoria. Duas vidas num corpo: uma conhecida, outra desconhecida. Vidas paralelas unindo-se, apenas, no acto de pincelar. Seria um anjo que lhe soprava a inspiração? Ou seria esse seu outro ser, camuflado nas sombras da sua alma? De onde vinha esse outro mundo que criava? De que parcela desconhecida do cosmos ele era retirado? O lápis esvoaçava livremente mas estava em escuta enquanto se ia fixando à tela. Escutava palavras e transformava-as em traços. Sabia que os seres nunca mudavam ao longo da vida. Permanecíamos sempre os mesmos, carregados de defeitos, e tão longe da perfeição. No entanto, o mistério sondava o som dos seus passos na calçada. Que aprendemos em vida? Como nos moldamos a nós mesmos? Teríamos de facto uma vida paralela, no interior do interior somente escutada por Deus e por esse lápis que viajava incessantemente? Na televisão davam um funeral de um músico cigano que tinha passado grande parte da sua vida a tocar violino. Teria sido ele ou esse outro ser vivente dentro dele? E, do outro lado, qual deles seria julgado? O de cá, breve e imperfeito ou o de lá que sempre esteve tocando pelo mundo melodias nobres e dignas de serem escutadas por Deus?
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
ANTÓNIO QUADROS, IPSIS VERBIS

Excerto da correspondência publicada na Colóquio/Letras, n.º 171, Maio 2009, p. 262-268.Lisboa 24 de Setembro [de 1968]
"É possível que as notícias cheguem aí primeiro do que esta carta. Por enquanto (dia 26), a situação é esta: Salazar em coma; Presidente da República multiplicando políticas e démarches; boatos vários a este respeito, o mais insistente dos quais é o de que o candidato nº 1 é o Marcello Caetano, que se propõe uma certa liberalização (…) E, curiosamente, ambiente de calma. Mau grado o fogo de vista da imprensa e da rádio, a verdade é que o povo parece anestesiado. (…) Da Oposição, nada: nem um manifesto, nem um cartaz, nem uma folha clandestina. (…) Perdemos o sentido da Política e da História. Durante 40 anos fomos conduzidos pela mão por um Pai que sempre nos dominou com facilidade. Tudo o que sabemos fazer é interrogar os cinco minutos seguintes: morrerá, não morrerá? Quem será o Delfim? E é tudo. Os próprios críticos perderam a experiência da crítica. Os democratas não sabem que é e como se vive em democracia. Tenho a impressão de que todos os protestos eram atitudes, não actos e de que agora, os inimigos do velho Rei não sabem o que fazer. (...)"
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
O CAMINHO DO CAMINHO, 10

Sentidos
Decidira, naquele dia, abandonar a cidade e partir em passeio para a montanha. Dava passos vagarosos, tentando entender o chão que pisava à medida que subia. A cidade ia ficando longe, acabando por parecer um padrão de tecido rosado e cor de tijolo com súbitos pontos verdes. A cidade tornava-se mais presente porque já era uma memória. Ascendia com todo o corpo. A primeira diferença que sentira com mais intensidade foi a ausência de ruído. Não havia vozes, gritos, buzinas, motores, músicas de fundo. Apenas esse imenso deserto sonoro. A tal ponto que os ouvidos pareciam zunir por falta de hábito. E o canto de um pássaro caiu nesse silêncio como uma gota num lago tranquilo. Ouvia essa melodia cristalina e lembrou-se que ouvia no seu dia a dia e nada escutava. Estava surdo para o mundo. O canto parecia um milagre, melodia simples sem matemáticas que a sustentassem. O número e as notas, as pausas eram a voz directa da natureza sem pensamentos e faziam-no vibrar a partir do coração. A ave entrou por ele até ao ponto de lhe faltar a consciência de si próprio. Por instantes ele era o canto. E a ave voou. Continuava agora a caminhada reflectindo no som. E se as palavras dos homens fossem como aquele canto? E se, também elas tivessem implícita a capacidade de entrarem nos corações como o canto daquela ave.? O que distinguia essa melodia vinda assim pura da natureza, das palavras formadas por articulações de sons treinadas por milénios. Que efeito teriam elas se, lá em baixo, ele conseguisse, de facto, escutar? Olhava agora para um pessegueiro que parecia solitário nesse deserto ascendente em que se encontrava. Apeteceu-lhe um fruto, e lembrou-se dos pomos de ouro. Dera um valor simbólico quase sem querer a esse pessegueiro. E provou um fruto que nada tinha de proibido. Era todo oferta da terra. Era todo sabor e sumo. Era um néctar dos deuses. E lembrou-se dos pêssegos que provara, lá em baixo na cidade. Em nada se pareciam com este provado em segredo no deserto. Somas, elixires, hidromel, bebidas dos deuses. Provara o suco de um pêssego, um simples sabor, subitamente aberto do fruto. Pela primeira vez saboreara totalmente e isso fizera-o sentir que os homens são intermediários entre o céu e a terra. A subtileza tornara-o volátil e esta era irmã do voo. E o mesmo acontecera com a rosa nascida ali mesmo à sua frente, em tempo surpreendentemente rápido e que o fizera inspirar o aroma afinal desconhecido de uma rosa. Só no deserto se pode sentir o aroma de uma rosa, pensara. E o toque frio e quente em simultâneo de uma pedra. E a visão transcendente de uma cascata que parecia transfigurar-se numa eterna luz que jorrava, caía e indicava o infinito. Nesse passeio aprendera que havia sentidos nos sentidos como se estes se tivessem mantido ocultos até aí. Sim, ouvimos mas não escutamos, comemos e não saboreamos, cheiramos mas não inspiramos, tocamos mas não acariciamos, vimos mas não contemplamos. Havia sentidos dentro dos sentidos, e ainda mais outros poderosos que se abriam, do corpo à sabedoria. O sentido do encontro com as coisas, o sentido dessas mesmas coisas, o lado divino do mundo, assim presentes e tão próximos nesse deserto ascendente. Tudo tão perto afinal e tão longe no horizonte da cidade. Dois mundos entre nós e nós e, no meio deles, um deserto em forma de abismo e montanha. Quem somos afinal? O que somos nós?
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
AFORISMOS, 13

62 – A nossa voz interior - o primeiro e o último mestre.
63 – Uma luz que viesse e nos desse nos olhos; uma chicotada mística que nos fizesse bater com a cabeça no entulho que amontoámos; um sol que nos queimasse a alma mais que a pele, e que por fim só pudéssemos aliviar esse escaldão de dor com a mais pungente das orações.
64 – O Estado-Providência e o Espírito Paráclito. Admitindo a necessidade do primeiro, no plano material, - reformulado em novo Estado, como se exige – e a supra-realidade do segundo, a correspondência é perfeita, seja por antítese ou por síntese. Duas faces da mesma moeda que, ora tilinta, ora paradoxalmente se transmuta em jacto de luz.
65 – A confusão entre duas palavras tem contribuído para uma visão distorcida do que é ser português. São elas universalismo e patriotismo na imagem, podemos dizer, das duas repúblicas: a de 31 de Janeiro de 1891 e a de 5 de Outubro de 1910. Junto aos patriotas, esta está relacionada com os patrioteiros do Terreiro do Paço (deslocado agora, em grau variável, para Bruxelas); a primeira, a dos nossos arquétipos mentais e espirituais, confere significado ao patriotismo universalista do português, o que emigra e consciente ou inconscientemente busca esse amplo sentido de ser, até encontrar o centro do mundo ou Reino do Preste João, ao qual, actualmente, pode até dar outro nome. Patriotismo universalista também do português que teve de ficar, à procura do centro, exilado na sua viagem estática, por não ir no caudal avassalador que corre sobretudo da Europa central para ocidente.
Mas nisto tudo há uma terceira situação – aquela infelizmente tida por vitoriosa, a mais apetecida, oficialmente bem reconhecida e intelectualmente a mais consensual – que é a dos que, discordando dos patrioteiros do Terreiro do Paço, se lançam na aventura de um universalismo que querendo ser tudo, recusa (geralmente por medo da solidão, da falta de aplausos e outros proveitos) e até se envergonha do que é medularmente português. Por isso o seu universalismo soa a choco, como os cântaros de barro rachados que só quando se enchem de água se vê que logo a deitam fora de novo.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
NO CORAÇÃO DA ARTE, 32

A Respiração
As pausas do pincel coincidiam com um suspiro e esse suspiro era o de um universo vivo e vivente dentro do pintor. Esse universo não estava na mente mas espalhado pelo corpo e, parte dele, escapava-se-lhe e tocava o real envolvente. Era dessa mistura, de dentro e fora, que nascia a inspiração e esta nada mais era do que um diálogo íntimo entre o coração do pintor e o coração do mundo. Um diálogo matizado de azuis de sonhos, verdes de horizontes até ao fim da esperança, dourado de raios estendidos a partir do centro do artista tocando no caminho os raios de sol.
A intimidade só o era porque era secreta e invisível. Mas essa intimidade era o apogeu da extroversão, porque com ela tudo se revelava e as naturezas do pintor e do mundo, unidas numa só, levavam à explosão de um universo inteiro, novíssimo na sua verdade.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
AFORISMOS, 12

Que dinastia, ciclo ou época tem o seu começo no momento da abertura da Bíblia no Evangelho de S. João? É essa a Hora de outra História, a da contracção do tempo, ou a da sua plenitude?