quarta-feira, 13 de maio de 2009
EXTRAVAGÂNCIAS, 17
A Crise
Pedro Martins
Adolpho Rubens Cairo, de quem já aqui vos falei, telefonou-me há pouco, indignado com o teor da parangona que, logo de manhãzinha, surpreendera num jornal diário: – Parece que as intervenções da Igreja, hoje, em Fátima, vão ser dominadas pela crise! Já viu o ponto a que se chegou na escala interminável da decadência?! Rubens Cairo insurge-se com facilidade. Por isso, num primeiro momento, procurei não atear a fogueira acesa nos círios da Cova da Iria. E, assim, não fui capaz de lhe confessar que, há talvez um ano, tendo ligado a televisão, topara com um bispo – se bem me recordo, o responsável pela diocese da Guarda – discorrendo sobre as dificuldades materiais com que o seu distrito se debatia. Na ocasião, o prelado insigne fizera-me lembrar Jerónimo de Sousa – sem tirar nem pôr. Não resisti, porém. E, com insofrida ironia, logo fiz saber ao pintor que não concordava com a paisagem declinante do crepúsculo que, com a sua paleta sombria, acabara de me traçar. O caso contado era ao contrário, no sucesso de uma auspiciosa ascensão. Com efeito, na última semana, eu lera algures num periódico alheio que a Universidade Católica subira alguns degraus no ranking mundial das escolas de gestão. – Então, talvez os oficiantes de Fátima pudessem consultar essa escola económica preclara de que me fala! – atalhou Adolpho azedamente. – Se calhar já estão a fazê-lo, mas, avisadamente, começaram pelo governo da sua própria casa. – Como assim? – Não se esqueça de que a Igreja é uma casa com muitas moradas, meu caro Adolpho. E, lá diz o provérbio, quanto maior a nau, maior a tormenta. Veja – ou, melhor, ouça, pois é disso que se trata – o caso da Rádio Renascença, que é a emissora católica. A sua antena no fm stereo, a RFM, que é basicamente um canal de música rock repetida até à náusea, conseguiu já infiltrar-se nos altifalantes dos comboios que atravessam a ponte sobre o Tejo, roubando o relativo silêncio de que os passageiros, muitos deles leitores, ainda ali poderiam beneficiar. – Se o propósito é evangelizar, manda a verdade dizer que a mensagem, além de ser imposta, não é lá muito adequada… – comentou, solerte, o artista. – Ora, ora, meu caro Adolpho, a filantropia da boa nova é missão que parece estar reservada ao canal principal da estação. Será ali que, em dias excepcionais como o de hoje, ou numa Quinta-feira Santa, por exemplo, sempre poderá ouvir uma emissão preenchida com a transmissão de ofícios religiosos. No resto do ano, tirante a missa aos domingos, e um intervalo momentâneo destinado ao terço nos outros dias, quase só tem música ligeira, horas a fio. Do outro lado da linha, Adolpho bramiu: – Terão eles ouvido falar da Presença? Como poderão pretender propagar o Santo Espírito através de uma telefonia sem fios? Haverá coisa mais ímpia? Havia, com efeito. Não sei por que motivo a conversa tomou então um outro rumo, mas, numa próxima oportunidade, não me hei-de esquecer de referir a Adolpho que, em matéria de presenças e ausências, há outros factos mui dignos de menção. Contar-lhe-ei, por exemplo, aquilo que um amigo comum me relatou recentemente: numa igreja de Lisboa, ao Chiado, os fiéis têm o ensejo peregrino de participar em missas gravadas, de que o sacerdote se encontra estranhamente ausente. Neste, como noutros aspectos, um homem como Jerónimo de Sousa ainda faz certa diferença.
Pedro Martins
Adolpho Rubens Cairo, de quem já aqui vos falei, telefonou-me há pouco, indignado com o teor da parangona que, logo de manhãzinha, surpreendera num jornal diário: – Parece que as intervenções da Igreja, hoje, em Fátima, vão ser dominadas pela crise! Já viu o ponto a que se chegou na escala interminável da decadência?! Rubens Cairo insurge-se com facilidade. Por isso, num primeiro momento, procurei não atear a fogueira acesa nos círios da Cova da Iria. E, assim, não fui capaz de lhe confessar que, há talvez um ano, tendo ligado a televisão, topara com um bispo – se bem me recordo, o responsável pela diocese da Guarda – discorrendo sobre as dificuldades materiais com que o seu distrito se debatia. Na ocasião, o prelado insigne fizera-me lembrar Jerónimo de Sousa – sem tirar nem pôr. Não resisti, porém. E, com insofrida ironia, logo fiz saber ao pintor que não concordava com a paisagem declinante do crepúsculo que, com a sua paleta sombria, acabara de me traçar. O caso contado era ao contrário, no sucesso de uma auspiciosa ascensão. Com efeito, na última semana, eu lera algures num periódico alheio que a Universidade Católica subira alguns degraus no ranking mundial das escolas de gestão. – Então, talvez os oficiantes de Fátima pudessem consultar essa escola económica preclara de que me fala! – atalhou Adolpho azedamente. – Se calhar já estão a fazê-lo, mas, avisadamente, começaram pelo governo da sua própria casa. – Como assim? – Não se esqueça de que a Igreja é uma casa com muitas moradas, meu caro Adolpho. E, lá diz o provérbio, quanto maior a nau, maior a tormenta. Veja – ou, melhor, ouça, pois é disso que se trata – o caso da Rádio Renascença, que é a emissora católica. A sua antena no fm stereo, a RFM, que é basicamente um canal de música rock repetida até à náusea, conseguiu já infiltrar-se nos altifalantes dos comboios que atravessam a ponte sobre o Tejo, roubando o relativo silêncio de que os passageiros, muitos deles leitores, ainda ali poderiam beneficiar. – Se o propósito é evangelizar, manda a verdade dizer que a mensagem, além de ser imposta, não é lá muito adequada… – comentou, solerte, o artista. – Ora, ora, meu caro Adolpho, a filantropia da boa nova é missão que parece estar reservada ao canal principal da estação. Será ali que, em dias excepcionais como o de hoje, ou numa Quinta-feira Santa, por exemplo, sempre poderá ouvir uma emissão preenchida com a transmissão de ofícios religiosos. No resto do ano, tirante a missa aos domingos, e um intervalo momentâneo destinado ao terço nos outros dias, quase só tem música ligeira, horas a fio. Do outro lado da linha, Adolpho bramiu: – Terão eles ouvido falar da Presença? Como poderão pretender propagar o Santo Espírito através de uma telefonia sem fios? Haverá coisa mais ímpia? Havia, com efeito. Não sei por que motivo a conversa tomou então um outro rumo, mas, numa próxima oportunidade, não me hei-de esquecer de referir a Adolpho que, em matéria de presenças e ausências, há outros factos mui dignos de menção. Contar-lhe-ei, por exemplo, aquilo que um amigo comum me relatou recentemente: numa igreja de Lisboa, ao Chiado, os fiéis têm o ensejo peregrino de participar em missas gravadas, de que o sacerdote se encontra estranhamente ausente. Neste, como noutros aspectos, um homem como Jerónimo de Sousa ainda faz certa diferença.
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