(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 27 de junho de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 22

As cidades invisíveis

Alexandra Pinto Rebelo

Lembro-me da primeira vez que li As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, e da surpresa que senti.
A história conta-se em poucas palavras por ser simples. Marco Polo descreve a Kublai Kan as cidades que visitou nas suas missões. O imperador escuta-o com mais atenção do que a qualquer outro dos seus enviados. São cidades quase sempre improváveis mas verosímeis num qualquer recanto do nosso mecanismo humano.
Com todos estes postais sem precedentes somos levados a questionar-nos sobre o que é, de facto, uma cidade. Compreendemos que uma cidade pode ser milhões de rascunhos diferentes, por estar ali, em vocação suspensa para ser sentida.
Da mesma forma, nos poderemos nós sentir Kublai Kan, escutando, não Marco Polo, mas Dalila Pereira da Costa. Num dos seus relatos: “Em Braga, na Rua do Gaio, junto ao centro da cidade actual, persiste, ainda, nos nossos dias, o mais arcaico e intacto santuário pagão de todo o território português e ainda da Península. Embora seu testemunho escultórico e epigráfico date da época romana, na sua origem ele recuará a tempos muito remotos, da pré-história: celtas e mesmo pré-celtas. Local detentor da Potência, a do sagrado, e que ainda hoje nele será sensível aos homens, por uma certa vibração aí sentida, o Quintal do Ídolo em si marcará um dos pontos altos da geografia sagrada de Portugal. Com todos os sinais peculiares do santuário pagão, na sua presença conjunta de pedras, águas e árvores- assim ainda hoje, nos seus testemunhos, ele se mostrará a nós em todo o seu perturbante mistério. E é ainda sua água sacralizada, há dois, há três ou mais milénios, a mesma que vemos correr no seu leito de pedra e ouvimos no seu doce murmúrio.”¨(1)
A Braga pagã desvelada pela leitura de quem a consegue sentir é, também ela, uma Cidade Invisível. Não será uma cidade construída em literatura, mas também ela é um lugar onde podemos descansar, sentindo-nos em casa por sermos humanos.
Voltando a Calvino, ou a Marco Polo, sabemos que “Finalmente a viagem conduz à cidade de Tamara. Entra-se nela por ruas pejadas de letreiros que sobressaem das paredes. Os olhos não vêem coisas mas sim figuras de coisas que significam outras coisas (...)”. (2)
E não serão estas ruas uma boa metáfora urbana de tudo o que aqui foi dito?


(1) Costa, Dalila L. Pereira da, "Corografia Sagrada", Porto, Lello & Irmãos Editores, 1993
(2) Calvino, Italo, "As Cidades Invisíveis", Lisboa, Editorial Teorema, 1993

sexta-feira, 24 de junho de 2011

ALQUIMIA, 1




Cynthia Guimarães Taveira

Lembra-se de passar tardes infinitas na sua sala. Estantes altas trepavam pelas paredes. Livros como estratosferas de ideias em camadas que pendiam sobre a sua pequena cabeça. Pela altura só chegava às estantes mais baixas. Livro pequeno herdado do pai morto cedo de mais. “O ocultismo” destacava-se dos outros pela pintura da capa, de Hyeronimus Bosch. Um pássaro engolia uma pessoa. Estranhava o estranho e o estranho, ainda não o sabia, puxava-o para si como se soubesse serem da mesma natureza. Abria o livro vezes sem fim. Lá dentro imagens carregadas de símbolos: mãos escritas, tabelas, fotografias, pinturas. Parecia um livro mágico que quando se abria o fazia entrar num outro mundo mas agora estranhamente familiar. Fixava os olhos nas imagens e pontos de interrogação abstractos circulavam na sua cabeça numa dança. O lado misterioso da vida existiria ou seria vontade dos homens? Aquele lado oculto que se revelava parecia-lhe sério. Mais até do que sério. Importante. Essencial. Se era fantasia, esta era essencial. Só assim a vida poderia ter sentido. O sentido oculto das coisas era o único sentido porque criava e desfazia ilusões. Porque avançava em metamorfoses pelo espaço e pelo tempo. Porque ia ao fundo dos tempos e resgatava as primitivas mensagens ainda acessíveis aos homens. Porque Ovídio era um pequeno deus numa casa de bonecas, num microcosmos. Brincadeira preferida: fingir ser um animal. Abelha, tigre, cão. Ou imaginar um palco com bailarinos. Fechar os olhos e vê-los dançar com coreografias que apareciam já feitas.

A virtude era entender que a vida era uma constante potência. A revelação uma eterna verdade da actualização dessa potência. A Alquimia vivia entre estes dois entendimentos. Sim, numa casa de bonecas, porque não?

NOVAS CARTAS

Em

http://as101cartas.wordpress.com./

Publicadas por Pedro Sinde

quarta-feira, 22 de junho de 2011

É JÁ NO PRÓXIMO SÁBADO...



















Congeminações - I Ciclo de estudos em homenagem a António Telmosubordinado ao tema "Ortodoxia e livre-pensamento" continua no próximo sábado, 25, pelas 15 horas, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, estendendo-se até Novembro.

O programa de sábado é o seguinte:

- Apresentação do livro Sesimbra, o lugar onde se não morre, de António Telmo .
Este livro foi organizado por Pedro Martins e por Luís Paixão, conta com um notável prefácio do António Reis Marques e um belíssimo desenho do Carlos Aurélio, e reúne os escritos sesimbrenses de António Telmo, nele se incluindo quatro inéditos e alguns dispersos hoje de difícil acesso.

A apresentação será feita por Manuel José Pereira, que foi aluno de António Telmo em Sesimbra. A edição é da Câmara Municipal de Sesimbra e a concepção gráfica de Sandra Veríssimo.

- Colóquio António Telmo e as afinidades sesimbrenses

com a participação de:

Pedro Martins – António Telmo e Rafael Monteiro,

Elísio Gala – António Telmo e Orlando Vitorino e

Carlos Aurélio – António Telmo e Agostinho da Silva

segunda-feira, 20 de junho de 2011

RAZÃO POÉTICA

SOLSTÍCIO

No ponto mais alto
Cumpre-se o limite,
Ardente declinação.
No arco maior
Inverte-se a dança,
Na luz por amor:
Suprema aliança,
Nervuras da criação.
Cá em baixo roda a vida
Nas fogueiras de S. João.

20-06-2011
Eduardo Aroso

terça-feira, 14 de junho de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 21















A Verdade Única

Alexandra Pinto Rebelo

Os portugueses têm, habitualmente, um terrível tique de pensamento. Esse tique, ou mau princípio, prende-se com o facto de, segundo pensam, existir uma verdade única para tudo.
Esta verdade única, em termos teóricos, não seria má de todo. Trata-se de uma economia de processos. Quem conhecesse alguns princípios únicos saberia como funciona o mundo. E conhecer é, também, dominar.
São conhecidos os confrontos entre “sábios” do nosso cantinho. Tudo serve para esgrimir, com espadinhas de pau, em favor desta ou daquela ideia. Há “duelos” sobre a existência ou não de celtas em Portugal, sobre a “verdadeira” interpretação simbólica da Quinta da Regaleira, sobre a influência templária em Portugal.
Escolha-se um tema, pegue-se numa lupa, e lá encontraremos “sábios” lutando com outros pela “verdadeira Jerusalém”. Estes “sábios” são geralmente acompanhados por pessoas que os incentivam nas suas teses exclusivistas, urrando os seus comentários de apoio. Trata-se de pequenas cortes, com o “príncipe-sábio” no centro que, a terem cor, seriam escarlates, claro.
Em Portugal, pois, com raras excepções, não existe um processo fluido de conhecimento. O que existe é uma anomalia do corpo-pátria semelhante a varicela.
Não acredito que exista uma verdade única para as coisas. Acredito que os objectos e fenómenos são verdadeiros em si mesmos, são Tat, querendo isso dizer tudo e nada. Porém, isso não quer dizer que não possam existir tentativas para serem interpretados. A vivência do amor é diferente do escrever-se sobre o assunto. Mas quer Romeu e Julieta, quer Penélope tecendo de dia e destruindo à noite, são óptimas tentativas para nos aproximarmos do assunto. Não há uma única forma de amar pois isso constituiria um processo mecânico, não sendo, então, amor.
O que eu pretendo dizer é que existem muitas variantes de aproximação às coisas, existem muitas variantes da sua interpretação. O século XX, apesar de toda a destruição que conseguiu deixar nos livros de história, também conseguiu alcançar coisas muito boas. Geralmente é mostrado o desenvolvimento inegável da ciência. No entanto, todas as áreas ligadas ao conhecimento das artes, da cultura, da religião, do conhecimento humanístico, também alcançaram resultados igualmente extraordinários.
O que nós aprendemos com todas essas ideias é que não existe, de facto, uma verdade única para a interpretação das coisas. A terem uma verdade única, essa só poderá ser interpretada através do “silêncio cheio”. Estaremos nós preparados para isso enquanto civilização? Parece-me que não.
Por isso, alegremo-nos por termos Romeus e Julietas, Penélopes e Ulisses e tudo o mais que venha para nos ajudar a interpretarmo-nos como espécie, sabendo que, mais do que um monólito de pedra cerrada, somos uma torre imensa cheia de moinhos de papel, cada um de sua cor.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

13 DE JUNHO


Fernando Pessoa

Alexandra Pinto Rebelo

Fernando Pessoa foi o grande poeta do século XX. Esta minha afirmação, não pode deixar de ser um pouco injusta para todas as outras excelentes páginas de poesia escritas no século passado. Porém, é uma afirmação inteiramente justa para o próprio Pessoa e para a história da nossa literatura.
Depois de Camões nunca a poesia tinha alcançado tanto, assumindo-se o poeta como transmissor entre mundos, sabendo, ao mesmo tempo, elevar a poética a uma prática devocional comum entre os antigos, nunca esquecendo que, ao mesmo tempo, era moderno.
Este religar entre tempos parece um lugar comum, tornando pálido este texto, mas não o é (o texto, a ser pálido, sê-lo-á por outros motivos). Pessoa, na sua certeza de querer ser tudo, soube também ser passado e presente a um tempo. A maior parte dos poetas, não querendo abdicar de si, fogem a esta necessidade. Ou são só do seu tempo, o que é estranho, ou são só antigos, o que é absurdo.
A maior parte da poesia de Pessoa é oracular. Pessoa é o veículo sublimado, aquele que transmite e que sabe que transmite. Tem consciência do processo, envolvendo-se nele, conseguindo ser testemunha do que se passa, transmutando-se com isso. É o alquimista completo, expondo-nos o mundo em palavras entendíveis.
A poesia torna-se assim, um trabalho em êxtase de pasmo e medo. Silencia quando observa, retoma o seu labor quando tal é possível, fingindo sempre, que é como quem diz, passando pelo escrutínio da razão tudo o que foi sentido.
Escolhi um pequeno poema para ilustrar esta poética alquímica. Trata-se da “Ascenção de Vasco da Gama”. Aí, os antigos deuses gregos param a sua luta. No vale por onde se ascende aos céus, os deuses assistem à transmutação das formas que estão a receber, em ascese, a alma de Vasco da Gama. O pastor é o poeta-símbolo, a flauta, o seu instrumento de comunicação, ou seja, a escrita. O poeta está na terra, mas num local fronteira que lhe permite ver o céu abrir o seu abismo à alma do Argonauta. A sua flauta caí, em êxtase, a poesia não é possível nesse momento, só havendo lugar para o divino. Mas a poesia é retomada mais tarde, dando origem a este poema, falando daquilo de que seria impensável falar. O poeta, tomando Delfos como exemplo, é o oráculo e aquele que lhe coloca a questão, a pitonisa e o sacerdote que interpreta as comunicações em verso. Sendo todos os processos, o que é ele, senão o poeta-alquimista?

Ascensão de Vasco da Gama

Os deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.


In Pessoa, Fernando, Mensagem, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007

domingo, 12 de junho de 2011

LANCES E RELANCES, 6




















JORGE DE LIMA – EXPOENTE DA POESIA BRASILEIRA DO SÉC. XX

Por Eduardo Aroso


Jorge de Lima (1893-1953) nasceu em União, no Estado de Alagoas. Viveu em várias cidades, como Salvador, Maceió e Rio de Janeiro, para onde rumou, após perseguição política. Formou-se em Medicina, tendo recebido o grau de doutor, e exerceu cargos de carácter cívico. Em 1925 aderiu ao modernismo brasileiro.

A poesia completa de Jorge de Lima encontra-se reunida num único volume da Editora Nova Aguilar. Para além dos poemas, há todo um recheio precioso de textos como «Jorge de Lima visto por Jorge de Lima», onde abundam depoimentos e reflexões pessoais de vária índole, bem como panoramas sobre a poesia mundial.

«Aliás, parece que o que há, no Brasil, com os escritores, é um inexplicável medo de ser “eles mesmos”, sem premeditações nem compromissos. Muitos são os espécimes de homens de letras que traem a si mesmos, não tendo coragem de enfrentar a crítica, preferindo realizar coisas impessoais e informes» (…) «O poeta de ontem, de hoje e de amanhã é sempre revolucionário; o que não lhe impede de ser memorialista e transcender a própria memória».

Poeta, que conheceu Agostinho da Silva, do seu pendor religioso ele próprio nos diz da « … desejada renovação, já havendo compreendido que o plano mais elevado para isso seria uma poesia que se restaurasse em Cristo, que é a mais alta Poesia, a mais alta verdade».

Nestes dias de Pentecostes, é mister reler este belíssimo poema, a propósito do qual não posso, com saudade, deixar de aqui relatar este meu pormenor pessoal. Foi com grande regozijo que o li em Estremoz, na tarde de 18 de Maio de 2002, na ilustre presença de António Telmo e de sua esposa D. Maria Antónia, dos companheiros Raul Traveira e Manuela Azevedo, do Gresfoz, e dos amigos João M. Lopes Tavares e Roque N. Brás de Oliveira.



ESPÍRITO PARÁCLITO


Queima-me Língua de Fogo!
Sopra depois sobre as achas incendiadas
e espalha-as pelo mundo
para que a tua chama se propague!
Transforma-me em tuas brasas
para que eu queime também como tu queimas,
para que eu marque também como tu marcas!
Esfacela-me com tua tempestade,
Espírito violento e dulcíssimo,
e recompõe-me quando quiseres,
e cega-me para que os prodígios de Deus se realizem,
e ilumina-me para que tua glória se irradie!
Espírito, tu que és a boca de todas as sentenças,
toca-me para que os meus irmãos desconhecidos e
                                          [longínquos e estranhos,
compreendam a minha fala para todos os ouvidos que criares!
Exceder-me-ei em meus limites,
crescerei em todas as distâncias,
serei a palavra transcendente, a profecia, a revelação e as
                                                                      [realidades!
Devora-me, renova-me, ressurge-me em tua vontade criadora
diante da morte e diante do nada!
Aguça a minha intuição,
descansa em minhas pupilas,
agita a minha lentidão,
faze-me numeroso como tu,
cobre todo o meu corpo de pálpebras que espreitem todas as
                                                             [latitudes e longitudes
e expectativas e anunciações e partos e concepções
e gerações e séculos de séculos!
Ressurgirei de todos os ventres
e voarei no sentido da perpetuidade sobre as águas e sobre
                                                                           [as terras!
Desata-me Espírito Paráclito! Corta os meus laços,
sopra a terra que há sobre a minha sepultura!
Enche-me de tua verdade e sagra-me teu moderno apóstolo!
Amo como poeta a forma com que te apresentaste
à assembleia do Cenáculo!
E sinto a tua presença,
a tua aproximação, a tua unção sobre a minha alma!
Dá-me tua fecundidade sobrenatural,
tua heroicidade e tua luz!
Unge-me teu sacerdote,
teu soldado, teu vinho, teu pão,
tua semente, tuas perspectivas!
Espírito Paráclito, dedo da direita do Pai,
soergue as minhas pálpebras descidas e sopra sobre
                               [elas o teu hálito e tua essência!
Espírito Paráclito, amo-te, com os meus cinco sentidos,
com a minha imaginação,
com a minha memória e com os outros dons poéticos
                                  [e proféticos e reconstituidores
que ultrapassam minha espessa matéria e meu espírito
                                                              [translúcido!
Sou teu ramo de oliveira que trazes dos dilúvios constantes
                                                                da [humanidade
e cujo óleo ungirá os meus iguais e os desiguais do meu
                                                                     [tamanho!
Espírito Paráclito, tu que és o único pássaro que desce sobre
                                                 [mim na minha noite untuosa,
fura os meus olhos para que eu veja mais,
para que eu penetre a unidade que tu és,
a liberdade que tu és,
a multiplicidade que tu és,
para eu subir da minha pequenez e me abater em ti!

JORGE DE LIMA (A Túnica Inconsútil)



sexta-feira, 10 de junho de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 134



O dia 10 de Junho não é só de vez em quando

Cynthia Guimarães Taveira

Ouvi dizer que o Eng. José Sócrates tenciona ir para França durante um ano para estudar, imaginem, Filosofia. Agora? Só agora? Ainda por cima para França! Fiquei deveras espantada, o homem é, de facto, um desastre ambulante. Talvez volte de lá um ser bastante perigoso. Metade tecnocrata, metade positivista, e talvez, quem sabe, cheio de força e armas teóricas para prosseguir com o seu propósito final: ser um elemento empenhado em destruir qualquer indício, qualquer intenção, qualquer desejo que Portugal demonstre em continuar a sua Iniciação. E neste jogo de forças, vale tudo, até estudar filosofia! Primeiro, faz um curso de Engenheiro às três pancadas apenas pela pressa de continuar a sua carreira política e, no fim, depois de desgovernar toda a gente, medita sobre o seu próprio nome e entende que há algo de filosófico nele próprio.

Mas tudo isto levanta um problema fundamental da nossa classe política. Haverá algum político que conheça a matéria-prima com a qual trabalha? Com que matéria-prima trabalha um político? Resposta: com um povo. Há então algum político que conheça o seu povo? Que o conheça a sério pela voz daqueles que reflectem sobre ele?

Serei, porventura, bastante radical, mas um dia imaginei ser muito rica e, imaginei que, com esse Euromilhões gigante, compraria um palacete antigo. E, nesse palacete, instituiria uma Fundação dedicada aos estudos sobre Portugal: uma espécie de escola aberta mas com regras muito apertadas no que se refere a quem dirigiria tal Fundação. Essa Fundação teria como condição de existência, para lá da minha morte, a elaboração de vários núcleos de saber em diferentes partes do país e do mundo e teria, a parte mais difícil, uma exigência deixada no meu testamento: só poderia ser Presidente dessa Fundação alguém que passasse num teste escrito onde fosse avaliado o conhecimento de determinadas matérias sobre o nosso povo e sobre o nosso país.

Parei. Parei ainda mais. O que desejava, no fundo, é que quem nos governasse fosse assim. Tão simples, afinal.

Que político leu, sentiu e interiorizou as páginas que abaixo transcrevo de Dalila Pereira da Costa? Calculo que quase nenhum. São políticos das suas próprias ideias, se é que as têm, mas não são políticos ao serviço do seu povo porque nem o conhecem. Nem se conhecem a si próprios como o demonstra este acto final, radical e estrangeirado de Sócrates.
Deixo este texto de Dalila Pereira da Costa apenas como exemplo de uma meditação, muitos outros há, de muitos outros autores, e, como são muitos, levariam muito tempo a ser lidos, muitos 10 de Junho espalhados pelo ano inteiro… Desculpem o excerto ser grande, mas penso ser, este também, um grande dia.
Sobre as raízes que os povos celtas deixaram em Portugal, diz então Dalila:

“Entre essas raízes, apontemos primeiramente as que nos surgirão como de força negativa, como os seus defeitos particulares (e por herança directa, também dos portugueses); entre outras demais, a vaidade, ela como tendência à vanglória, ou fanfarronice e o gosto imoderado da sumptuosidade e ostentação; a preguiça; um entrega a estados prolongados de sono ou torpor, sobretudo depois de uma frustração ou derrota sofrida, que ela, nunca é aceite em humildade e coragem; um movimento na acção, em qualquer empresa ou luta, que se exerce somente em toda sua energia no primeiro momento, logo decaindo ou sendo abandonada, por falta de constância ou disciplina; gosto imoderado e prolongado de festas, banquetes, tomando formas extremas de orgia, gosto de longos discursos em retórica empolada e vazia; mas acima de tudo, porque de força máxima destruidora, essa tendência à anarquia, por dispersão de energias incontroladas, ela vinda desse exclusivo sentimento de individualidade, negando todo ou qualquer acatamento de autoridade estranho ao individuo ou grupo social, outrora como tribo; autoridade que agiria como força unificante de organização e coesão, levando a uma concepção de comunidade mais alta ou lata, como nação. E que entre os portugueses ao longo da sua história, seria efectuada pelos seus heróis. Tal no começo, a do rei Fundador, depois numa revolução, do santo, D. Nuno Álvares Pereira, ou nos Descobrimentos iniciada por outro seu herói, o Infante D. Henrique.

Anarquia que, como mal endémico dos celtas, os levou à derrota pelos romanos; e depois nos portugueses, à sua auto-derrota nestes dois últimos séculos e notadamente a partir das Lutas Liberais: como estado de desunião, com perda constante de energias, porque não disciplinadas e organizadas para um único fim em eficiente acção: o serviço da nação. Estado introduzido em imagem psíquica de dissociação de personalidade ou em imagem cósmica de caos primordial.

Entre essas outras raízes da alma dos celtas, que nos surgirão como de força positiva e benéfica, e que esperarão ser assumidas e desenvolvidas até às sua máximas possibilidades pelos portugueses, usando-as no seu ser e estar no mundo, em trânsito histórico e integrando-as assim na sua missão no mundo, como seu dever transcendente a eles particularmente incumbido, intransmissível e justificador da sua vida neste mundo - apontemos antes de mais o seu profundo sentido de liberdade e independência. (…) Seu profundo sentido de liberdade, levando-os outrora em momentos de luta contra esses inimigos, ameaçando essa liberdade, a sacrificarem sua própria vida e de seus parentes,(…) vida vista sem valor se caída em escravidão. (…)

A coragem e desprendimento perante a morte física de seu corpo, advindo aos celtas de sua concepção positiva da morte, como imortalidade da alma; morte vista assim, não como um aniquilamento, um fim da vida mas uma sua continuação noutro mundo, como sua outra fase: esta sendo de posse e usufruição eterna para cada homem. Sentido da morte, que por ela, marcará sua religião dessa dimensão inseparável escatológica; a morte sendo aceite no seu pleno sentido e meditada em confiança, como fase de perfeita realização da vida; esta, una, em metamorfose incessante, recriando-se ciclicamente, sempre em novas formas, de dinamismo por transmutação e regeneração.

Assim, também, o sentido que a morte terá unida ao amor, na cultura dos celtas, e que virá expressada no seu romance de Tristão e Isolda, e ainda na Menina e Moça, dos portugueses, ou em D. Pedro e D. Inês. (…)

E assim, também, o sentido do Outro Mundo, visto e vivido como paralelo, coetâneo e inseparável a este quotidiano e sensível. Este mundo e o outro, esta vida e a outra, fazendo parte duma única realidade a ser vivida em paixão exultante pelo homem; ser ainda este sentido unificante, a um tempo jubiloso e pânico, que marcará a relação do homem com a Natureza; realidade onde se sente imerso, conjuntamente com as plantas, os animais, os rios, as pedras, montes… em união tomando a forma dum incessante diálogo, ou monólogo numa projecção no Outro, e em metamorfoses, esta indo até ao extremo escatológico de metempsicose. (…)

Se ainda e finalmente apontamos esta força da imaginação, como uma das qualidades positivas e benéficas do povo celta, e sua possibilidade de por si apresentar e unir mundos aparentemente opostos, ou no apresentar e mostrar o transcendente e sobretudo o universo como todo vivente, dinâmico -, será para tornar bem presente o contraste da mundividência deste povo e nela a sua arte, com a nossa actual, criada e vivida existencial e teoricamente pelo Ocidente moderno: ela, toda abstracta e fria, unicamente imanente e estática, como expressão dum universo morto, cadavérico”.

Resumindo, o Eng. Sócrates devia ficar cá a aprender.

Dalila Pereira da Costa, “Corografia Sagrada”, Lello & Irmão - Editores, 1993, pág. 194 e seguintes.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

D. SEBASTIÃO



















Veio do sul esse perfume
Dessa moura de véu alado
Veio do sul com a andorinha
Veio em nuvens no céu dado

Na praia do grande mar
Essa nuvem transbordou
Para cima e para baixo
Para o sonho não esperado

Peguei em armas pequei em ferros
Com um salto desvairado
Meti o freio nos dentes
Ao meu cavalo de pêlo raro

Voei por cima das montanhas
Voei por debaixo do mar
Voei longe e enfeitiçado
Só para a poder encontrar

Essa moura de alto porte
Era a guerra desejada
Eram terras de má sorte
Era a vida por um nada

Já fui rei em céu aberto
Já fui quem todos esperavam
Já fui morto em terra negra
Já sou sonho desbravado

Desbravado no futuro
É o meu corpo que há-de vir
Já sem nome, já sem espada
Apenas eu e o sol a luzir

E as faces que me esperam
Serão espelhos a brilhar
Serão luz no tempo eterno
Serão Deus a gargalhar

E a alegria será tanta
Que mais nada se ouvirá
Apenas os poetas a escrever
Esse riso que Deus dará

6-6-2011
Cynthia Guimarães Taveira

sábado, 4 de junho de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 20















Cristianismo e Paganismo

Alexandra Pinto Rebelo

Nos primeiros tempos de cristianismo, o império romano assistiu a um conflito crescente entre a nova religião e as outras praticadas um pouco por toda a parte. A nova religião tomava para si o estatuto de ser a única verdadeira, tal como tinha acontecido antes com o judaísmo. Mas, se o judaísmo tinha conseguido manter-se como uma reserva religiosa, sem pretensões de se impôr fortemente fosse a quem fosse, o cristianismo tentava aquilo que parecia impossível: aniquilar o pensamento pagão fazendo aquilo que pensava ser uma prova constante da sua falácia.

Para os pagãos, o cristianismo, era uma visão a um tempo nova e abominável do mundo. Essas primeiras tentativas de evangelizar, eram semelhantes a um terrorismo religioso a que o mundo nunca tinha assistido. Era absurdo uma religião assumir-se como a única verdadeira, tomando todas as outras como falsas, acusando-as publicamente dessa falsidade. Para um pagão, a questão da verdade religiosa não se colocava. Todas as religiões eram verdadeiras, bastando-lhes para isso existir. Só os crentes poderiam avaliar os bons resultados da sua própria religião.

Os cristãos primitivos, à semelhança do que fazem hoje as Testemunhas de Jeová, levavam a Boa Nova aos lares romanos. Conhecemos o seu modo de operar através de vários relatos de romanos desesperados. Os cristãos esperavam que o dono da casa saísse para os seus afazeres, e então batiam à porta. Falavam com as mulheres romanas, com os seus filhos menores, com os escravos. Quando eram escutados, faziam com que a paz do lar fosse corrompida para sempre. Vários romanos proibiram que os seus abrissem a porta ou falassem com tais seres instigadores da desordem familiar.

Este conflito entre dois mundos tão distintos, não terminava entre os devotos de uma ou outra religião. Existia igualmente entre os cristãos recentemente convertidos ao cristianismo. Refiro-me, também, aos seus conflitos interiores, sendo por um lado cristão devotos e, por outro, seres humanos oriundos de uma cultura pagã. É que, por mais que a sua comunidade os apoiasse no seu caminho exclusivista, essa via impunha-lhes pôr de parte todos os dados culturais com os quais se tinham norteado até aí. Se algumas coisas eram relativamente fáceis, como o não adorar imagens, ou entrar em templos pagãos, outras eram por demais difíceis como, por exemplo, pôr de parte Homero, Platão, Cícero e toda uma cultura literária que sabiam ser excepcional.

Jerónimo dá-nos um testemunho de tal conflito. Sendo cristão, sabia que não podia haver nada de certo na literatura antiga. No entanto, os textos cristãos eram bem inferiores, em termos literários, aos escritos da literatura que ele tinha como obrigação de colocar de parte. Quando não resistia e pegava em Cícero ou Plauto, jejuava por penitência, chorando entre parágrafos, por se sentir completamente dividido. O seu sentimento de culpa cresceu de tal forma que Jerónima adoeceu, tomado por uma febre que lhe ia tirando a vida. O mesmo Jerónimo nos conta que, num sonho em delírio, sentiu-se invadido em êxtase e transportado diante do tribunal do juiz. Tendo sido interrogado sobre a sua profissão de fé, respondeu ser cristão ao que o juiz, severo, respondeu: “Mentes, tu és de Cícero e não cristão: onde está o teu tesouro, está também o teu coração.”*

In Rougier, Louis, O conflito entre o cristianismo primitivo e a civilização antiga, Lisboa, Vega, 1995

quinta-feira, 2 de junho de 2011

SOBRE OS CONTOS DE FADAS...

“Um dos autores que mais exaustivamente estudou estes problemas, Mircea Eliade [em Aspects do Mythe, cap. «Les mythes et les contes de fées»], considera que as versões populares dos contos maravilhosos, não são na realidade dessacralizantes. Tratam-se de «versões camufladas», que mantém os motivos míticos e iniciáticos arcaicos, muito embora disfarçando-os, mascarando-os, conservando as suas verdades profanas, mas ocultadas em vestes enganadoras.

Esta «camuflagem» foi necessária devido à aparição ou à preponderância de novas religiões, nomeadamente do cristianismo, cioso da sua ortodoxia ou do seu catecismo. Realizou-se, aliás, de forma inconsciente, lentamente (e daí as sucessivas versões). O mitema, sublinhamos por nossa parte, enriqueceu-se, aliás, com os novos motivos do espírito cavaleiresco e cristão, produzindo-se uma síntese que nos transmite como que a memória da humanidade. Naturalmente pedagógica é esta transmissão gratuita e aliciante de um milenária sabedoria, caldeada de perdidas experiências ou de esquecidas revelações, vozes, descobertas, imagens simbólicas.

«Se os deuses não intervêm nos contos de fadas sob os seus próprios nomes», escreve Mircea Eliade, «os seus perfis distinguem-se ainda nas figuras dos protectores, dos adversários e dos companheiros dos heróis. Estão ‘camuflados’ ou, se quiserem, decaídos, mas continuam a desempenhar a sua função.»

A função a que se refere Eliade é rigorosamente iniciática, é constituída por uma série de provas que o protagonista deve vencer, e que o leitor ou o ouvinte acompanha simbolicamente, interiorizando-as. Função de extraordinária influência formativa sobre as crianças porque a transmissão penetra no psiquismo infantil por via inconsciente, unindo-se à disposição aperceptiva ou intuitiva da alma e despertando esse estrato enigmático a que C. G. Jung chamou inconsciente colectivo ou arcaico.
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Sem dar por isso, o homem beneficia dessa iniciação imaginária, conservada nos contos de fadas, esta simbólica «passagem da nesciência da imaturidade à idade espiritual do adulto». O alcance pedagógico e até analógico do conto maravilhoso é pois diríamos que infinito - porque não se lhe pode opor um limite.

Álvaro Ribeiro foi o pensador que, entre nós, melhor e mais profundamente se apercebeu de tal alcance, em termos de difícil superação. Escreveu o filósofo (em A Razão Animada) que na educação das crianças «a imaginação deve preceder a intelecção». E logo a seguir: «A faculdade fabulatriz da alma da criança exerce-se pela produção de imagens fantasiosas, de vivências que se tornam narrativas para serem ludicamente representadas ou agidas.» Tal faculdade deve ser estimulada. «A cultura da imaginação é um factor psicoterápico muito indicado contra o medo, a agressividade e a vingança e portanto um nobre processo de promover nas crianças a maturidade emocional.»

Infelizmente, «a didáctica positivista, eliminando a imaginação tem por efeito inibir as formas de intelecção mais apropriadas ao estudo das humanidades, porque o adolescente sem abertura de alma para o fantástico, o prodigioso e o milagroso dificilmente realizará compreensão simpática da mentalidade dos outros povos, e mais dificilmente entenderá a gradativa alteração das culturas ao longo da história. A motivação dos actos humanos parecer-lhe-á em muito casos absurda, inverosímil, invenção de escritor, apenas porque não cabe nos quadros rígidos da antropologia positivista».

Para Álvaro Ribeiro, enfim, «o conto caracteriza-se pela presença colaborante ou neutralizante de seres sobrenaturais». E mesmo que os autores se vejam obrigados, ao escrever para adultos, a excluir «da narrativa literária o elemento mitológico, representado pelos anjos, pelas musas, pelas fadas, conforme as tradições, ou ainda pelas ideias platónicas, de mais livre curso em filosofia», hão-de «pelo menos aludir ao motor secreto da acção narrada usando de palavras adequadamente escolhidas para representar os conceitos humanos da necessidade, destino ou fado».

Em suma, o valor de todo o conto maravilhoso, «camuflagem» de um mito (Mircea Eliade) ou velada alusão a uma transcendente energia espiritual (Álvaro Ribeiro), é o de uma educação da psique, quer como caminho de maturidade e de saúde mental, quer como estímulo à imaginação, a uma imaginação que abre o acesso para verdades transcendentes à positividade do mundo sensível.”

António Quadros, “Memórias das Origens, Saudades do Futuro”, Publicações Europa-América, 1992, pág 100