(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 21 de agosto de 2012

FAZ HOJE DOIS ANOS...














Faz hoje dois anos que António Telmo partiu para junto da sua esfera celeste deixando nesta terra, para alguns, o seu rasto de cometa luminoso e, assim, continua presente nas memórias, nos escritos, nos corações e ainda, por uma espécie de milagre cósmico, em pequenos sinais, intuições, sonhos que acontecem, aqui e ali, como que indicando caminhos, pensamentos, obras, acções.  Deixou-nos e não nos deixou jamais: eis o paradoxo de um ser humano excepcional. António Telmo, sempre...

segunda-feira, 23 de julho de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 6


A Dama
(dedicado aos homens que escutam...)

Cynthia Guimarães Taveira

O Amor da Dama é:

Incondicional

Atravessa os círculos dos mundos

Atravessa-os só para vir ter connosco

Nada mais lhe interessa

A não ser possuir-nos

Totalmente

Ela lê-nos, sabe-nos, conhece-nos até à raiz

Embala-nos, submete-nos, mata-nos

Dá-nos vida

Fragmenta-nos e enche esses fragmentos da sua

Própria substância

Une o seu coração ao nosso

Bate ao mesmo ritmo

É o mesmo coração por instantes

A Dama é:

Quem nos acolhe, nos escolhe, nos vigia

Nos cerca em becos sem saída

Nos fala pelas pessoas, atravessando-as

Ela é quem nos condena a um estranho exílio

Do mundo, das coisas, das pessoas,

Exílio de nós mesmos

Ela é quem nos tirou Tudo

E nos deu Tudo

O seu Amor é

Transbordante

Totalizante

Próximo

Forte

Sereno

Nunca nos deixa sós

E deixa-nos para sempre solitários

A Virgem deixa-nos

Num deserto em expectativa

Suspensos

Indefinidos

Prováveis constantemente

E aparece-nos em pequenos gestos

O Amor que deixa

Espalha-se através de nós

Nos outros seres.

Ela é o verdadeiro pó de projecção

Pó cósmico pairando a cada respirar

Ela gera Irmãos quando faz os seus filhos morrer

Ela é a Vida

A culpa e a redenção

O sorriso final

Que nunca morre

A nossa eternidade possível

A reunião de todos os sonhos

Tomados num cálice

A semente do início

Potência das potências

Ela a grande surpresa

Na noite

Na Verdadeira Noite

Ela forma o Dia no seu ventre

Ela dá-nos o sonho de um dia ver o Dia.

domingo, 15 de julho de 2012

SABEDORIA ANTIGA, 21

















Ecce Homo?

Alexandra Pinto Rebelo

Neste texto colocarei algumas hipóteses de reflexão em relação ao Ecce Homo do Museu Nacional de arte antiga. É um quadro enigmático, de origens não menos misteriosas. Sabe-se apenas que é “proveniente dos conventos extintos”, de acordo com a sua ficha no MNAA.

O título que o acompanha, Ecce Homo, insere-o numa pintura de tema histórico bastante difundido. Pilatos, exibe Cristo à multidão, devidamente adornado com símbolos da realeza como sejam o manto púrpura e a coroa, tornada de espinhos. É um dos episódios de maior tensão nos Evangelhos canónicos. Pela primeira vez na, até aí, sua curtíssima história, a doutrina cristã está a ser exposta em meios hostis, sendo ridicularizada simbolicamente, fustigada pela dor física do próprio Cristo. Perante os nossos olhos, está a criar-se o arquétipo cristão da injustiça humana, expressa pela ferocidade extrema, podendo conduzir à morte dos que a defendem. Arquétipo, sem sombra de dúvida, Universal.

A postura do Ecce Homo do MNAA, parece afastada do centro de toda esta tensão. Cristo está só, como que em apresentação autónoma. O fundo completamente negro do quadro, remete-nos para uma espécie de interpretação latina dos fundos dourados dos ícones bizantinos. Queriam estes remeter o espectador para um tempo sagrado, fora do tempo comum. Este Cristo, também ele, parece projectar-se para um tempo, longe daquele proposto como histórico, afirmando-se mais como uma impressão do sagrado, do que propriamente como uma representação mais ou menos realista formada a partir da noção de janela ilusória proposta pelo Renascimento. Parte do seu rosto está oculto pelo manto, não revelando o fundamental olhar.

Se atentarmos na presença física de Cristo, reparamos na sua postura perfeitamente erecta, nas mãos cruzadas pela altura dos pulsos, estando o braço direito sobre o esquerdo, no inchaço na maçã do rosto, tornando-o irregular, na ocultação dos polegares, resultando isso na representação de quatro dedos apenas em cada mão. Adicionando o manto branco, que cobre quase todo o corpo, poderemos ter uma boa hipótese em relação à origem de tal imagem. Essa boa hipótese é o sudário, chamado, de Turim, onde a contestada figura de Cristo aparece com os mesmos atributos. O pano de linho esbranquiçado, exibe a imagem de um Cristo morto, de corpo perfeitamente vertical, mãos cruzadas pela altura dos pulsos, braço direito sobre o esquerdo, inchaço na maçã do rosto, tornando-o irregular, ocultação dos polegares. Dizem os patologistas estudiosos do sudário ser esta ocultação própria da crucificação, uma vez que, com o rompimento do nervo médio da mão, dá-se um voltear destes dedos para dentro, dando a ideia de que não estão presentes.

Terá sido esta imagem impressa no sudário, o modelo de algumas representações de Cristo, desde o Manuscrito Húngaro de Preces (1192) à imagem de Cristo ressuscitado no seu túmulo, no Très Riches Heures de Jean de France, em parte encomendado a Jean de Colombe por Carlos I de Sabóia, representante da casa nobre detentora do sudário até ao final do Século XX, altura em que a doou ao Vaticano. Segundo julgo, foi esta mesma imagem que serviu de modelo para a construção do Ecce Homo do Museu Nacional de Arte Antiga.

Poderemos, então, não estar perante um Cristo morto, mas um Cristo Vivo, ressurgido. Um outro pequeno enigma dentro do quadro, remete-nos para esta solução. Dezassete espinhos, atravessam o pano, ficando visíveis. Este número é referido no Evangelho de João, quando Cristo, depois da sua morte, aparece aos discípulos junto ao Lago de Tiberíades, na sua terceira aparição pós Ressurreição. Estes não tinham pescado nada na véspera. Ao aparecer-lhes, mais uma vez sem que o reconhecessem, Cristo pergunta-lhes se há alguma coisa para comer. A reposta é negativa ao que lhes é sugerido que lancem a rede para a direita. Lançam-na, ficando esta cheia de peixes. João reconhece, então, Cristo. O resultado da pescaria é contado: “cento e cinquenta e três” grandes peixes. 17 e 153, ocultam-se mutuamente. Manuel J. Gandra relembra-nos as contas precisas em Da Face Oculta do Rosto da Europa. Se somarmos todas as unidades entre 1 e 17, chegamos à soma de 153. Este número, então, é identificável com a terceira aparição de Cristo, numa das suas associações possíveis. Manifestação que termina a sua primeira passagem pelo tempo histórico, número transformado em medida perfeita de tempo divino. Perfeita deve ser, igualmente, entendida a sua actuação no espaço. Este Cristo exibe uma corda, unindo cabeça e mãos. Poderá querer referir-se à união entre o pensamento e a acção, ou entre a profecia e os factos acontecidos.

Aqui chegados, poderemos então perguntarmo-nos pelas marcas dos cravos nas mãos. Se nos é apresentado um Cristo ressurgido, assistindo nós a um dos maiores Mistérios do cristianismo, momento solene, perfeito, ocultado em parte por não nos ser permitido ver tudo, porque não a inclusão das suas feridas? Penso que, mais uma vez, a leitura dos Evangelhos Canónicos pode dar essa resposta. A imagem de Cristo não é facilmente reconhecida por todos aqueles que com ele conviveram. Tirando um ou outro episódio em que as feridas são mostradas como prova, sendo a de Tomé exemplar, não é essa a forma usual de o reconhecer. A forma é, quase sempre, qualquer coisa como uma intuição súbita. Talvez seja essa intuição aquela que, em primeiro e último lugar, nos é requerida ao observar esta imagem.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

DIA 30 DE JUNHO....ACONTECE

Na Biblioteca Municipal de Sesimbra
 
10.00
 
Protagonistas: Jaime Cortesão e a Arrábida
Oradores:
António Braz de Oliveira
– Jaime Cortesão e o “risco” da Renascença Portuguesa
Nuno Sottomayor Ferrão
– A Renascença Portuguesa e o percurso político e historiográfico de Jaime Cortesão
Pedro Martins
– Jaime Cortesão, A Renascença Portuguesa e o ensino da história pátria.
intervalo para almoço

15:00
 
Oradores:
Renato Epifânio
– Jaime Cortesão e Agostinho da Silva
António Cândido Franco
– A poesia de Jaime Cortesão
intervalo
Elísio Gala – O franciscanismo de Jaime Cortesão
Roque Braz de Oliveira
– Jaime Cortesão e a Arrábida
intervalo
18:00

Local: Núcleo Museológico da Capela do Espírito Santo dos Mareantes de Sesimbra

Conferência A Arquitectura do Convento da Arrábida, por Luís PaixãoRecital de música e poesia, por Maurícia Teles da Silva

sexta-feira, 25 de maio de 2012

TEMPOS DE HOJE, 5

















Caleidoscópio

Cynthia Guimarães Taveira

Quando o destino nos conduz para diversas mortes e, quando delas renascemos, a consequência é que o mundo passa a ser caleidoscópico. Caleidoscópico no sentido em que deixa de ter apenas uma dimensão. Quando nascemos apenas como corpo ele tem apenas uma dimensão: a cara da mãe surge-nos no berço a sorrir e ela é apenas uma cara que reconhecemos e que sorri. Não tem profundidades complexas nem níveis de entendimento. Os anos passam e a vida vai desdobrando-se em múltiplos sentidos. O caleidoscópio está sempre a girar e os desenhos são seres vivos que geram outros em sucessão, a partir de um centro. Para os que deixaram que a semente da Poesia se desenvolvesse dentro de si, facilmente a reconhecem tal qual o espírito que sopra sobre águas. Ela atravessa a cidade num passeio, ou o campo, ou as estrelas. O mundo é composto de Poesia. Para os místicos, para além dessa poesia, ele é composto pelas presenças que, mais do que pressentidas, se sentem. Para o Artista, para além dessa Poesia e dessas presenças, o mundo é composto de mudança, como disse o nosso Camões. O que ele vê é que presenças ancestrais, carregadas de poesia, o cercam e o amam, o possuem, a ele se unem para que a obra se faça. Quando Deus quer e o homem sonha, como escreveu o nosso Pessoa, o que existe é uma união entre o artista e o divino, núpcias apenas possíveis apenas pela Poesia ou pelo sonho. É num plano onírico de vigília que o mundo se apresenta como um caleidoscópio criativo. É possível cristalizar alguns momentos em arte. Subtilizar a matéria e materializar o subtil. Aquilo que o artista faz é apenas uma ínfima parte daquilo que ainda tem de ser feito. Como se potencialmente todos os momentos de um caleidoscópio girando eternamente fossem possíveis de agarrar, de se tornarem Ser, como se o mundo fosse um grande campo de borboletas mas só algumas fossem apanhadas, e assim cristalizadas pudessem, enfim, ser observadas na sua variedade e multiplicidade de cores e formas.

No filme A Festa de Babette de Gabriel Axel, a artista, uma cozinheira que transforma os alimentos em arte, a páginas tantas diz: “Um Artista nunca é pobre.” Frase que preenche todo o filme e todo o calor da cozinha onde graciosamente ela se move. Um artista nunca é pobre porque está sempre preenchido por essas presenças e essas escutas. O caleidoscópio brilha mais intensamente e move-se talvez mais rapidamente, uma vez que de alguma maneira a arte contribui para a verdadeira evolução do mundo. Tornando Seres todos os momentos em que o humano e o divino se encontram na Poesia e no Sonho.

Hoje, pensar e sentir assim, é considerado retrógrado e fantasista porque a Arte se tornou num aspecto lúdico, num jogo de palavras, cores, formas e sons. Pensa-se e efectua-se aquilo a que se chama arte com a ligeireza e a leviandade com que se chuta uma bola para longe. Na maioria das vezes os ateliers estão vazios de presenças, apenas o auto-denominado artista lá se encontra brincando com os pincéis, ou com as palavras num eco que é só silêncio oco. Perdeu-se na grande maioria dos casos a noção de divino, de sagrado. Recuperar essa dimensão é, também, recuperar uma companhia. Mas não é uma companhia fantasista como um “amigo imaginário” que apenas tem como função o nosso afastamento da loucura. Essa companhia tem uma existência tão concreta como a nossa. Tem uma vontade tão ferrenha quanto a nossa, obriga às lutas com o anjo, à discussão com ele, à procura de uma harmonia com ele. Para a psicologia, isto é uma psicose, tal é o grau de dessacralização com o qual o homem é confrontado nos nossos dias. Porém, esse mesmo psicólogo é capaz de admirar Dante, Camões, Pessoa, não fazendo a mínima ideia da complexidade e da dinâmica de vida que estão por detrás da criação. Quando Camões canta o Amor, canta a Dama amada, não canta uma fantasia infantil, canta o mais alto grau de Amor que humanamente conseguimos alcançar: todo esse amor é projectado para um plano divino e dele, em simultâneo, é seu produto. Se um psicólogo conseguisse entender isso transformar-se-ia num Camões em vida, com os seus altos e baixos e as suas viagens astrais entre terra e céu e não havia psicologia que lhe valesse, nem auto-estima que procurasse e a criação não mais apareceria como terapia para um melhor enquadramento no mundo. A criação apareceria como o único propósito do mundo e o olhar caleidoscópico não seria visto como fuga, remendo, catarse, escape mas sim como o mundo tal qual ele é, na sua riqueza original. Por isso, andarmos um passo atrás na nossa civilização é, sem que o saibamos, andar dois para a frente, ao contrário do que actualmente tendemos a fazer: dar um passo à frente andando para trás. Chegámos a um impasse de passos e toda a tensão sentida no Século XIX, entre um progresso dessacralizado e um passado que é só memória, permanece em pleno século XXI. O caleidoscópio, esse está sempre lá, à nossa espera, do nosso olhar e do nosso sentir.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

ESTE SÁBADO...

 

 

 

 

 


 

 

 

II ciclo de estudos em homenagem a António Telmo

O legado da Renascença Portuguesa: livros e autores Março a Novembro de 2012
Biblioteca Municipal de Sesimbra

 
26 de Maio, 15 horas.
Colóquio Da Cartilha à Gramática
 
Oradores:

Ponces de Carvalho – João de Deus e a didáctica da Cartilha Maternal
Isabel Xavier – A poesia de João de Deus
Rodrigo Sobral Cunha – A Gramática Secreta da Língua Portuguesa

Apresentação das

Actas do IV Colóquio luso-galaico sobre a Saudade por Renato Epifânio

quarta-feira, 23 de maio de 2012

AFORISMOS, 137

Por Eduardo Aroso

Filosofia e arte são universais. Todavia, negar uma filosofia situada – a portuguesa, no caso que nos interessa – seria o mesmo que falar da não existência de uma música portuguesa, de uma arte portuguesa, de uma poesia portuguesa. O singular não tem que excluir o universal, pois este forma-se das relações daquele, um interessante casticismo, como lhe chamou Unamuno. Só pelo particular o vazio, que muitas vezes é o chamado geral, se desvanece para dar lugar ao ser, ao ser algo, tal como um corpo composto de funções e órgãos vários. A alma desse corpo, que o envolve e sustém, é a verdadeira universalidade que tudo toca, depois de preenchido o nada-geral, o homogéneo de coisa nenhuma, a universalidade que irmana e torna luminosas as particularidades.

terça-feira, 15 de maio de 2012

DIA 27 DE MAIO... ACONTECE














No próximo dia 27 de Maio, domingo de Pentecostes, realiza-se, a partir das 11h00, a 22ª Festa do Espírito Santo no Convento Velho da Arrábida, com organização da Associação Agostinho da Silva-Convento Sonho e Fundação Oriente-Convento da Arrábida. Neste dia serão lidos e cantados poemas de António Quadros e Agostinho da Silva e será prestada uma homenagem à escritora Dalila Pereira da Costa, falecida no passado dia 2 de Março. Estarão presentes diversas personalidades ligadas à Associação Agostinho da Silva, ao Círculo António Telmo, à Escola Aberta Agostinho da Silva, à Fundação António Quadros e ainda à Universidade de Évora.

domingo, 13 de maio de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 5
















QUANDO O SOL BRILHA

Cynthia Guimarães Taveira

No outro dia foi uma ex-aluna do Mestrado em Estudos Portugueses falar à turma sobre a forma como tinha escrito a tese. Dizia ela que os livros certos, na altura da investigação, iam ter com ela de alguma maneira e isto, dizia ela, porque se encontrou no “modo de livro”, o mesmo “modo”, que, segundo a explicação dela, fazia com que uma grávida que soubesse que estava grávida, ao sair à rua, notava um número considerável de grávidas pelo passeio fora. Estariam as mulheres grávidas em “modo de gravidez”. O mundo não se havia alterado em nada, no entanto, elas de alguma maneira estariam abertas e receptivas a tudo o que à gravidez dissesse respeito.
Facilmente isto se confunde com a ideia de Rémi Boyer de que, no jardim, não há diferença entre o “dentro” e o “fora”. Mas não se pode confundir. Nesse estado de “modos”, a sua causa é o estado da Pessoa enquanto no jardim não há Pessoa alguma. Não há ninguém. Há apenas uma consciência sem Pessoa. Os acontecimentos desenrolam-se para além da vontade ou do desejo. Os próprios acontecimentos se situam na esfera do Ser. É o momento das constatações e não das intervenções. Sendo que essas constatações são, enfim, a grande intervenção, o grande raio que cai do céu. Quando no jardim, não há diferença entre o “dentro” e o “fora”, isso não acontece por nenhuma obsessão ou ideia fixa. Isso acontece no próprio fluir dos acontecimentos. O jardim dialoga com o jardineiro, não num mero jogo de espelhos, mas num autêntico processo criativo em que a acção e a reacção são apenas Um. O mundo não responde ao “interno” como se fosse uma lua meramente reflexiva, nem o interno reage ou provoca o mundo como se fosse também uma lua passiva dos reflexos mundanos. Um mundo reflexivo é um mundo semi-morto porque implica o não-movimento como estágio de morte. No jardim está tudo em movimento porque lá se encontra a Vida. Há uma finalidade última, como há sempre uma finalidade num gesto de criação. Essa finalidade última une-se à causa primeira ao ponto de não haver distinção. Há verdadeiramente um caminho dentro do caminho. Um caminho de vida dentro de um caminho de morte. Esse caminho é deveras muito estreito e apertado vivendo, no entanto, na mais pura liberdade do gesto. É um caminho sem erro porque o único erro consiste, paradoxalmente, em sair para fora desse espaço de liberdade e de silêncio de que nos fala Rémi Boyer. Não há rectificações de modo a que o objecto coincida na perfeição com o seu reflexo. Porque não há reflexos. Não é um caminho iluminado pela lua. É um caminho iluminado pelo sol.



terça-feira, 8 de maio de 2012

quinta-feira, 3 de maio de 2012

CARTA ABERTA A PEDRO SINDE
















Por Eduardo Aroso

Carta-aberta a Pedro Sinde sobre a sua comunicação Senhora da Noite – a imaginação divina, no Colóquio «Regresso a Pascoaes» (Sesimbra, 21-4-2012)

Sobre a sua intervenção intitulada Senhora da Noite – a imaginação divina, se não estivéssemos entre pessoas de pensamento, eu diria simplesmente gostei porque gostei, e tudo estaria justificado. Como não é o caso, devo dizer-lhe que fiquei impressionado pelo modo como o Pedro abordou o assunto, isto é, foi um poeta que falou de outro poeta, afinal o poeta que há em (ou que é) Pedro Sinde, e que eu já havia descoberto em O Canto dos Seres. Falou em perfeita afinidade e só assim se compreende o que disse sobre Pascoaes, nomeadamente na ideia da meia-noite, da manhã e da tarde, trazendo o inefável para o plano da comunicação para chegar a todos, é certo segundo a sensibilidade de cada um, porque creio que o que tenha havido no plano da razão terá sido captado, diria, de um modo mais uniforme.

Enquanto o Pedro Sinde falava do profundo sentido criativo que há na meia-noite, eu ia fazendo um certo raciocínio que gostaria de lhe comunicar, pois ele prende-se com outro ponto nuclear que nos motiva a todos e que é a quarta casa do horóscopo de Portugal, feito por Pessoa, e interpretado por António Telmo. Duas ou três palavras prévias para nos situarmos melhor: a 4ª casa (lar, família, ancestralidade, tradição, terrenos, estrutura psíquica ou “alicerces”), portanto uma casa de raízes, escura ou obscura, corresponde à meia-noite, opondo-se à 10ª casa (o meio-dia, a luz, a realização visível, o público, a autoridade instituída, o que é oficial). Eu que há já alguns anos me interesso pela astrologia, nunca havia reparado que se tivermos que associar o que se tem chamado filosofia portuguesa ou tradição portuguesa, será à 4ª casa, dado ser este um Movimento sempre “às escuras” no reconhecimento oficial dos meios académicos e culturais instituídos, assunto que podemos legitimamente atribuir à 10ª casa. Assim, a 4ª casa opõe-se à 10ª, mas o sentido de opor-se reveste-se de aspectos um tanto subtis, como vamos observar de seguida. Vemos assim que a tradição filosófica portuguesa e a filosofia oficial ou académica opõem-se, respectivamente, na mesma proporção e sentido que a 4ª casa do horóscopo se opõe à 10ª.

Mas vejamos o que nos diz António Telmo «Tudo quanto se pensa vaticinar para o futuro deve ser lido no quarto quadrante, com início no Fundo do céu (o nadir do horóscopo), ou seja, a quarta casa» (…) «o quarto quadrante do horóscopo é o oposto do segundo quadrante [ou seja, o que eu disse atrás, a 4ª casa opõe-se à 10ª, sendo que cada quadrante tem 3 casas, portanto a quarta parte da divisão dos 12 signos], aquele que define a época dos Descobrimentos tendo por termo Alcácer-Quibir e os Filipes. No Meio do Céu, ao alto [a 10 ª casa, isto é, o que está bem visível], está o trono simbólico de Portugal onde se sentou, ao findar do signo oceânico de Peixes, D. João, Mestre de Avis». Repare-se que não é só a característica de visibilidade que define a 10ª casa, mas também o apogeu ou máxima realização visível. Assim, na astrologia mundana corresponde, por exemplo, à casa da coroação de um rei ou eleição de um presidente da república; na astrologia pessoal significa o apogeu da carreira profissional.

Telmo contrapõe a este facto da 10ª, o trono do Mestre de Avis, a ascensão do socialismo na 4ª casa, o ponto oposto: «No Fundo do Céu (o nadir do horóscopo), que

corresponde ao ano de 1877, deu-se um acontecimento que, na altura, pode ter passado mais ou menos despercebido, mas que marca a orientação que o quarto quadrante imprime a tudo quanto, no domínio político, se passou até agora e se há-de vir a passar no futuro. Foi a fundação do partido Socialista». Prossegue António Telmo «estas conexões, por relação de opostos (do segundo quadrante com o quarto e das casas entre si, da primeira com a primeira, da segunda com a segunda *, à esquerda e à direita da linha zénite-Nadir) [ou seja a linha que vai da 10ª casa à 4ª] resultam da lei geral que faz do hemisfério inferior e nocturno a projecção, como num espelho em modo inverso, do hemisfério superior ou diurno» (…) prosseguindo o autor citando mais acontecimentos marcantes como exemplos.

Ora, é para as seguintes palavras de Telmo que eu gostaria de lhe chamar a atenção «…resultam da lei geral que faz do hemisfério inferior e nocturno a projecção, como num espelho em modo inverso, do hemisfério superior ou diurno». Se relacionarmos o que o Pedro disse no colóquio, quanto às possibilidades genésicas e primordiais da mística meia-noite em Pascoaes, a hora do caos em que tudo começa lentamente a ganhar forma (qual semente no escuro da terra que só pela manhã se vê), logo constatamos que não só o hemisfério inferior e nocturno é uma projecção, como num espelho em modo inverso, do hemisfério superior ou diurno, como (inversamente) o citado primeiro hemisfério, o nocturno, pode ser o arquétipo digamos assim, do segundo, o diurno ou superior. Ou seja, é a noite que fecunda o dia, do caos vem a obra, para que o dia, por sua vez, deixe o “sémen solar” que não arrefeça de todo a luz nocturna, sem o que haveria escuridão permanente e, consequentemente, morte.

No caso do socialismo (ligado à 4ª casa, segundo Telmo), não é ele que fecunda os acontecimentos luminosos da 10ª, é bem de ver, pelo contrário (por isso se lhe opõe), mas, e também segundo o sentido que o filósofo confere ao socialismo como dissolução total, sabemos que a 4ª casa é um fim e um recomeço, e enquanto recomeço é um útero.

Pelos exemplos apontados, creio que se compreenderá melhor a tal subtileza do sentido do aspecto de oposição astrológica de que lhe falei atrás. Os factores em causa, neste caso, o sentido das casas com os seus acontecimentos, devem sempre ser vistos como uma totalidade mais abrangente pois, por exemplo, nada significa dizer alto sem a noção de baixo, ou frio sem a noção de calor. A 4ª casa, sendo o inferno do horóscopo, no sentido do ponto mais baixo e escuro (rege também aos cemitérios, poços e escavações) é também, como disse, o útero de tudo, pois veja-se que a mãe está relacionada a esta casa e à Lua.

O que eu gostaria é que o Pedro, tomando a sua fecunda exposição do tema acima referido, reflectisse nestas relações, onde a meia-noite em Pascoaes parece ter o sentido uterino que é já a vitória sobre a dissolução ou caos, na liberdade feminina e divina de tudo recomeçar, já para não falarmos da observância dos ciclos. Peço-lhe que não entenda esta minha sugestão como “exortação de mestre” (pois em volta do mestre temos estado), mas de alguém que viu na sua comunicação do dia 21 de Abril, em Sesimbra, uma tremenda relação de Pascoaes com aquilo que podemos ler no horóscopo de Portugal.

* Há aqui um lapso que deve ser entendido mesmo assim, isto é, como lapso, pois António Telmo, até por descrições anteriores, vê-se que conhecia mais que suficientemente o assunto do grafismo do horóscopo. Quando diz que a primeira casa se opõe à primeira, queria dizer que se opõe à sétima, bem como a segunda se opõe à oitava.

Um abraço cordial

Eduardo Aroso

23-4-2012

AFORISMOS, 136

















Eduardo Aroso

Há nas profecias do Bandarra de Trancoso e na hipergnose do Espírito Santo uma correspondência. Nelas convergem as promessas de realização e de revelação. Se, no primeiro, o tempo é, por assim dizer, a seiva da profecia “desviada” do tempo histórico, no segundo, sejam quais forem os desvios dos tempos, o erro se sublima em perfeição para novo rumo.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

FAZ HOJE ANOS QUE NASCEU ANTÓNIO TELMO













“Em qualquer ponto da terra que eu me encontre estou no centro comum a ambos, pois a distância que me separa do horizonte é em todas as direcções a mesma e também é a mesma em qualquer ponto do Céu envolvente. No entanto, outro ser que me é exterior está mais à direita ou à esquerda, à frente ou atrás desse centro que eu ocupo. Mas eu sei que do seu ponto de vista ele também se supõe no centro. As duas perspectivas provêm da limitação do olhar e são um engano. Se eu supuser a extensão infinita em todas as direcções, então a centralidade de cada ser aparece como verdadeira e objectiva.

Nasce daqui a noção de um espaço infinito, uma extensão vazia infindável. Não somos capazes de imaginar esse espaço, de o figurar como uma imagem e daí chamarmos-lhe um «conceito». Todavia, é a imaginação que supõe mais a quantidade de espaço para lá do limite do meu olhar e mais ainda para lá, do mesmo modo que posso somar sempre mais uma unidade a um número dado.”

António Telmo, O Portugal de António Telmo, Guimarães Edições, 2010, pág. 117

domingo, 8 de abril de 2012

SABEDORIA ANTIGA, 21


















Cristianismo debaixo de terra

Por Alexandra Pinto Rebelo

Os quatro evangelhos canónicos não são férteis no que diz respeito a referências ao mundo ctónico. Parece que este nível, tão actualizado no paganismo, é propositadamente silenciado. O interesse principal é o ir anotando feitos de Cristo, mostrando-o como o grande propósito. O que estes homens parecem dizer é que estão a assistir a uma (nova?) cosmogonia e a toda a mitologia que daí advém. É uma mitologia não escutada, ao contrário do habitual, mas exibida à sua frente. Estão a assistir a gestos primordiais, tendo isso mais importância do que tudo o resto.
Mateus será aquele que incluirá a marca ctónica mais forte: “ Então, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. A terra tremeu e as rochas fenderam-se. Abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos, que estavam mortos, ressuscitaram; e, saindo dos túmulos depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade santa e apareceram a muitos.” (Mt. 27,51-53)
O que Mateus parece indicar, com estas imagens marcantes e, porventura, assustadoras, é que, no período entre a morte e a ressurreição de Cristo, o nível terrestre e o ctónico ficaram, subitamente, sem delimitação. Mas esta falha temporária de fronteiras é vigiada, no entanto, por um poder superior. São somente os corpos dos santos aqueles que ressuscitam, levando a crer que estes, à semelhança de Cristo, apenas tinham a vida suspensa nos seus túmulos. A sua morte física seria, desta forma, uma mera ilusão. Um percurso necessário, em suspensão de sinais vitais físicos, para que se confirmasse a sua vitória sobre a morte.
Aqui chegados, é impossível não fazer analogias com todo o simbolismo surgido com o aparecimento das sociedades agrícolas. Também as sementes, exemplos maiores de vida suspensa, são lançadas à terra, aí permanecendo até ao seu renascimento. Tal como a Lua, (desaparecida durante três dias antes de ressurgida – “A Lua é o primeiro morto”, segundo E. Seler) as sementes, durante todo o seu processo de oclusão debaixo de terra em morte aparente, reaparecerem devidamente transmutadas. Estes processos, observados e apreendidos, encaminham o ser humano para a evidência de que não existe morte. Torna-se mais legíveis, então, o vasto número de parábolas cristãs relacionadas com o mundo vegetal, pontes indicadoras da possibilidade efectiva de Ressurreição.
O gosto do cristianismo dos primeiros séculos por espaços debaixo do chão, será um encenar cíclico desta suspensão da vida. São construídas câmaras, mais ou menos extensas, sacralizadas sobretudo pelo deslumbramento, e mistério, do próprio processo. Aí, não só os “aparentemente mortos” são depositados, como têm lugar as refeições rituais dos vivos. Refeições festejando, ou solicitando a abundância, dependentes do próprio sucesso das fases agrícolas. Dependentes, pois, da esperança na sucessiva ressurreição das sementes.
Por esta altura, já o cristianismo deixara transbordar a sua latente vocação ctónica. A criação destes espaços reais, subterrâneos, possibilitava a cumplicidade simbólica dos vivos, no germinar das sementes, por proximidade. Em câmaras que, tal como os neófitos (pelo menos os Pessoanos), sabiam que não existia morte. Nem a da alma, nem a do corpo.

AFORISMOS, 135


Por Eduardo Aroso

Já se escreveu sobre o Erro de Decartes, outros querem ter demonstrado que a física quântica destronou erros de Aristóteles, autores vários fizeram livros sobre os Erros de Deus (!), sendo este o título de, pelo menos, uma das obras. Sem prejuízo do que a civilização cada dia aprende e esquece, os chamados seres humanos de “ponta” descobrem constantemente erros nos que os precederam, não havendo assim tempo para descobrir em tal actividade intelectual vestígios de erros de descobertas presentes e futuras.


sábado, 31 de março de 2012

FOTO-REPORTAGEM POR FILIPE NOBRE GOMES

SESIMBRA, 31 DE MARÇO (Biblioteca Municipal de Sesimbra)
A Renascença Portuguesa: Contexto, Panorama e Perspectivas

(da esquerda para a direita) Maurícia Teles da Silva, Pedro Martins, Cynthia Guimarães Taveira, Renato Epifânio, Miguel Real

Maurícia Teles da Silva


Maurícia Teles da Silva e Pedro Martins


Cynthia Guimarães Taveira



Renato Epifânio



Miguel Real



sexta-feira, 30 de março de 2012

AMANHÃ HÁ FILOSOFIA AO VIVO EM SESIMBRA












Congeminações 2012
II ciclo de estudos em homenagem a António Telmo

O legado da Renascença Portuguesa: livros e autores


Março a Novembro de 2012
Biblioteca Municipal de Sesimbra

31 de Março, 15:00

Apresentação do nono número da revista NOVA ÁGUIA: Nos 100 anos da Renascença Portuguesa: como será Portugal daqui a 100 anos?

intervalo

Colóquio A Renascença Portuguesa: Contexto, panorama e perspectivas

Oradores:
Miguel Real – A Renascença Portuguesa: uma visão panorâmica
Maurícia Teles da Silva – O movimento da Renascença Lusitana e a música de Óscar da Silva e Cláudio Carneyro
Cynthia Guimarães Taveira – A Renascença Portuguesa e as Belas Artes – Soares dos Reis e António Carneiro

quarta-feira, 28 de março de 2012

AFORISMOS, 134













Eduardo  Aroso

Não se pode dizer que Deus não surja no caminho do ser humano. Este é que se não apresenta, como deve, ao seu Criador, esquecido da sua origem. É neste jeito de andar no mundo que o ditado popular «quem não aparece, esquece» pode ter um significado mais profundo. Quando Nietzsche propalou o seu dito «Deus está morto», vestiu a frase com a roupa do avesso.

quarta-feira, 21 de março de 2012

HÖLDERLIN PARA A PRIMAVERA















STUTTGART

A Siegfried Schmidt

                                            I

Vivemos de novo uma alegria. Já cedeu a funesta secura,
     E a crueza da luz deixou de queimar as flores.
A sala voltou a abrir-se e o jardim viceja,
     E o vale, refrescado pela chuva, rumoreja brilhante,
Alto, cheio de plantas, aumenta o caudal dos ribeiros e as asas
     Prisioneiras lançam-se de novo para o reino do canto.
O ar está cheio de seres alegres e a cidade, o bosque, está
     Repleto, toda à volta, da satisfação dos filhos do céu.
O encontro é-lhes grato e espraiam-se uns por entre os outros,
     Despreocupados, e nenhum é de menos, nem demais.
Assim o dispõe o coração e a graça de respirar foi-lhes
     Predestinada e concedida por um espírito divino.
Mas os caminhantes seguem também a direcção certa e trazem
     Abundantes grinaldas e cantos, enfeitam
O sagrado bastão com cachos e folhagem e cobre-os a sombra
     Dos abetos; de aldeia em aldeia e de dia para dia passa a felicidade,
E como carroças atreladas e animais selvagens os montes
     Avançam e o caminho suporta a carga apressando-se.

Hölderlin, Friedrich, Elegias, Assírio & Alvim edições, 1999, pág. 57


segunda-feira, 19 de março de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 4



















O Olho

Cynthia Guimarães Taveira

A vida é um sonho. Sonhamo-nos uns aos outros. Sonhamos com teias e nós bem cerrados que não são mais do que o encontro dos sonhos uns dos outros. Os sonhos, que são a vida, permitem que nos encontremos nas esquinas dos acasos. Às vezes sonhamos que estamos tão próximos uns dos outros que, não só nos encontramos, de facto, como, por fim, Acordamos quando essa aproximação se torna Encontro. Os sonhos que sonhamos, as presenças que provocamos, são afinal, formas de abrir aquele olho que “às vezes dorme”.

sábado, 17 de março de 2012

RECORDAR...ANTÓNIO TELMO













Por sugestão de Paulo Santos recordemos:


«[…] O Mesmo E O Outro
Os verdadeiros iniciados são os filósofos.[...] só a filosofia é iniciática. Se há filosofia que o não seja […] [é] a que se aprende nos livros e só neles […]

Os alquimistas, que designavam a iniciação por arte régia[...] não consentiam que o nome de filósofo fosse dado a quem não conhecesse os régios segredos da sua arte. Os súfis, que não são místicos, como confusamente se escreve e diz, mas sábios iluminados que atingiram os mais altos graus de iniciação, exigiam dos discípulos uma profunda preparação de sete anos nas sete disciplinas filosóficas, antes de os lançarem nas experiências subtis que conduzem gradualmente à epoptia, a perfeita contemplação de Deus. Tal o caso, no supremo exemplo, de Ibn Arabî. É muitas vezes lembrada a sua advertência, onde o mais venerável dos mistagogos muçulmanos afirma que filosofia sem iniciação a nada conduz iniciação sem filosofia leva à imbecilidade, advertência que, se não as identifica uma com a outra, as necessita mutuamente.

O engano neste ponto essencial teve o seu início, no Ocidente, na oposição que o Renascimento, sobretudo italiano, criou entre Platão e Aristóteles, com a intenção mais ou menos velada de atacar a Igreja Católica que adoptara o segundo como filósofo de apoio à sua dogmática teológica; e os ocultistas românticos do[s] século[s] XVIII e XIX chegaram ao extremo de afirmar que o discípulo grego representa perante o mestre grego a oposição ao ocultismo. Em termos menos secretos tal oposição surge constantemente na filosofia livresca e cultural marcando toda a diferença entre misticismo e racionalismo. José Marinho escreve longas páginas no intuito de desfazer o engano […] o racional e o irracional são limites moventes, cuja profunda relação se dá onde quer que o espírito se assume como verdadeiro pensamento.

A oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos. Decorreu a cisão […] sem inspiração hermética […] sem assumir a qualidade de hermenêutica […] [como dizia Marinho:] «Hoje se tornou de novo possível, pela adequada hermenêutica dos textos, vermos filósofos […] pensarem o mesmo de diversos modos.» A teologia católica, fazendo da teologia de Aristóteles sua serva, ditou a separação, quando os seus adversários recorreram a Platão para, contrapondo-o ao discípulo, proporem formas de actividade espiritual onde o conhecimento pela fé e pela imaginação dispensa o dogma e se assume como filosofia. Aqui convém distinguir imaginação de fantasia e, sobretudo, lembrar a distinção decisiva entre fé e crença […] A fé do Evangelho, que move montanhas e que tem o seu equivalente no pensamento germânico na vontade mágica dos seus filósofos é, para o nosso pensador, traduzindo São Paulo, a garantia estável de que pode esperar-se a possibilidade de volver o íntimo e seguro olhar para tudo quanto é secreto.

Aristóteles foi, durante vinte anos […] ouvinte de Platão. Só quando este morreu, fundou escola própria, o Liceu, talvez movido por profundas incompatibilidades com os condiscípulos. De resto é o que necessariamente acontece sempre. Todo o ensino vivente, e não o ensino de uma tradição morta, vai criar nos discípulos do mestre que o transmite formas singulares e distintas de convívio com a verdade, por tal modo que, ao dar-se o desaparecimento terrestre do pólo visível desse ensino surgem divergências entre eles e até oposições onde por vezes se perderá a relação com a unidade invisível que parecia garantida pela presença espiritual do mestre, na recordação ou por processos mais elevados. Foi este, entre nós, o caso da escola de Leonardo Coimbra. Homens como José Marinho, Álvaro Ribeiro, Sant'Ana Dionísio, Delfim Santos, Agostinho da Silva, para só citar os cinco mais distintos, criaram obra própria e singular, onde está mais ou menos presente o espírito de Leonardo, mas nem sempre se têm entendido no plano da acção menos inspirada.

Se o discípulo, como se diz, tende a matar o mestre, de acordo digamos com o paradigma trágico e iniciático, é para o integrar em si e na nova ideia que lhe foi dado individualmente anunciar. O conflito, se chegar a dar-se, é sempre entre os condiscípulos. Quanto não é absurdo aceitar que Aristóteles, tendo sido conduzido pela mão de Platão aos mais altos graus da filosofia ou da iniciação, tenha esperado pacientemente longos anos pelo momento em que pôde dizer não! Só a completa ignorância do que é a filosofia, enquanto portadora de um ensino esotérico, pode levar a afirmar o que é uma rigorosa impossibilidade.

[…]

Valete Frates»
págs. 175-179 in Telmo, António, Congeminações de um Neopitagórico, Zéfiro, Sintra, 2009.

segunda-feira, 12 de março de 2012

MANIFESTO PARA OS DIAS QUE CORREM


Agora
que a soberbia e o fanatismo andam de mãos dadas na Casa de Portugal;
que o individualismo egótico se compraz no afã do proselitismo;
que quem se serve dos epigramas não hesita sequer em recorrer a núncios;
que os mestres, logo que partem, se vêem forçados a seguir, submissos, os discípulos conjecturais;
que a pretensão da gravidade hierática encobre o rigor de um clericalismo extreme;
que a estreita baia do método parece servir de corpete ao livre assomo do espírito;
que a incómoda evidência dos textos clássicos é negada até à amputação;
que se chega ao ponto de se julgar moralmente os supostos irmãos espirituais;
que se confunde a plasticidade amorável do universalismo português com a abjuração do rijo cerne da hombridade;
que um estranho modismo exótico, contrário à herança gloriosa e romântica das pátrias, aparece alçado a cânone do pensamento português;
é preciso lembrar que o fundador da filosofia portuguesa, como Álvaro Ribeiro escreveu, foi Sampaio Bruno, que a si mesmo, n’A Ideia de Deus, obra-prima da maturidade, se definia como um “jacobino”, ali onde nos lembra que as ideias, ao invés dos sentimentos, não mudam.
Falemos então de ideias, de uma tradição de pensamento sempre dedicada ao outro, que é o povo, e maiormente a nação, esse substrato da pátria portuguesa.
Falemos de uma escola – a da Renascença Portuguesa – cujos mentores (Pascoaes, Leonardo, Cortesão, Pessoa) fundaram as Universidades Populares, se opuseram ao Estado Novo, defenderam os pedreiros livres e a democracia, sofreram a prisão, partiram para o exílio, tudo em nome do povo e daquela liberdade que algum dia o há-de poder libertar.
Falemos, pois, de uma escola em permanente compromisso com a vida, facho que os continuadores, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, tão bem souberam transportar.
Falemos de António Telmo, propugnando a humildade e a atenção ao outro na sua autobiografia espiritual, esse escrito derradeiro – note-se, derradeiro – em que tão pouco entusiasmo revela perante os caminhos habituais.

Falemos de agora em nome do futuro.

Luís Paixão
Pedro Martins

quarta-feira, 7 de março de 2012

COMENTÁRIO A UM COMENTÁRIO...





A PROPÓSITO DE UM AFORISMO MEU SOBRE PEDRO SINDE E DE UMCOMENTÁRIO *

Eduardo Aroso

«Caro Eduardo: se me permite uma crítica, não me parece muito feliz o aforismo relativo ao Pedro Sinde, nem pelo aspecto do oculto nem pelo aspecto da serpente. Há nos escritos dele uma luminosidade que desoculta e uma visão certeira de um falcão que em nada lembram um serpentear... (João Pedro Secca)».
Antes de mais, pedindo licença ao autor deste comentário para reproduzi-lo, gostaria de dizer que só pelo facto da extensão da minha resposta o trago aqui. Começo por lhe dizer que, a propósito dos meus aforismos, ao verter na escrita o que vai em mim, exponho voluntariamente a minha pequenez humana. Creio que quem ousa escrever aforismos pisa sempre o terreno da dificuldade, senão mesmo da impossibilidade de, em poucas palavras, expressar a essência de uma obra ou pensamento de um autor (não vem agora ao caso a última conversa que tive com António Telmo, ao telefone, que foi precisamente sobre os aforismos de um modo geral e das minhas incursões, em particular). Prossigamos, portanto.
Não é minha intenção qualquer ímpeto de lição, sabedoria e muito menos de mestria, presumida ou assumida. Aliás, já tenho afirmado que, almejando a minha inteira realização em Deus, não sou (nem espero ser) mestre de ninguém, e ao mesmo tempo, e de certo modo, acalento a possibilidade de ser mestre de mim mesmo. Tenho tido a ventura de gostar de aprender com pessoas humildes do Povo (como diria Agostinho da Silva, aprender com analfabetos!) e com outros (que é bom de ver quais são) cuja aproximação se faz naturalmente, isto é, pelo semelhante que atrai o semelhante, no conflito dos contrários.
Mas vamos ao aforismo em causa, relativo ao Pedro Sinde «O oculto serpenteia nele». No resumo dos resumos, repare que eu não explicitei minimamente QUAIS OS MOVIMENTOS DESSE OCULTO. Como certamente sabe, na palavra oculto (tive o cuidado de não escrever ocultismo, o que poderia dar outro sentido à frase) podemos entender – sem querer ser aqui intencionalmente dualista – o bem ou o mal, e é bom lembrar que a própria Bíblia, numa conhecida expressão de Cristo, nos convida a ser «sábios como as serpentes e inofensivos como as pombas». É claro que, no caso em apreço do aforismo sobre Pedro Sinde, só podemos entender o lado luminoso, e assim sendo, quando eu utilizo a forma verbal «serpenteia», digo em potência que em Pedro Sinde há movimento, e se é serpentino é movimento de totalidade. Quando a serpente se desloca não vai em linha recta; segue ora à direita, ora à esquerda (Pessoa, entre outros, lembrou-nos bem deste importante pormenor). Porém, na analogia com o pensamento, e ao contrário do ziguezaguear caótico de qualquer corrente materialista, é um movimento que apesar de horizontal (mecânico), no plano do espírito é como que em espiral. É, assim, susceptível simbolicamente de ser um caminho de totalidade, cujo cumprimento depende apenas do discípulo. É o caminho que pode representar – ora ciclicamente, no discípulo, ou num constante assumir o que se poderia chamar via alquímica de simultaneidade – a razão e o coração; o pensador e o místico; o masculino e o feminino. Em resumo, «serpenteia», no meu aforismo, sugere movimento de totalidade. No caso de Pedro Sinde, recorrendo à metáfora, faz dele como que o caule que a seiva percorre, intensa e promissora, na certeza de haver (ou ser) primavera. É claro que, na abundante dificuldade do aforismo não pode haver farto rigor.
Nos livros de Pedro Sinde O Canto dos Seres e Teoria Nova da Antiguidade, embora sendo obras muito diferentes tanto na temática como na abordagem, há neles, sem dúvida, e utilizando as palavras do João Pedro Secca, «luminosidade que desoculta». Contudo, na tal compleição contrastante dos referidos livros não pretendo dizer que correspondem aos extremos do ziguezague serpentino.
Tomando a parte final do seu comentário, não sei se o voo do pensamento do Pedro Sinde é de falcão, de pomba ou de águia. Nisto, vamos inevitavelmente até à esfinge, talvez mais enigmática que a própria vida serpentina, pois é bem maior a complexidade constitutiva dos seus elementos. Tomando algo da simbologia da esfinge, poderá o voo de Pedro Sinde ter, por exemplo, uma asa de pomba, a outra de falcão e os olhos de águia? O futuro o dirá. Se considerarmos esta (nem tanto paradoxal) hipótese, não estamos nem a negar a esfinge, nem a anular a afirmação de Pessoa «o nosso destino é sermos tudo», nem a negar o meu modesto aforismo. O mais oculto disto tudo - isto sim, bem mais oculto – é que, a existir essa condição, só poderá haver voo numa atmosfera que lhe corresponda.
1 de Março de 2012


segunda-feira, 5 de março de 2012

CANÇÃO TRADICIONAL, JOANINA DE LIBERDADE...















As pombinhas da Catrina,
andam já de mão em mão,
foram ter à quinta nova,
ao pombal de S. João.

Ao pombal de S. João,
ao quintal da Rosalina.
Minha mãe mandou-me à fonte,
eu parti a cantarinha.

Ao passar o ribeirinho,
água sobe e água desce,
dei a mão ao meu amor,
não quiz que ninguém soubesse.

Se tu és o meu amor,
dá-me cá os braços teus,
se não és o meu amor,
vai-te embora, adeus, adeus.

Por ser o pombal tão estreito,
e asas termos pr'a voar,
nós voamos com tal jeito,
que não qu'remos já voltar.

Se alguém nos vê passar,
diz: que lindos que eles são;
nós não queremos já voltar,
mas andar de mão em mão.

Sem ter beira nem patrão,
o voar é nossa sina.
- vão andar de mão em mão,
as pombinhas da Catrina.

sábado, 3 de março de 2012

ADEUS DALILA












Devo-te a vida

Cynthia

sábado, 25 de fevereiro de 2012

SABEDORIA ANTIGA, 20


Os Cinco escudetes no Brasão Português

Alexandra Pinto Rebelo

É curiosa a chamada de atenção de Maria de Lourdes Rosa, na sua obra Santos e demónios no Portugal medieval, em relação ao significado dos cinco escudetes no brasão de Portugal.

Na segunda redacção da Crónica de 1344, lê-se: “E, despois que el rey e o cardeal ouverom todo seu preyto firmado, e ao tempo que lhe avia de mandar a carta, como já ouvistes, desvestyosse el rey de suas vestiduras e disse: - Querovos mostrar, dom cardeal, em como eu som herege. E entom lhe mostrou todas as feridas que ouvera em seu corpo, dizendo e assignando quantas e quaaes feridas ouvera nas batalhas e quaaes nos combates e quaaes nas entradas das villas que tomara aos mouros”.

Este episódio refere-se ao encontro de D. Afonso Henriques com o Cardeal enviado por Roma para fundamentar o seu direito ao Reino. Despindo-se, D. Afonso mostra ao Cardeal as feridas por si sofridas nas várias batalhas pela posse de Portugal. No corpo do Rei, as cicatrizes formam uma espécie de mapa sagrado do território, mitificado pelas chagas. Esta identificação mística, quase, do corpo do Rei com o Reino é a sua sacra justificação para o direito às terras conquistadas.

Ao que parece, esta versão circularia oralmente ainda em vida de D. Afonso Henriques, tendo aparecido em textos escritos de meados do séc. XIV a fins do séc. XVI. Em 1380, o Bispo de Lisboa, D. Martinho, apresenta a mesma justificação ao rei de França, Carlos V: os escudetes estão assim dispostos no brasão de Portugal, visto representarem as cinco feridas que o rei recebera no seu próprio corpo, com a mesma disposição.

A identificação do corpo do guerreiro com as suas armas é muito conhecida. Pelo menos desde a Alta Idade Média era costume, aquando da morte de um nobre (querendo isso dizer, por tradição, guerreiro), as suas armas, ou seja, o seu brasão, ser invertido, quebrado, ou ocultado por uma faixa negra. Ainda há uma dezena de anos, talvez, assisti à ocultação de um brasão que encimava a porta principal de uma casa senhorial, através de um pano preto, pela morte do seu proprietário, em Castelo Branco.

Nesta versão da história, existe uma primeira identificação bélico-mística do corpo do Rei com o do Reino. Na guerra tornada Santa, as feridas surgem no corpo de Afonso, tal como estigmas. Estigmatização obtida, não pelo êxtase, mas pela espada, prova corporal, a única, possivelmente, condizente com a classe guerreira. A segunda identificação, consistirá na representação dessas mesmas feridas no brasão.

Daqui resulta um triplo movimento: Cristo – Rei/Reino – Brasão. Mas a lógica deste movimento é um pouco diferente daquela que nos é habitualmente apresentada.

As chagas do brasão português não serão, desta forma, uma imitação directa daquelas de Cristo. Neste triplo movimento, existem elementos desdobrados ou multiplicados. Afonso será aquele que se torna eleito pela sua gesta, num acto de confirmação (ou eleição) depois da auto-eleição. O seu corpo, desdobrar-se-á, igualmente, entre o corpo-nação, mapa de batalhas físicas, históricas, e aquele coincidente com o corpo-universo de Cristo. As chagas, em escudete, terão então um duplo remetente: o do corpo físico da nação, subsumido no corpo do primeiro Rei, e o de Cristo.

Voltando ao início do movimento triplo, Cristo será, nesta lógica simbólica, também ele desdobrado: a sua quíntupla representação física, adquirida como representação de escatologia universal, projecta-se agora, em imagem e poder, sobre um reino material em particular, Portugal.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

NO PRÓXIMO SÁBADO...







COLÓQUIO “ANTONIO TELMO E A KABBALAH

Estudar e perspectivar o legado de António Telmo a partir das marcas que a kabbalah, sob diversas formas, imprimiu na sua obra é o grande propósito desta iniciativa do Círculo António Telmo, que se realiza no próximo dia 25, sábado, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, a partir das 15 horas. O programa é o seguinte:
Oradores:

António Carlos Carvalho: Uma introdução à Kabbalah
João Pedro Secca: António Telmo e Z’ev Ben Shimon Halevi
Luís Paixão: A Gramática Secreta da Língua Portuguesa
Pedro Martins: Filosofia e Kabbalah

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

ESTRAVAGANCIAS II, 3













Os Raposões

Cynthia Guimarães Taveira


Os raposões do filme “Sonhos”, de Akira Kurosawa. Que fazem eles? Naqueles dias únicos nos quais, ao mesmo tempo, faz sol e chove, sai um cortejo de homens-raposas em ritual pela floresta. São eles os iniciadores, de uma criança que os espreita quando é proibido espreita-los. Que fazem eles para além disso? Dão alguns passos, param e olham fixamente. A única diferença é essa: olham simplesmente com a profundidade dos contos de fadas. Essa profundidade do olhar está ligada aos sentidos: o gesto como tacto, suspenso no tempo e no espaço, o som que pára em uníssono com esses gestos, o olhar que atravessa várias camadas do ser. Esse olhar é de amor. Mas não de sentimentalismo, como se existisse uma espécie de amor que, na sua essência, nasce enlaçado, misturado com a verdade. Uma espécie de verdade implacável que atravessa os seres em voos internos, deixando para trás camadas e camadas superficiais até ao cerne da própria existência.

Os outros são mistérios indecifráveis para nós. Na superfície são máscaras, mesclados de psicologias, historietas, vulgaridades, animalidades, confusões de imagens. No primeiro olhar os outros são sempre surrealistas no absurdo. Como se o que fosse verdadeiro tivesse necessidade de se camuflar em teatro.

Mas quando chove e faz sol, nesse tempo indefinível em que o fogo e a água se misturam na atmosfera, em que é fácil luzir o arco-íris, como aliança entre o visível e o invisível, esses raposões, homens de olhar apurado, saem pela floresta em ritual que é apenas a vivência do mito do próprio momento. Não há actualização do mito nesse instante porque o mito é o próprio instante em que chove e faz sol, é a actualização da actualização. Esse é o momento tradicional por excelência, porque mostra, revela, confirma que a tradição está viva no tempo sem tempo. Mostra que a Vida está viva, que o não tempo é, afinal, todo o tempo do mundo. Daí a proibição de os observar nesse instante. Toda a proibição é um convite em simultâneo, como o paradoxo de chover e fazer sol.

A Tradição, estranhamente, nesse conto, aparece como a possibilidade e a capacidade de contemplar. Mas a contemplação é já morte e é, ao mesmo tempo, a contemplação de um mistério. Um mistério mudo. Um mistério que se aproxima de nós por uma intuição tão forte que toca, literalmente, porque em corpo, a raiz da existência. Mas uma existência que é toda potência, toda essência à beira de uma explosão em manifestação. O corpo, é afinal, potência de manifestação e não manifesto ainda. É nesse limbo, nesse limiar que a exigência de morte aparece. Porque só pela morte se pode dar a manifestação. Nesse sentido, numa primeira volta, o corpo que temos é morto e só numa segunda volta se torna vivo.

Uma das formas pelas quais a Tradição se revela, se mostra, mais do que isso, regressa em Vida à vida, é pelo olhar, o real olhar, porque o olhar é o sentido de ausência (na medida em que há um esquecimento do eu) e um sentido apurado de presença no mesmo instante.

Creio que hoje poucos escutam e poucos ainda mais olham. Mas um olhar que é todo o ser projectado para a frente, para a imagem que contemplam: um olhar que vasa na imagem toda a máscara que somos, todas as camadas, todos os pensamentos, todos os sentimentos, todas as intuições que residem no coração. Um olhar que desagua como um rio no oceano da Tradição, um oceano sem dimensões por conter todas elas.

Nesse pequeno instante em que o olhar desagua, então a Tradição toma conta de nós. Adopta-nos como uma mãe. Torna-nos sua parte, seu instrumento sem a mácula do materialismo puro. Nem se poderá falar de sintonia porque não há partes dispersas nesse gesto (que é estar e ser) que acontece simplesmente. Há uma verdadeira união. Um regresso ao Uno. Um acordo, um acorde musical, um acordar, um coração a dar. Um pelicano, afinal, daqueles antigos que arrancavam do seu coração parte do seu ser, e como em pó de projecção, transmutavam outros na mesma subtileza, na mesma natureza, nas mesmas propriedades. Ouro gerando ouro em gerações múltiplas.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

NAS 101 CARTAS DE ANTÓNIO TELMO
















«A ocultação da natureza constitui um dos fenómenos mais significativos do fim de um ciclo. A palavra de Heraclito 'a natureza gosta de esconder-se' nunca foi tão verdadeira como hoje.» Se é verdade que há um aparente desejo de regresso à natureza, no entanto, diz António Telmo, esse «sentimento da natureza tem hoje duas formas: é, por um lado, o sentimento estético da paisagem ou, mais precisamente, o sentimento fotográfico da paisagem; é, por outro lado, o sentimento higiénico das forças naturais, a pele queimada pelo sol, o ar puro dos pinheiros. Nestes dois aspectos se configura o desejo de um regresso à natureza numa humanidade lassa, fabril ou febril, burocrática, vazia.» E ainda: «A expressão 'regresso à natureza' tem o defeito de poder significar uma espécie de fuga ao stress, como se o homem fosse repousar do cansaço dos dias trabalhosos ou luxuriosos no 'retiro espiritual' de uma casa de campo ou de uma barraca montada sobre qualquer praia.» Sob a aparência esconde-se algo diferente: «a verdade é que esse aspecto e outros análogos que possa assumir o 'regresso à natureza' constituem mais uma forma de cisão radical entre o homem e a terra. Onde quer que vá encontrará sempre outros homens, tão mortos como ele, numa terra morta. O que realmente importa é o encontro do homem consigo na natureza sem ninguém, do homem que por uma transmutação interior se torna capaz de um contacto efectivo com aquilo que a natureza é: o lado oculto das coisas e dos seres.» (António Telmo, História Secreta de Portugal, 129-130)

Lendo o texto de António Telmo, podemos entrever que, por um lado, o homem se coloca face à natureza e não na natureza; daí o impulso que sente de 'tirar' uma fotografia, em vez de parar para contemplar; por outro lado, parece querer apenas tirar partido, de modo utilitário, da natureza para melhorar a sua saúde corporal. Se nenhum destes dois aspectos está errado em si mesmo, no entanto, trata-se de duas manifestações inferiores da sua relação com a natureza. A saúde corporal devia ser uma consequência natural da contemplação, isto é, este movimento do espírito, sabendo ver na natureza ou através da natureza a luz arquetípica do paraíso primordial, de que o homem guarda a recordação no fundo da sua alma, deveria fluir sobre a alma como um orvalho de bênçãos e a alma, por sua vez, dimanaria estes eflúvios sobre o corpo. Como o homem perdeu a capacidade para realizar a sua relação com a natureza a partir de dentro, procura realizá-la a partir de fora apenas.

Seyyed Hossein Nasr narra num dos seus livros um episódio que ilustra de um modo muito belo aquilo a que se refere o António Telmo a propósito da ocultação da natureza: passeava um dia com o seu mestre persa Tabataba'i - sábio e santo como são necessariamente os sábios - numa bela manhã num vale nos arredores de Teerão; tinham acabado de fazer as orações da aurora. A natureza parecia ter-lhes aberto o seu segredo sagrado e dela emanava uma forte presença espiritual. O mestre disse que bastaria que um ou dois 'profanos', isto é, uma ou duas dessas pessoas que não rezam nem têm o sentimento íntimo de comunhão com a natureza, aparecesse para que toda a ambiência espiritual desaparecesse ou se escondesse. Pouco depois aparecem justamente dois indivíduos com as características referidas pelo mestre e, de facto, de imediato toda a ambiência paradisíaca desaparece, toda a beleza sagrada se oculta. O mestre, sorrindo, disse que é o que acontece quando aqueles que são estranhos (a expressão persa refere-se àqueles que não pertence ao núcleo mais íntimo da família) entram na parte mais interior da natureza. Ela fecha-se, escondendo deles o seu sagrado segredo.

O homem sabe sempre, ainda que apenas como um pressentimento no mais fundo de si, que a natureza é o templo por excelência e o lugar, se souber bem olhar, da teofania: uma realidade sacramental, hierática, simbólica, presencial. Por isso, para além do encontro consigo mesmo, referido por António Telmo, e partindo do dito tradicional (de Elêusis ao Islão) "aquele que se conhece a si mesmo conhece o seu Senhor", podemos ainda entrever outro encontro: o da criatura com o seu Criador. Seria necessário, no entanto, que o homem pudesse ainda saber-se, conceber-se, sentir-se criatura. Mas o orgulho e a filautia cegam-no, fechando-o no pequenino mundo das suas fantasias, no mundo cutural, num mundo que é já apenas uma remota criação de uma criação de uma criação ou um sonho de um sonho de um sonho. O cultural não se opõe, como falsamente se diz, ao natural, o cultural deve ser a assumpção transcendentalizante do natural - como a igreja românica prolongando sobrenaturalmente o cimo do monte, elevando-o da natureza à sobrenatureza, no movimento complementar ao da criação divina em que a sobrenatureza se 'naturaliza' ou 'mostra', por assim dizer, na natureza, pela natureza. Por outras palavras: o Criador desce às criaturas revelando-se pela natureza e o homem, criatura suprema, ascende ao Criador sobrenaturalizando a natureza, dirigindo ascensionalmente a barakah da criação.

Esta é a função sacerdotal, por excelência, da humanidade, função com que foi sacramentada desde a eternidade, mas função que cada homem, com essa vocação, deve actualizar nos sacramentos das religiões ou das iniciações, de modo a estabelecer o limite dentro do qual poderá ser pontifex sem correr o risco de profanação ou impiedade.
Pedro Sinde
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