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Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



sábado, 17 de março de 2012

RECORDAR...ANTÓNIO TELMO













Por sugestão de Paulo Santos recordemos:


«[…] O Mesmo E O Outro
Os verdadeiros iniciados são os filósofos.[...] só a filosofia é iniciática. Se há filosofia que o não seja […] [é] a que se aprende nos livros e só neles […]

Os alquimistas, que designavam a iniciação por arte régia[...] não consentiam que o nome de filósofo fosse dado a quem não conhecesse os régios segredos da sua arte. Os súfis, que não são místicos, como confusamente se escreve e diz, mas sábios iluminados que atingiram os mais altos graus de iniciação, exigiam dos discípulos uma profunda preparação de sete anos nas sete disciplinas filosóficas, antes de os lançarem nas experiências subtis que conduzem gradualmente à epoptia, a perfeita contemplação de Deus. Tal o caso, no supremo exemplo, de Ibn Arabî. É muitas vezes lembrada a sua advertência, onde o mais venerável dos mistagogos muçulmanos afirma que filosofia sem iniciação a nada conduz iniciação sem filosofia leva à imbecilidade, advertência que, se não as identifica uma com a outra, as necessita mutuamente.

O engano neste ponto essencial teve o seu início, no Ocidente, na oposição que o Renascimento, sobretudo italiano, criou entre Platão e Aristóteles, com a intenção mais ou menos velada de atacar a Igreja Católica que adoptara o segundo como filósofo de apoio à sua dogmática teológica; e os ocultistas românticos do[s] século[s] XVIII e XIX chegaram ao extremo de afirmar que o discípulo grego representa perante o mestre grego a oposição ao ocultismo. Em termos menos secretos tal oposição surge constantemente na filosofia livresca e cultural marcando toda a diferença entre misticismo e racionalismo. José Marinho escreve longas páginas no intuito de desfazer o engano […] o racional e o irracional são limites moventes, cuja profunda relação se dá onde quer que o espírito se assume como verdadeiro pensamento.

A oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos. Decorreu a cisão […] sem inspiração hermética […] sem assumir a qualidade de hermenêutica […] [como dizia Marinho:] «Hoje se tornou de novo possível, pela adequada hermenêutica dos textos, vermos filósofos […] pensarem o mesmo de diversos modos.» A teologia católica, fazendo da teologia de Aristóteles sua serva, ditou a separação, quando os seus adversários recorreram a Platão para, contrapondo-o ao discípulo, proporem formas de actividade espiritual onde o conhecimento pela fé e pela imaginação dispensa o dogma e se assume como filosofia. Aqui convém distinguir imaginação de fantasia e, sobretudo, lembrar a distinção decisiva entre fé e crença […] A fé do Evangelho, que move montanhas e que tem o seu equivalente no pensamento germânico na vontade mágica dos seus filósofos é, para o nosso pensador, traduzindo São Paulo, a garantia estável de que pode esperar-se a possibilidade de volver o íntimo e seguro olhar para tudo quanto é secreto.

Aristóteles foi, durante vinte anos […] ouvinte de Platão. Só quando este morreu, fundou escola própria, o Liceu, talvez movido por profundas incompatibilidades com os condiscípulos. De resto é o que necessariamente acontece sempre. Todo o ensino vivente, e não o ensino de uma tradição morta, vai criar nos discípulos do mestre que o transmite formas singulares e distintas de convívio com a verdade, por tal modo que, ao dar-se o desaparecimento terrestre do pólo visível desse ensino surgem divergências entre eles e até oposições onde por vezes se perderá a relação com a unidade invisível que parecia garantida pela presença espiritual do mestre, na recordação ou por processos mais elevados. Foi este, entre nós, o caso da escola de Leonardo Coimbra. Homens como José Marinho, Álvaro Ribeiro, Sant'Ana Dionísio, Delfim Santos, Agostinho da Silva, para só citar os cinco mais distintos, criaram obra própria e singular, onde está mais ou menos presente o espírito de Leonardo, mas nem sempre se têm entendido no plano da acção menos inspirada.

Se o discípulo, como se diz, tende a matar o mestre, de acordo digamos com o paradigma trágico e iniciático, é para o integrar em si e na nova ideia que lhe foi dado individualmente anunciar. O conflito, se chegar a dar-se, é sempre entre os condiscípulos. Quanto não é absurdo aceitar que Aristóteles, tendo sido conduzido pela mão de Platão aos mais altos graus da filosofia ou da iniciação, tenha esperado pacientemente longos anos pelo momento em que pôde dizer não! Só a completa ignorância do que é a filosofia, enquanto portadora de um ensino esotérico, pode levar a afirmar o que é uma rigorosa impossibilidade.

[…]

Valete Frates»
págs. 175-179 in Telmo, António, Congeminações de um Neopitagórico, Zéfiro, Sintra, 2009.

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