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terça-feira, 19 de abril de 2011

ASSIM FALAVA ALMADA...



“A grande aflição das gerações actuais está em que a História as traz metidas exactamente entre o fim de uma idade e o inicio de outra. As gerações actuais encontram-se a braços com dois imediatos a cumprir. Dois imediatos quotidianos: estabelecer uma ligação que não é possível entre ambos mas que acontece na Historia serem contíguos. Em face destes dois imediatos a posição do homem actual é dupla: cumpre com o que está e obedece ao que vem a chegar, não pode deixar de servir o que ficou, mas não lhe sobra nada de todo o seu tempo para o que há-de vir; não pode raptar-se a um fim fatal e inglório de que há-de participar forçosamente quando afinal todas as suas esperanças estão postas na luz nova que já raiou.


Não há espécie de heroísmo em querer contrariar estes dois imediatos: um há-de morrer e o outro há-de nascer. E também não há espécie de heroísmo em querer favorecer qualquer deles: para um é tarde de mais, para outro é demasiado cedo.

O que morre tem direitos adquiridos, o que nasce ainda não tem o hábito desta memória.

Mas é de memória que se trata: esquecer o que está e recordar a novidade que aí vem. Recordar porque é idêntica, novidade porque não há igual. As idades são idênticas e desiguais.

O complicado será dizer à mocidade que exerça a sua memória de preferência no que não assistiu ao que assiste. É complicado que se tenha de dizer à juventude que o imediato que intimamente mais lhe interessa, e que representa a tradição da continuidade humana, é precisamente a memória do mais antigo que há. Nem a mocidade nem a juventude de hoje estão aptas a entender que é este afinal o uso próprio da memória.

Da memória dos factos a responsabilidade é nossa, das gerações; contudo, o pior é quando os factos se desligaram da memória. É este o caso actual da Humanidade: os factos desligaram-se da memória humana. Tem a palavra o “aprendiz de feiticeiro”. (…)

Pode haver factos formidáveis, ideias transcendentais, podem ambos ensoberbar-se a ponto de assombrar a Terra inteira, mas de uns e de outros, embora de todos reze a História, só os da memória humana fazem passo.

Aqui se entendera melhor a existência de dois imediatos, um o das ideias e factos que resistem ao outro que faz passo na História. Há mais de três séculos que começou um dia este equívoco dos dois imediatos e quanto mais tempo vai desde esse dia mais violentas se apresentam as ideias e os factos por elas gerados, porque não há transcendência que lhes valha, nem técnica de organização que os aguente. Este equívoco atravessou toda a Idade chamada Moderna, por isso mesmo ficou no ar. Este equívoco continua hoje, avolumadíssimo pelo tempo, e cai sobre nós, cujo heroísmo consistirá em suportarmos a não ligação de dois imediatos que se acometem e sem possibilidade de luta sequer, um serviço que excede as possibilidade humanas; mas assim mesmo, excedendo as possibilidades humanas, coube-nos a nós também e acrescentado com a respectiva consciência do caso e da sua não solução.

Assim se explica que hoje a avidez de ir é incomparavelmente maior do que a avidez de estar. Já não se sabe fazer uso da memória. Se se deseja ir é para estar, logo, só se deseja estar. Isto é para ficar ou voltar. Voltar ou ficar é para estar. Essa avidez de ir é hoje bem significativa da impossibilidade de estar. É um perene, um vitalício ir sem estar. O Mundo tornou-se um empecilho para nós e nós um empecilho para o Mundo. Estamos vergonhosamente quites.

Mas está prestes a terminar este eclipse da Humanidade por causa dos dois imediatos. A constância do Sol remeterá tudo outra vez para os seus lugares. Deixem a Humanidade ter a sua memória, deixem-na ter só um imediato, o do seu tempo, dêem-lhe inteiro o quotidiano e vereis que ela pode e sabe estar.”


Almada Negreiros, citado por Lima de Freitas em “Almada e o número”, Editora Soctip, 1987, pág. 24

 

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