(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



terça-feira, 31 de janeiro de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 2








Fernando Pessoa & Rémi Boyer, um diálogo espelhado

Cynthia Guimarães Taveira

Tomaremos como ponto de partida a perspectiva de Mircea Eliade, a partir da qual estabelece três tipos de iniciação, ou três categorias iniciáticas explicitas na História das Religiões, sendo que A primeira compreende os rituais colectivos pelos quais se efectua a passagem da infância, ou da adolescência para a idade adulta”(1), é a chamada iniciação tribal e é obrigatória para os membros de uma comunidade tradicional. A segunda “… compreende todas as espécies de ritos de entrada numa sociedade secreta, num Bund ou numa confraria.(2) Este tipo não é obrigatório, é muitas vezes reservado a um único sexo (a grande maioria das sociedades secretas são masculinas), sendo os casos dos reservados aos dois sexos muito raros, como é o caso dos Mistérios greco-orientais. E, por fim, uma terceira categoria:

“… aquela que caracteriza a vocação mística, ou seja, ao nível das religiões primitivas, a vocação do «homem-medicina» ou do xamã. Iniciação esta na qual se destaca o valor dado à experiência pessoal, em que os indivíduos estão destinados - quer queiram quer não - a participar numa experiência religiosa mais intensa do que aquela que é acessível ao resto da comunidade. Dissemos: quer eles queiram quer não, porque é possível alguém tornar-se «medicine-men» ou xamã após uma decisão pessoal de se apropriar dos poderes religiosos (aquilo a que se chama a «busca»), mas também por vocação (o «chamamento»), ou seja, porque é forçado a sê-lo por seres sobre-humanos.”(3)

Tomaremos, igualmente, como ponto de partida a definição existente no dicionário de símbolos para a palavra Iniciação:

"Iniciar é, de certa forma, morrer, provocar a morte. Mas a morte é considerada como uma saída, a passagem de uma porta que dá acesso a outro lugar. À saída segue-se uma entrada. Iniciar é introduzir.”(4)

Dos três tipos de iniciação apontados por Mircea Eliade aqueles que, neste caso, mais nos interessam são os dois últimos. O primeiro, a iniciação na puberdade, existindo também no ocidente, nas três religiões do Livro, é obrigatório e dirigido aos membros de uma comunidade como introdução num mundo simbólico, teórico e prático. Os dois últimos são mais elitistas, por assim dizer, caminham do geral, por exemplo uma sociedade secreta, para o particular, para o individuo. Há como que um afunilar nas vias iniciáticas e, no entanto, esse afunilar, ao terminar no indivíduo único, pode gerar, por sua vez, movimentos regeneradores ao nível de uma comunidade, por exemplo, Cristo pertencerá, com certeza, ao último tipo de iniciação apontado por Mircea Eliade, a sua iniciação foi directamente conduzida por forças não-humanas sobrenaturais (ficando aqui a sua origem humana ou não em segundo plano na análise). É, ainda assim, na concentração de um único indivíduo, Cristo, que se origina uma nova religião, com todos os seus níveis: exotérico (por exemplo, os ritos de passagem para a idade adulta, como o Crisma), esotérico (por exemplo, sociedades secretas que fazem girar as suas iniciações em torno de temas cristãos), e ainda as iniciações individuais (por exemplo o caso dos santos místicos), que originam, por sua vez, movimentos regeneradores dentro do próprio cristianismo; é, portanto, um movimento circular aquele que preside à iniciação no ocidente.

Tanto Rémi Boyer como Fernando Pessoa partem do principio que existem vários tipos de iniciação. Fernando Pessoa estabelece três tipos de iniciação:

"Há, primeiro, e no nível ínfimo, a iniciação exotérica, análoga à iniciação maçónica () que serve para pôr o indivíduo em condições de poder dar-se o caminho esotérico, de poder buscar, pelo contacto, embora esotérico, com símbolos e emblemas, o verdadeiro caminho. O mais exterior e nulo dos sistemas iniciáticos - como é hoje o da maçonaria - serve este fim. ( ) o único fim com que os Rosa-Cruz instituíram a maçonaria exotérica é o de pôr muita gente em contacto com, por assim dizer, o aspecto externo da verdade oculta (). Há depois a iniciação esotérica. Difere da primeira, em que tem de ser buscada pelo discípulo, e por ele desejada e preparada em si mesmo. «Quando o discípulo está pronto», diz o velho lema dos ocultistas, «o mestre está pronto também». Há por fim a iniciação divina. () vem directamente, e por cima de todos, das mesmas mãos, do que chamamos Deus.”(5)

Embora a Maçonaria seja uma sociedade secreta, não se dirigindo a toda a comunidade, tem, para Fernando Pessoa, um papel semelhante àquele descrito por Mircea Eliade quando se refere à Iniciação com vista à passagem da puberdade à idade adulta. No fundo, há na Maçonaria, como nesse tipo de iniciações, regras de conduta que são transmitidas, uma base teórica com vista à especulação e ainda um conjunto de símbolos e rituais que integram o neófito num sistema de valores. A crítica de Pessoa à Maçonaria como tendo um valor nulo iniciático é ainda mais vigorosa do que a de Rémi Boyer quando este, após conotar a Maçonaria com a Iniciação na Cidade e os Rosa-Cruz como sendo o protótipo da Iniciação no Jardim, afirma:

"A Iniciação na Cidade está estabelecida em torno de constrangimentos. A doutrina será privilegiada como objecto do saber. A Cidade estabelece, aliás, listas de objectos iniciáticos e não iniciáticos (o alimento, a tecnologia, a sexualidade) assim como distingue o profano e o sagrado, nos espaços exteriores como nos espaços interiores.”(6)

Poder-se-á dizer, e retirando das entrelinhas algumas palavras invisíveis destes dois textos, que o ritual maçónico incorre no erro de ser um teatro sem alma. O Despertar, entenda-se, pratica-se no sentido em que o indivíduo se encontra no estado de vigilante ou em estado de vigília, ou ainda, nas palavras de Almada Negreiro, "à escuta do universo”(7). O mesmo problema suscitado pela Iniciação é levantado em relação à Arte, não havendo muita diferença entre aquele que pratica uma certa vibração ou frequência dentro do silêncio, aqui como processo iniciático e o artista que deixa que a inspiração nele flua, à boa maneira medieval, isto partindo do principio que, no inicio, maçons eram aqueles que praticavam a arte da pedra. A arte como duplo sopro que molda as formas no areal: o vento molda a areia e sopra, por sua vez, segundo e seguindo as formas desse areal moldado por ele em influência criativa mútua (as bacias semânticas das quais nos fala Gilbert Durand). É sempre um princípio superior que se espera que influencie o artífice:

"A iniciação representa verdadeiramente e legitimamente o espírito, animador principal de todas as coisas, enquanto no que diz respeito à «pseudo-iniciação», o espírito está naturalmente ausente. Daqui resulta imediatamente que a acção assim exercida, em vez de ser realmente «orgânica», só pode ter um carácter puramente «mecânico».(8)

Rémi Boyer é mais descritivo relativamente aos processos de funcionamento maçónicos, visando demonstrar a contradição no que se refere às palavras Igualdade e Fraternidade:

"Em Loja, a palavra circula de cima para baixo e de baixo para cima. A deslocação de Loja em Loja está submetida ao controlo hierárquico () O saber é esperado vindo do outro, de fora, ainda que por vezes seja «de fora de em si mesmo».(9)

Faz, deste modo, um aviso atento à diferença existente entre iniciação externa e iniciação interna, sendo que o de fora em si mesmo será trabalho meramente intelectual, sem a participação do espírito, ainda que solitário. Toda esta hierarquia piramidal existente em Loja acaba por “…impossibilitar o Companheirismo tradicional, que é, no entanto, o que justifica a Iniciação na Cidade.”(10) Igualdade e Fraternidade são dois conceitos, portanto, dificilmente alicerçados, uma vez que implicariam uma certa horizontalidade, uma determinada Távola Redonda, na qual os Iniciados estariam igualmente posicionados face ao Centro. Em pirâmide verticalizada, tal distancia não é possível. A Fraternidade pura, entre irmãos de um mesmo pai e de uma mesma mãe, é difícil de encontrar numa Sociedade que distingue Aprendizes, Companheiros e Mestres; o mais velho, o mais sábio, está numa plano acima do neófito Aprendiz.

Também a face especulativa da Maçonaria não é poupada, nesta discrição que permeia a crítica: tendo raízes operativas sobre a matéria e, tendo sido minimizado, ao longo dos últimos quatro séculos, o trabalho manual sobre a pedra, dá-se a impossibilidade de realizar a Obra: A realização da Obra-Prima é muitas vezes esquecida para se contentar apenas com o conceito de obra-prima, com a sua ideia.” (11)

Se Fernando Pessoa fala da Maçonaria como a face exotérica, exterior daquilo que supostamente guarda uma sabedoria oculta, e se afirma até que foram os Rosa-Cruz que instituíram a Maçonaria, provavelmente numa alusão a um qualquer período coincidente com a passagem da Maçonaria operativa à especulativa (talvez como esforço de resgate e salvação de alguma sabedoria em risco de se perder), Boyer fala dessa face exterior da Ordem iniciática tendo em vista o apelo tradicional da supremacia do Espírito sobre a matéria:

"A Cidade promove as organizações iniciáticas que não passam de criações humanas, veículos imperfeitos e ecos muitas vezes longínquos das vias iniciáticas, sendo estas, na sua essência, «não humanas», entenda-se «não condicionadas». (12)

Sendo o Iniciado na Cidade aquele que se mostra, que se dá a conhecer, enfim, que é um

"conquistador, inscrito no esforço, por vezes em sobre-esforço; quer progredir, evoluir, atingir o divino, etapa após etapa. É uma visão prometeica, típica da «pessoa», do «eu», do ego fascinado pelo devir. O iniciado na Cidade está ainda sobre a influência da «pessoa» () Perdido no duplo constrangimento da Cidade de Deus e da Cidade dos homens, o iniciado na Cidade cai por vezes no pacto faustiano.” (13)

Como se poderá dar a passagem da Cidade para o Jardim? É Fernando Pessoa que, falando das habilitações indispensáveis aos candidatos, nos revela essa passagem. Notamos aqui igualmente as duas matérias primas que regem estes tipos de iniciação: na Maçonaria a matéria-prima é a pedra, no Jardim, a madeira. Numa primeira fase o homem construiu com madeira, numa segunda fase com pedra: "...por isso a arte da carpintaria que aparece como auxiliar a maçonaria, é-lhe anterior, mais primitiva, portanto, mas também ligada à matéria orgânica, sensível e mais subtil: A suprema arte do carpinteiro trabalha com a matéria do mundo e os aprendizes têm de transformar-se em pássaros para não sentirem a vertigem sobre os altos andaimes.” (14)

É a madeira, segundo António Telmo, a matéria do mundo, e ainda Em português, matéria é madeira, que se arranca das florestas“ (15), sendo as raízes, matrizes, e dando ainda um ensinamento Maçónico: O Grande Arquitecto do Universo edificou o Templo do Mundo sobre a madeira" (16). Matéria mais subtil, portanto, obrigando os aprendizes a transformarem-se em pássaros para que não caiam das alturas, tendo sempre em vista que Em Tiferet, no centro dos centros, já não há esse perigo de cair, porque o baixo é o alto e o alto é o baixo. O Sol não cai, imóvel no centro do seu sistema. Pois para que lado há-de cair, se já não há lado?”(17) Esses aprendizes dejardinagem devem ter características fundamentais:

"Ser um simbolista () para quem os símbolos são coisas, vidas, almas, e para quem, paralela e conversamente, as coisas e os homens tenham, em certo modo, a vida irreal, a analógica dos símbolos, devem estudar as matérias com simpatia, que pode ser induzida com um grande poder de imaginação, de despersonalização, de auto-sugestão, e, por fim, saber nas ler nas entrelinhas, pois os livros maçónicos, e sobretudo os públicos, por isso mesmo que são públicos, não são nem podem ser escritos em linguagem que não seja a linguagem que lá está.”(18)

E Pessoa chama a atenção mais à frente: É impossível chegar a qualquer entendimento íntimo da Maçonaria sem ter conhecimento da chamada Ciência Hermética”(19) e aqui dá-se então o passo fundamental: está o aprendiz no limiar, no portal de acesso ao jardim. Mas não está ainda no jardim. A despersonalização terá de ser dupla: morte da pessoa e morte daquilo que mais ama: os símbolos, primeiro uma morte dos símbolos como suporte de um ritual, em seguida a morte efectiva de todos os símbolos (num percurso que, lembremos, é de morte e renascimento), isto porque Quem tenha em si o poder de sentir pronta e instintivamente a vida dos símbolos não precisa de iniciação ritual.“(20), palavras que mais uma vez vão ao encontro das de Rémi Boyer: Qualquer via começa onde acaba a imitação e a repetição, onde se apaga a organização iniciática. Ela é realmente um abandono das formas, incluindo das formas sagradas que são os ritos, para penetrar o Grande Real.”(21)

O problema da repetição e da criação é aquele que se enlaça com a própria natureza e seus segredos, a manutenção dos ciclos em repetição é sempre constituída também por uma arritmia breve mas suficientemente forte (porque provém de um tempo forte, o sagrado) para que haja mudança. É assim que, no pensamento hermético, nada é absolutamente equivalente na natureza. Um pássaro gera outro da mesma espécie, mas em si são dispares, com pequenas diferenças quase imperceptíveis, mas que geram a renovação das gerações, como padrões que mudam devagar, ou músicas que se transformam noutras com ligeiras alterações nas notas até à aquisição final de uma forma totalmente nova, e, no caso do sagrado, Totalmente Outra. Diríamos que as pequenas intervenções do Espírito Santo vão gerando pequenas mutações com o propósito de uma perfeição final. Larga-se o papel do caseiro do jardim, que mantém a casa e entra-se num outro estado, o do Jardineiro que cria o jardim dentro de si:

"O iniciado não tem qualquer necessidade de nomear a Coisa. Ele é a própria Coisa. Ele é o próprio Jogo da Energia e da Consciência, o jogo sem eu, o jogo sem palavras e sem males pois a oposição obsessiva entre o bem e o mal -- característica da Cidade e das suas leis liberticidas -- dissolveu-se na Imperiência da Liberdade Absoluta.”(22)

Chegámos, aqui, ao terceiro elemento, o da Liberdade, que, afinal, na iniciação maçónica era, tal como a Fraternidade e a Igualdade, afinal uma lei liberticida, uma não-liberdade. E os símbolos, esses que eram suporte de meditação, que se erguiam em dança nos rituais, que brilhavam em cima de panos escarlate, são, afinal, parte de um mundo ilusório, eles pertencem a este mundo apenas, de alguma maneira eles morrem e o neófito morre com eles:

"Mas o verdadeiro significado da iniciação é o de ser este mundo visível em que vivemos um símbolo e uma sombra, e o de ser esta vida que conhecemos por intermédio dos sentidos uma morte e um sono, é o de ser quanto vemos uma ilusão. A iniciação é o desfazer gradual e parcial dessa ilusão. A razão para ser simbólica é não ser a iniciação um conhecimento mas uma vida e por conseguinte devem os homens pensar pela sua cabeça o que os símbolos mostram, pois de tal modo não apenas aprenderão as palavras em que se exprimem, mas viverão por si próprios as suas vidas“(23),

ou nas palavras de Rémi Boyer, num outro livro: As Vias Reais são feitas para aqueles que são reais, que vivem, em vez de serem vividos“(24). O mistério da morte iniciática é, ainda assim, silenciado, por todos os hermetistas, sendo apenas comunicado por uma linguagem simbólica, como por exemplo morrer de amor, em Dante e Camões, na linhagem dos Fiéis dAmor, a abertura da matéria em Alquimia, ou ainda, as mortes fragmentadas em êxtase dos místicos, em visão e vivência corporal, traduzida, por exemplo, por Bernini na magnífica estátua na qual Santa Teresa de Ávila desfalece em frente a um anjo que segura uma seta.

É nesta dupla condição, de morte em vida e vida em morte, numa espécie de suspensão num abismo, que é possível caminhar pelo Jardim e conter, em simultâneo o Jardim dentro de si. Porque não há ego, nem eu, o Iniciado não se mostra nem demonstra como o Iniciado na Cidade, ao invés, ele “… oculta-se. Para vivermos livres, vivamos ocultos, diz o Mestre Jardineiro.”(25)
Foi dita a frase a Rémi Boyer por Lima de Freitas: O Modernismo abre espaço para a Tradição passar”. É  uma frase digna de um Fiel dAmor. Assim, na perspectiva de Boyer, o Modernismo vai ser o movimento que se solta e um movimento solto de antigos espartilhos simbolistas e decadentistas. São os  Modernistas, nestes tempos próximos de nós, os inventores  do próprio tempo e, na sua vertigem de invenção, de criação, de arte, de alguma forma, projectam-se até ao limite de um Futurismo vivido antecipadamente, acabando por alterar as leis do tempo que são sempre constrangimentos, que são sempre condicionantes, até atingir um não-tempo:

"O iniciado no Jardim é um poeta, um fazedor - palavra que define o alquimista -, um profeta do não-tempo, um teósofo. Ele sabe que tudo já está cumprido, que ele não está em devir. Ele é o Absoluto. Ele é. A iniciação no Jardim não é conquistadora, é libertária, é uma Recordação, segundo Hermes, uma Reintegração, segundo Martinez de Pasqually, um Re-conhecimento da sua Liberdade Absoluta, para Mestre Eckhart, como para Abinavagupta. O iniciado no Jardim está des-mascarado, é acéfalo. Nesse sentido, o iniciado no Jardim opõe-se ao profeta. É um hipo-feta, palavra forjada por Rabelais para designar aquele que se recorda do que já passou, do antigo. Mas este «antigo» é mais antigo do que o antigo, é original; é por isso que ele é totalmente novo e vanguardista, tanto na sua expressão como na sua impressão.”(26)

O iniciado no Jardim reencontra-se também com a matéria-prima, sendo que o seu ofício externo e visível na sua expressão e impressão possa ser o da criação, domínio para o qual ele nasceu (raíz do verdadeiro adepto), de um Jardim, de um Poema, e o seu interno é o de um Mestre (poderemos dizer de um mestre de cerimónias, se bem que as cerimónias sejam produto de um Mistério, traduzidas na Alegria que preside a Vida) que conduz, ou antes, abre a porta para que se dê a iniciação, esta sim, subtil e derradeira, mas apenas como um destino que se cumpre num fluir natural a par (e sempre em sintonia) com o fluir sobrenatural e, no qual o desejo é axializado, e não terreno. A sua matéria-prima é viva, os objectos dos quais se socorre já não estão dentro dos limites e divisões do sagrado e do profano:

"No Jardim, não há objecto iniciático e objecto não-iniciático. Qualquer situação pode beneficiar de um tratamento iniciático. Não é a situação externa e interna que importa, mas sim a relação de consciência mantida com a situação, que a torna a própria matéria da Obra.”(27)

Ele é um despertador: No Jardim, o ensinamento é como o bater de asas da águia. Uma palavra, um olhar, uma alusão, um silêncio, um gesto, uma imobilidade despertam para o Grande Real“(28), mas um despertador no âmago, na verdade, no plano em que não há eu, ele desperta ao ponto de não haver distância, separação entre ele e o outro, porque se tudo é passível de tratamento iniciático, e a sensibilidade desperta reside no Absoluto, então ele sofre mais no corpo dos outros do que no seu próprio corpo“(29), digamos que, em termos iniciáticos, ele vive mais a morte do outro do que a sua.

Se até aqui estávamos no plano da Liberdade, regressamos mais uma vez, mas agora em viagem interna e oculta, ao plano da Igualdade e da Fraternidade. Numa voz em coro com a de Fernando Pessoa, diz-nos Rémi Boyer: A Confraria dos Jardineiros da Rosa designa uma axiologia composta por todos aqueles que passaram para lá da Aparência das aparências e se reconheceram como o Absoluto, o próprio Senhor"(30); indo ainda mais longe na descrição de tal estado, Fernando Pessoa escreve não designando os Rosa-Cruz mas sim a Ordem de Cristo:

A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito ou passe. Não precisa reunir-se, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns aos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela, já se lhe não pertence. (…). Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Não se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: “quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também. “E é na palavra “pronto” que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.

Fiel à sua obediência - se assim se pode chamar onde não há obedecer -, à fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros - chamemos-lhe sempre assim - não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelos simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação.”(31)

É então desvendada a verdadeira metáfora, provocada pela Maçonaria quando menciona pedreiros livres, fraternos e iguais entre si. Hierarquizada, ritualizada, com juramentos, obediências e lealdades, símbolos, uma matéria-prima existente apenas como decoração (sem que ninguém a trabalhe, de facto e literalmente) e ainda um Grande Arquitecto do Universo, dúbio, às vezes, pela ausência de crença em princípios espirituais, desde o século XIX, a Maçonaria nada mais é, afinal, do que uma Grande Alegoria do que será uma iniciação interna, efectiva e actuante, vinda directamente das profundezas do coração da Tradição.

Tanto Fernando Pessoa como Rémi Boyer partem de uma crítica (sobre um ponto de vista analítico totalmente impessoal no apelo da observação) do chamado mundo externo para chegar ao interno; uma via iniciática externa, a Maçonaria, e outra, interna, a da Arte Hermética. Por um percurso um pouco sinuoso, é indicada, pelos dois autores, a possibilidade de se sair de um circulo vicioso, que é no fundo o circulo vicioso da própria vida enquanto “somos vividos” e não “vivemos”. Este trabalho procurou acompanhar apenas (e não recriar pelas próprias palavras) o caminho elaborado por estes dois autores na procura de uma Via Iniciática verdadeira, dentro do esoterismo ocidental. No final, fica suspensa a questão, até porque Fernando Pessoa brincava facilmente com palavras, mas sobretudo com ideias: não será uma alegoria também o que o poeta escreveu relativamente à aparentemente extinta Ordem Templária de Portugal afirmando ter tido o seu término exactamente no ano do nascimento do poeta? Não terá antes re-nascido com ele? Se “O jardim está onde está o iniciado“(32), e ainda, “a Obra-Prima é realizada“(33), não será este, afinal, o retrato do poeta enquanto iniciado e iniciador?

Notas

(1) Eliade, Mircea, Ritos de Iniciação e Sociedades Secretas, Edições Ésquilo, 2004, pág. 22
(2) Obra cit., pág. 22
(3) Obra cit., pág. 22
(4) Chevalier, Jean; Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos, Ed. Círculo de Leitores, 1997, pág. 377
(5) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(6) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 92
(7) Negreiros, Almada, A Invenção do Dia Claro, Ed. Assírio & Alvim, 2005, pág. 12
(8) Guénon, René, O Reino da Quantidade e os sinais dos Tempos, Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1989, pág. 229
(9) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 91
(10) Obra cit., pág. 91
(11) Obra cit., pág. 92
(12) Obra cit., pág. 94
(13) Obra cit., pág. 96
(14) Telmo, António, O Mistério de Portugal na História e n’Os lusíadas, Ed. Ésquilo, 2004, pág. 26
(15) Obra cit., pág. 266
(16) Obra cit., pág. 266
(17) Obra cit., pág. 266
(18) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 168
(19) Obra cit., pág. 170
(20) Obra cit., pág. 175
(21) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 101
(22) Obra cit. pág. 102
(23) Obra cit., pág. 178
(24) Boyer, Rémi, O Louco de Shakti, Ed. Hugin, 1998, pág. 7
(25) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 94
(26) Obra cit., pág. 97
(27) Obra cit., pág. 94
(28) Obra cit., pág. 94
(29) Boyer, Rémi, Poeiras de Absurdidade Sagrada - Livro Solar, Co-Edição Zéfiro e Arcano Zero, 2011, pág. 44
(30) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero, 1ª edição, 2011, pág. 105
(31) Pessoa, Fernando, Obra em Prosa de Fernando Pessoa, A procura da Verdade Oculta - Textos Filosóficos e esotéricos, prefácio, organização e notas de António Quadros, Ed. Europa-América, 2ª edição, 1989, pág. 231
(32) Boyer, Rémi, O Discurso de Sintra - Metafísica & Iniciação, Co-edição Zéfiro e Arcano Zero,edição, 2011, pág. 92
(33) Obra cit., pág. 92

domingo, 29 de janeiro de 2012

EXTRAVAGÂNCIAS II, 1


A Dança

Cynthia Guimarães Taveira


A Dança cumpre-se em três momentos: o da música, o da beleza, o das palavras veladas.
(Dos olhos ao cabelo,
da ponta dos dedos ao ventre,
dos saltos para longe da terra,
das asas que se abrem, do gesto amplo e amplificador)
A dança é:
A dança é do corpo e transcende-o.
A tradução do cosmos
O eco da voz que reside no espaço oculto
A dança não resume, nem minimiza por ser totalizante.
A dança é a voz e o corpo dos deuses
A voz e o corpo dos homens.
É onde ambos se encontram
A dança é a contra-face da morte como nada.
A dança não se impõe. Realiza-se no espaço e no tempo.
É a grande e meta-linguagem
A única, que de verdade chega aos céus e os arrasta com ela.
A dança é um mito vivo. Inesperado.
A dança é aquilo que ninguém exclui
A dança é o que de absoluto se faz para se chegar ao Absoluto
A dança é o corpo da Magia.
A Magia a sua alma
O Espírito denso, em ciclo que se fecha,
O seu corpo



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

TEMPOS DE HOJE, 4














Do símbolo ao sinal

Cynthia Guimarães Taveira

Nesta queda da civilização assiste-se à passagem progressiva do espaço quase infinito da visão simbólica do real à finitude imediata do sinal. Da viagem pelos vários reflexos, sentidos, adquiridos e emitidos pelo símbolo, passamos progressivamente para o entendimento imediato de um sinal, reduzido a um único reflexo, a um único sentido, sem que este tenha sido produto da aquisição duma pluralidade de teias semânticas, mas sim da simplificação e da redução de vários sentidos, num único vector, frequentemente traduzido no caminho que vai da acção à reacção imediata.

Da mesma forma que o mito passou de “história verídica” a uma “falsa história”, assim as dimensões simbólicas, em que o ser se movia num espaço e tempos plásticos, passaram à instantaneidade de um momento fixado nos limites de um espaço; há uma espécie de substituição do cinema pela fotografia; do movimento e fluxo temporal nasceu o instantâneo fotográfico; a inversão é marca da nossa época; a vida engana o tempo, cristaliza-o numa série de secções, numa esquizofrenia que ultrapassa a doença mental naquilo que tem de excepção e marginal para se tornar a normalidade.

O medo do tempo e da morte resulta numa série de fragmentos fotográficos sem continuidade entre si, podendo ser analisados separadamente; o relativismo superou-se na impossibilidade de não mais ser necessária a relação entre elementos iguais dentro de vários contextos. O contexto substituiu o elemento, este é apenas um produto daquele, já nada é per si. O contexto é absorvido pelo elemento, e o elemento é um produto deste. O elemento é a contemporaneidade absoluta. O relativismo, em ultima instância, é o absolutismo do eu e dá uma relevância extraordinária a um dos símbolos arcaicos do hermetismo, o Uroboro, no qual os extremos, efectivamente, se tocam. Esta é a marca das ideologias: o individuo nada é fora de uma ideologia, porque de uma forma macabra a ideologia se vai alimentar do individuo e só assim se mantém viva, e o indivíduo, por sua vez, só tem existência, valor, utilidade, se nascido dentro de uma ideologia. E tudo isto se passa instantaneamente. Poder-se-ia dizer que a lua está morta, pois já não há um reflexo, por pálido que seja, do próprio indivíduo. A ideologia é o indivíduo, como a cauda pertence à boca do Uroboro. O reflexo, a reflexão não mais é necessária. O reflexo dos espelho, que pode retorcer, distorcer, inverter fica na esfera do ausente. Narciso não necessita mais de um espelho pois afinal só conhece uma realidade: a sua. Ao iniciar viagem para dentro do espelho, de alguma forma, retirou-lhe a utilidade. Não é necessária reflexão, pois esta passou ao estatuto do imediatismo.

Deu-se a passagem da espada ao tiro. A espada com os seus artífices, os seus rituais, as suas memórias, os seus mitos, as suas sugestões, os gestos dançados precisos a que obrigava, é substituída pelo dígito no gatilho de uma pistola desenraizada, sem artífices sábios que a tivessem elaborado, sem ritos nem mitos, memórias, sugestões ou gestos de sabedoria adquirida por gerações. Instantaneamente dá-se um tiro. A vida tem o valor semelhante ao da morte. Um valor nulo. Só representável nessa instantaneidade. O tempo é vencido, aniquilado e o espaço superado. A memória torna-se desnecessária perante um instantâneo espacio-temporal. Há hoje uma forma de Zen sem a perfeição do gesto. A história e o tempo afundam-se no oceano do momento. Os gestos imperfeitos repetem-se num esgotamento dos minutos, a auto-flagelação desta civilização é tão sincera como um mestre budista ao erguer uma flor no instante de um gesto perfeito. Daí o engano, o perigo e a miséria humana.

Provavelmente a Terceira Vaga, descrita por Alvin Tofller como sendo a da tecnologia e que acabou enraizando o homem em fios e fusíveis, em electricidades dogmáticas, é apenas a causa natural de uma Vaga, ou de uma Era em que a “des-simbolização” crescente tenha sido elaborada pela administração e imposição de Ideologias nascidas, ainda de que uma forma inconsciente, na Revolução Francesa. O aparecimento da Ideologia quebra a visão do tempo cíclico, pois com as Ideologias quebra-se o ciclo das gerações ininterruptas: velho, homem, jovem, criança. Resta apenas uma Ideia, traduzida num único líder, ou num único apelo. O conhecimento da história trouxe a mais valia do conhecimento de que as ideologias (sempre traduzidas em regimes políticos), são substituíveis, e que estas utilizam parte do símbolo, fragmentam-no num número reduzido de significados, pois só assim consegue sobreviver. O nascimento das ideologias coincide com o progressivo desaparecimento de uma Era simbólica, que só pode existir com a noção de um tempo cíclico ou espiralado (como é o caso das Religiões dos Livros e a sua noção de Telos, o fim do Tempo). Porque a ideologia se fixa num único ponto. Deus morre para dar lugar a uma ideologia. Todas as ideologias contêm em si o germe da morte, uma vez que a perfeição é, afinal, alcançável, o paraíso está perto, e a estagnação num limbo de felicidade é o seu verdadeiro propósito.

Tudo se passa no mesmo lugar e num único tempo: uma tentativa de usurpação da ideia de imortalidade, que não se restringe a uma qualquer cidade proibida fechada nos muros, mas que se abre a todas as cidades. A visão da imortalidade pode ser assim a visão da morte “em vida”, uma vez que toda a criatividade desemboca, no seu mais profundo íntimo, num beco sem saída, acaba mal vista e mal vinda num lugar que se entende como sendo “já perfeito”. Esse lugar são todos os lugares (assim o determina a globalização -- nova ideologia em ascensão). A visão poética do mundo, a mesma onde se move o símbolo, só pode existir com a noção de distância temporal espacial. O tempo estando mais curto pelo estreitamento das distâncias (qualquer pessoa em 24 horas pode dar a volta ao mundo, ou em menos de um minuto pode telefonar para qualquer parte) resultou numa “fuga para a frente”, na tentativa da sua disseminação. O tempo é fonte de terror (como tão bem nos chamou a atenção Mircea Eliade) e, no entanto, precioso. Se o símbolo do centro teve a importância que teve na Idade Média, como Jerusalém a alcançar após uma série de peregrinações e provações, ou se esse centro estava em Deus, também difícil de alcançar, ou se esse Centro estava no equilíbrio procurado nas filosofias orientais, hoje existe uma poli-morfologia de centros. Não há mais a percepção de um só centro, mas de vários e, em simultâneo, as distâncias e o tempo encurtam cada vez mais. O resultado, por mais paradoxal que possa parecer, é a ausência de centro. Tudo se move num único ponto (um ponto não é o Centro, o ponto marca apenas um lugar, o Centro representa todas as potências latentes e concentradas), tudo existe dentro de uma única realidade, e essa realidade é o sinal. Instantâneo, próximo e facilmente acessível, compreensível, imediato e vazio. O próprio relativismo só faz sentido dentro de um único ponto. Para lá dele não há relativismo possível, nem visão poética ou simbólica, porque para além do sinal não há nada. E o relativismo existente dentro desse universo fechado e paralisado é o próprio vazio. Como vazia acaba por ser uma sala multicultural, fundindo as culturas a pouco e pouco, acabando com as diferenças, as distâncias, caminhando rapidamente para esse zénite de autocombustão e desaparecimento. Vazio que invade todas as esferas do ser e que se traduz pela falta de encantamento, de deslumbramento, uma visão da velhice mais perto do cadáver do que da criança. Mas será esta a realidade?

Enquanto não formos compostos por uma aglutinação de electrónica e bactérias vivas, como já vem sendo o sonho dos novos líderes das tecnologias (desconhecendo, por certo, o símbolo do Golem), ainda poderemos pensar e sentir como seres humanos e não como seres híbridos que já vêm vindo, misturas explosivas de impulsos electrónicos e corações naturais que pulsam. Aliás, o privilégio desta época é que poderemos, ainda, ser humanos, porque o que aí virá serão robots, uma outra existência longe de nós. Que nos resta senão essa expectação que é a de sermos humanos, independentemente dos alinhamentos deveras suspeitos dos telejornais? Para sermos humanos necessitamos do símbolo, tanto como da água que compõe o corpo. A resposta não está nas teorias complicadas dos córtex cerebrais, ou das psicologias aplicadas a todas as frustrações das vidas. Está simplesmente em recuperar toda a dimensão simbólica latente dentro das culturas e dos seres. Sem essa dimensão simbólica somos o instrumento preferido de uma ideologia qualquer, que escolhe apenas uma fatia da enorme circunferência do simbólico para melhor manipular as massas. Porque é assim.

O símbolo, na sua essência, escapa à Ideologia, que normalmente só aproveita parte dele; o seu raio de acção é semelhante ao cálamo da mística sufi: a pena suprema criada por Deus para escrever o destino, o seu comprimento é o mesmo que vai do céu à terra e a sua largura estende-se de Oriente a Ocidente. Na sua variedade há inúmeros símbolos que podem, de algum modo, tentar a definição de símbolo: a moeda partida em duas metades que podem voltar a ser unidas; a saudade, símbolo de símbolo também, porque consciente da distância que vai do dizível ao indizível, do visível ao invisível, do compreensível ao incompreensível na sua totalidade, da periferia ao centro.

Qualquer dicionário de símbolos possui várias definições de símbolos; os interessados poderão consultar e tentar decifrar esse mistério que é o símbolo, porque ainda há mistérios, por mais que haja uma tentativa científica de nos obrigar a crer que tudo é cognoscível e, mais tarde ou mais cedo, compreendido, mais uma vez, na tentativa de aniquilação das distâncias.

A dimensão do mistério é uma dimensão simbólica e humana. No plano do simples sinal, um dicionário de símbolos é uma fuga ao real, pois não existe somente numa realidade mas em várias. A inversão dos símbolos é, por certo, uma marca da actualidade, e chegou a tal ponto que o símbolo, praticamente, é considerado uma fuga ao real sinalético, o único possível, em vez de ser uma viagem ou percurso para a realidade na sua multiplicidade, como o é para alguém com o pensamento simbólico intacto (se é que isso ainda é possível), e não com a actual assimbolia psíquica, que embora possa ser a incapacidade de representação e compreensão de sinais, tem como consequência a impossibilidade de simbolizar e de usar a imaginação. Para a sinalética já é necessária imaginação, para a simbologia é necessária muita imaginação, e a assimbolia é cultivada como um vírus nas estufas das ideologias.

Quando aqueles que, fascinados, mergulham a cabeça num dicionário de símbolos em busca de uma resposta ao apelo que vem do fundo da natureza humana, rapidamente constatam que há símbolos que parecem terem sido deturpados ou mesmo invertidos, virados de pernas para o ar, num mundo de ponta-cabeça, onde no seu triunfo deixa de ser a sátira para se tornar no mais sério dos problemas: onde fica a sátira hoje? Onde é que ainda é permitido um trocadilho absurdo como o das festas saturninas de riso mal contido, porque subitamente quem é escravo torna-se senhor, quem é criança bate nos pais, quem é homem passa a mulher, o animal mais fraco conduz o carro com o animal mais forte? Onde fica o mecanismo de compensação de um Carnaval? Já não há possibilidade de compensação, porque já não há espaço para margens, nem marginais. A excepção é a regra, e a regra é excepção, fora disso nada existe.

O mundo dos símbolos é um mundo de perdição, não abonando uma época na qual a obsessão do encontro consigo próprio parece reinar. Por um lado fica-se perdido, por outro, alguma coisa começa a fazer sentido, uma dupla espiral, no ADN do imaginário, ascendente e descendente. Quem descobre a dimensão simbólica descobre que está perdido e que aí ficará por muito e muito tempo. O que se procura hoje é o contrário, a ideologia reinante é a do esclarecimento, os homens querem-se esclarecidos como no século das luzes, encharcados em enciclopédias multimédia; ao invés, o símbolo imita Deus na sua aparente distância e incompreensão. Um sinal não estimula dúvidas, um símbolo suspende a verdade na sua respiração, sustém-na sem a revelar por completo. O símbolo é o maior susto moderno que podemos ter, porque joga com as ilusões que procuramos, engana-nos e esclarece-nos, e o paradoxo é a cascata natural onde mergulha.

É necessário o regresso ao espanto: ao espanto perante a inversão das coisas. Ao espanto menos bom de quem vê a dimensão humana escorrer pelos dedos, de quem questiona o significado que vão dando àquilo que dantes eram símbolos ricos e motores de pesquisa de vida, para passar a simples sinais de trânsito, dizendo-nos como reagir, e para onde ir. E ao espanto melhor de quem descortinou no meio do labirinto ( símbolo perdido, aliás) a força da espada e o seu significado profundo da separação das águas. Porque é que certos símbolos se transformaram em sinais? Porque é que se desvirtua, escava e se esventra a forma do seu conteúdo? O preço da simplificação é um crescente complexo de culpa por nada sabermos sobre o sentido e o significado. Uma parcela que seja. O esclarecimento resiste ao desvendamento. O primeiro não requer tempo, nem paciência, nem amor; o segundo é feito seguindo o movimento serpentino do engano e do encontro, numa aproximação enamorada da verdade. Requer relações, complexificações, dúvidas, erros, atalhos que se tornam longos caminhos e longos caminhos que revelam ser apenas atalhos. Requer que andemos de braço dado com a nossa própria vida. E isso, lamento, mas é extremamente humano e pouco robótico. Antes de atingirmos o estado de humanos fundidos com circuitos eléctricos já andamos a treinar há muito tempo a desumanização. Quando chegar a hora dos clones multifunções estaremos já suficientemente preparados para ser encaixotados para outro planeta…

Para a abertura de uma Era, de um estado de espírito, de um novo ser, é necessário que algo se rasgue, que algo se abra ou se quebre, é essa a lei da natureza, e isso, no início, exige uma espada, por mais que os pacifistas sinaléticos se exaltem por verem nela apenas um sinal de guerra e morte. Estranhamente, a espada pode ser um símbolo de vida e é necessária. Sem ela não há separação, por exemplo, da luz e das luzes. Ligada ao sacrifício (outro símbolo a reter), é ela que pode devolver o seu a seu dono, o conteúdo à sua forma, o sentido ao seu significado, e que separa o mal-entendido do bem entendido. Ela é símbolo da destruição da ignorância onde se balouçam os sinais que nos cercam. Todo o simbolismo da espada está ligado à luminosidade, ao “golpe de um raio”, à lâmina que cintila, e, se for de dois gumes, melhor, pois contém a polarização, o masculino e o feminino dentro de si, e será mais perfeita que nunca, a separar a ilusão da alusão, a dança mágica efectuada pelos símbolos numa evocação do transcendente. Não é em vão que o arcanjo do Juizo Final empunha uma espada numa mão e uma balança na outra.

Para olhar o mundo, a vida, a existência e, provavelmente, a essência de outra forma, sem dúvida, hoje, talvez mais do que nunca, é necessário acercarmo-nos do mundo com uma espada na mão. E isto não se passa ao nível mental furtivo e obsoleto dos jogos de cartas de Tarot, das conchas, búzios e cristais, que nos dão uma sensação de conforto e paz interior e, sobretudo, lucro a meia dúzia de profetas de sopas aquarianas mal confeccionadas. Isto passa-se ao nível da iniciação (embora esta seja talvez a palavra mais complexa do mundo), quase sem paz interior, única, pessoal e intransmissível, sem ordens ou seitas.

O tempo dos mestres praticamente acabou. Resta o homem e seus símbolos pois, como escreveu Fernando Pessoa, “quem tenha em si o poder de sentir pronta e instintivamente a vida dos símbolos não precisa de iniciação ritual”. Porque é da vida que se trata. A vida de todos os dias, desde a noite assaltada por sonhos impiedosos que nos espantam, deslumbram ou mortificam, até ao erguer do sol, ao sair para o mundo e darmo-nos conta que os símbolos estão lá, sempre estiveram, que não são apenas sinais de trânsito, ou sinais transcendentes de mais para o nosso simples percurso, do nascimento à morte, mas que são a viagem necessária ao interior de nós, da nossa civilização, e talvez, do nosso futuro, e se assim for, só poderemos recear o passado, como o fazem os chineses, e não o tempo que virá, uma vez que para se conhecer o passado é necessário o exercício da imaginação. Porque a iniciação não pode ser mais, hoje, senão o conseguirmos mantermo-nos acordados o mais possível, o maior tempo possível, no meio do caos e do cais desta partida constante que é a de estarmos vivos, e sempre a meio da viagem. Enquanto formos humanos, claro.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

PROGRAMA E TEXTO DE APRESENTAÇÃO - Congeminações 2012


Congeminações 2012
II ciclo de estudos em homenagem a António Telmo
O legado da Renascença Portuguesa: livros e autores

Março a Novembro de 2012
Biblioteca Municipal de Sesimbra

“Dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana”, eis, nas palavras de Jaime Cortesão, o propósito fundamental da Renascença Portuguesa, movimento cultural, patriótico e cívico de importância superlativa na vida espiritual do nosso país, e de que, em 2012, se comemora o primeiro centenário. Reunindo, além do citado Cortesão, outras figuras de primeira grandeza como Teixeira de Pascoaes, Leonardo Coimbra, António Carneiro, Fernando Pessoa, António Sérgio ou Raul Proença, a Renascença Portuguesa, apesar das vicissitudes e contradições que a percorreram ao longo de duas décadas, desenvolveu uma acção de inestimável grandeza e efeitos duradouros no panorama mental nacional, mediante a realização de conferências, a promoção de uma intensa actividade editorial, em que avulta a publicação da revista A Águia, ou a criação de universidades populares.

Parte importante deste legado ímpar projecta-se na Escola Portuense de Sampaio Bruno e Leonardo Coimbra, continuada pelo movimento da Filosofia Portuguesa, onde Álvaro Ribeiro, José Marinho e Agostinho da Silva pontificam como expoentes. Daqui à figura tutelar de António Telmo vai um passo pequeno, mas significativo, no seio de um percurso aventuroso que o Círculo António Telmo, o MIL – Movimento Internacional Lusófono, a Nova Águia e os Cadernos de Filosofia Extravagante, em parceria com a Câmara Municipal de Sesimbra, se propõem celebrar, homenageando, uma vez mais, o autor da História Secreta de Portugal.

António Telmo foi o primeiro Director da Biblioteca Municipal de Sesimbra, concelho em que, no ano em curso, por uma notável coincidência, se assinala meio século de leitura pública. Daí a opção por um programa que evoca sobretudo as principais figuras do movimento renascente ou as que, por qualquer forma, lhe estão próximas ou são afins, como a de João de Deus, bem como certas obras marcantes de cariz literário ou filosófico que, com a chancela da Renascença, chegam até nós, casos do Regresso ao Paraíso, de Pascoaes, e de O Criacionismo, de Leonardo, ambos saídos a lume em 1912, e cada qual motivando, por si só, a realização de um colóquio; ou do Húmus, de Raul Brandão, marco decisivo na evolução do moderno romance português.

Celebrar o autor de Os Pescadores constitui, aliás, um óptimo pretexto para acentuar a tónica local e regional reconhecível nas Congeminações 2012, ciclo em que a figura maior de Jaime Cortesão, sobretudo considerada na sua ligação com a Arrábida e com a tradição franciscana portuguesa, nos surge resgatada do injusto esquecimento a que tem sido votada.

Por fim, serão ainda de notar a abrangência e a diversidade dos temas e dos oradores que compõem as propostas destas Congeminações, a franca abertura do programa a modos de expressão artística de abordagem menos usual neste género de iniciativas, casos das belas artes, da música ou do cinema, certo enfoque nele conferido às questões educativas pelo prisma da língua pátria ou o tom prospectivo que, de algum modo, se lhe pode reconhecer.

PROGRAMA
Março a Novembro de 2012
Biblioteca Municipal de Sesimbra

31 de Março, 15:00

Apresentação do nono número da revista NOVA ÁGUIA: Nos 100 anos da Renascença Portuguesa: como será Portugal daqui a 100 anos?

intervalo

Colóquio A Renascença Portuguesa: Contexto, panorama e perspectivas

Oradores:
Miguel Real – A Renascença Portuguesa: uma visão panorâmica
Maurícia Teles da Silva – O movimento da Renascença Lusitana e a música de Óscar da Silva e Cláudio Carneyro
Cynthia Guimarães Taveira – A Renascença Portuguesa e as Belas Artes – Soares dos Reis e António Carneiro

21 de Abril, 15:00

Apresentação da segunda série da revista A ÁGUIA (edição fac-similada da Al-Barzakh),
Por M. N. Vieira

Colóquio Regresso a Pascoaes

Oradores:
António Carlos Carvalho – António Telmo e Teixeira de Pascoaes
Eduardo Aroso – Teixeira de Pascoaes, Coimbra e a Renascença Portuguesa

intervalo

Pedro Sinde – Senhora da Noite: a imaginação divina
Pedro Martins – Do Maranos ao Regresso ao Paraíso


26 de Maio, 15:00

Colóquio Da Cartilha à Gramática

Oradores:
Ponces de Carvalho – João de Deus e a didáctica da Cartilha Maternal
Isabel Xavier – A poesia de João de Deus
Rodrigo Sobral Cunha – A Gramática Secreta da Língua Portuguesa


30 de Junho, 10:30

Protagonistas: Jaime Cortesão e a Arrábida

Oradores:
António Braz de Oliveira – Jaime Cortesão e o “risco” da Renascença Portuguesa
Nuno Sottomayor Ferrão – A Renascença Portuguesa e o percurso político e historiográfico de Jaime Cortesão
Pedro Martins – Jaime Cortesão, A Renascença Portuguesa e o ensino da história pátria.

intervalo para almoço

15:00
Renato Epifânio – Jaime Cortesão e Agostinho da Silva
António Cândido Franco – A poesia de Jaime Cortesão´

intervalo

Elísio Gala – O franciscanismo de Jaime Cortesão
Roque Braz de Oliveira – Jaime Cortesão e a Arrábida

intervalo

18:00
Visionamento do filme O Convento, de Manoel de Oliveira

intervalo para jantar

22:00, na Capela do Espírito Santo

Conferência A Arquitectura do Convento da Arrábida, por Luís Paixão
Recital de música e poesia, por Maurícia Teles da Silva


29 de Setembro, 15:00

Colóquio Raul Brandão revisitado
Oradores:
António Reis Marques – Raul Brandão e os pescadores de Sesimbra
Teresa David – Leitura(s) de Húmus de Raul Brandão: Para ver a (T)terra, para ver o Homem, para ver o Céu
Ruy Ventura – História e Memória na obra de Raul Brandão

27 de Outubro, 15:00

Apresentação do décimo número da revista NOVA ÁGUIA: Leonardo Coimbra - Razão e Espiritualidade: nos 100 anos de "O Criacionismo (Esboço de um Sistema Filosófico)".

intervalo

Colóquio Leonardo Coimbra no centenário de O Criacionismo

Oradores:
Carlos Aurélio – Criacionismo: Ocidente, Arte e Vida Poética
Joaquim Domingues – A teoria e a prática da educação em Leonardo Coimbra
Elísio Gala – A arte poética n’A Alegria, a Dor e a Graça

24 de Novembro, 15:00

Lançamento de Interiores, quarto volume dos CADERNOS DE FILOSOFIA EXTRAVAGANTE, apresentado por Abel de Lacerda Botelho

Colóquio A Renascença Portuguesa e o futuro de Portugal

Oradores:
João Pedro Secca – António Telmo e as novas gerações
Helder Cortes – A Renascença Portuguesa e o interior de Portugal
Paulo Santos – A Renascença Portuguesa: recolocação dos problemas
Pedro Paquim Ribeiro – A Renascença Portuguesa e o Amor

Conferência de encerramento: A Renascença Portuguesa – um balanço centenário, por António Braz Teixeira

domingo, 15 de janeiro de 2012

LEITURAS DE EDUARDO AROSO, 2

















Na foto:
o sorriso inconfundível do Anjo na Catedral de Amiens

NOTÍCIAS PÚBLICAS VERSUS CONHECIMENTO (GNOSE) *

Eduardo Aroso

A propósito da natureza de certas notícias públicas recentes e que, como é evidente, baralham a cabeça do público quanto ao seu significado (pois não são matéria de mercados, de futebol ou de coisas mais ou menos pragmáticas e sempre flutuantes), releio o livro «Para a história da MAÇONARIA em Portugal - alguns subsídios recolhidos por António Carlos Carvalho», editado pela Vega, em 1976. Comprei-o, por acaso, logo depois de ter aparecido e depois não o li por acaso. Como toda a gente sabe, dentro de uma mesma temática, é quase infinita a natureza do que se pode escrever e publicar, às vezes tão diferente como o dia da noite. Não faria mal que todos os que se interessam pelo tema (re) ler o citado livro, bem como os que não têm ideia suficiente do que ele seja. Poderiam todos beneficiar em esclarecimentos essenciais, pelo menos em alguns capítulos do livro, para depois aceitar ou rejeitar. É que, como em todos os assuntos da vida, saber de onde vimos dá mais garantia de saber onde (e como) estamos e, com base no caminho feito, especular com alguma margem de verdade para onde as coisas poderão ir - no perigo ou na salvação. Mas são as palavras de António Carlos Carvalho, e não as minhas, que aqui quero citar:
«Maçonaria «versus» Igreja – combate sem vencedores», página 183. A razão principal do choque e até da hostilidade feroz existente entre a Maçonaria, na sua generalidade (e no continente europeu), e a Igreja Católica, desde há alguns séculos, reside num equívoco mútuo, no erro cometido por ambas – o comprometimento com os assuntos do reino de César.
Ora a missão de cada uma deveria dizer respeito, pelo contrário, respectivamente, à criação do reino de Deus na Terra e à conclusão do plano do Grande Arquitecto do Universo. Desviando os seus interesses e preocupações para os assuntos puramente terrenos e temporais, desejando a todo o custo recolher nos seus rebanhos respectivos apenas o homem exterior, tanto a Igreja como a Maçonaria teriam fatalmente de se envolver em discórdias e em ataques mútuos, frutos somente de má compreensão do que deveriam ser as respectivas missões neste mundo.
Sabemos que a Maçonaria, enquanto foi organização iniciática de mester, teve o seu destino intimamente ligado à vida da Igreja – a Igreja medieval latina compreendia, ou tinha recolhido sob o seu tecto protector, organizações de carácter esotérico e de forma iniciática, sacerdotal, cavaleiresca e artesanal, como as dos maçons ou pedreiros-construtores».


* «Gnose» pode não ser, neste caso, o termo mais correcto. No entanto, a sua intenção é livrar a palavra «conhecimento» do sentido vulgar e exterior.

14-1-2012

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

LIMITAÇÕES

Pedimos desculpa aos nossos leitores pelo facto deste blogue estar, neste momento, com limitações, não sendo possível aceder em condições quer a textos antigos, quer a mensagens.
Como se costuma dizer: "É de lá". Aliás, "de lá", têm vindo outros problemas, nomeadamente, a dificuldade que é colocar um texto com um grafismo no mínimo decente, sem que os ítálicos desapareçam ou que os espaços entre linhas não fiquem absolutamente grandes, sendo necessário todo o engenho e arte para a configuração de um simples texto.
Aos "de lá"  pedimos um pouco mais de atenção.
Aos "de cá" pedimos as nossas desculpas e deixamos os nossos lamentos.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

POSTAIS DA ARRÁBIDA, 1


Presunção e água benta…

Pedro Martins

Há uns meses, disse a alguém – creio que ao António Carlos Carvalho – que não se me dava em fazer uma aposta: o anunciado Dicionário de Luís de Camões seria olímpico na desconsideração de António Telmo. À imagem do que sucedera com o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português.

Fiz mal em não apostar. Saído a lume no final do ano que passou, o Dicionário não dedica ao filósofo uma só linha das muitas entradas que o compõem. Vítor Aguiar e Silva, que coordenou o pesado volume, comete assim, em última análise, a proeza de ignorar o mais lúcido, audaz e original hermeneuta do príncipe dos poetas portugueses, a quem Telmo, desde a História Secreta de Portugal, consagrou uma parte importante do seu labor especulativo.

Como não é de crer que um tão eminente camonólogo, académico informado e atento, possa desconhecer títulos fundamentais do pensamento filosófico português (e – note-se –da bibliografia passiva camonina) como o Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Filosofia e Kabbalah, Congeminações de um Neopitagórico ou A Aventura Maçónica – Viagens À Volta de um Tapete, Seguido de: Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões: Onde se revelam alguns segredos guardados n'Os Lusíadas, obra já póstuma, sou forçado a concluir que Aguiar e Silva fez vista grossa a algo que aborrece, não compreende ou simplesmente rejeita. Não por acaso, Sampaio Bruno e Agostinho da Silva, que com Telmo quase definem uma linhagem espiritual e uma tradição interpretativa, são também postos de lado, e Fiama Hasse Pais Brandão, que nos desvelou o cabalismo do Camões cripto-judaico, mal é referida, nos cerca de duzentos artigos do Dicionário.

Certo que Aguiar e Silva não era obrigado a apreciar ou a entender tudo quanto de relevante respeitasse ao poeta. Mas não lhe podia ignorar a existência, devendo dá-lo de empreitada a quem, de alguma sorte, pudesse suprir a sua própria incapacidade. Ou será que as sucessivas, espantosas demonstrações operadas no Desembarque, ou as perplexidades e hipóteses inscritas e anotadas na Autobiografia e Sobrenatural, não são, de todo, importantes, e, por isso, credoras de um módico de atenção dos camonologistas?

Não creio, claro está, que Aguiar e Silva houvesse, para o efeito, de recorrer ao auxílio prestimoso de um seu homólogo tão avisado como António Cândido Franco, universitário arguto, sumamente sensível à subtil insinuação da anagogia, e que, num estudo publicado no terceiro volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante, justamente põe a nu a debilidade interpretativa de que enferma o camonismo do professor de Coimbra.

Mas semelhante imperativo deveria sempre ser cumprido, posto que o fosse com o propósito antipático, e que se me antolha baldado, de refutar a poderosa leitura télmica de Luís de Camões. Só assim não seria enganosa a publicidade da Editorial Caminho, que, a propósito, nos promete “um vasto e rico The­saurus da camonís­tica con­tem­porânea”, cujos arti­gos, “da auto­ria dos mais rep­uta­dos camonistas nacionais e estrangeiros, pro­por­cionam ao leitor uma infor­mação abun­dante, rigorosa e atu­al­izada sobre a biografia, a obra lírica, épica, dra­matúr­gica e epis­to­lar de Camões, sobre a sua con­tex­tu­al­iza­ção histórico-literária, sobre os seus prob­le­mas filológi­cos, sobre a influên­cia e a crítica camo­ni­anas nos diver­sos perío­dos da lit­er­atura por­tuguesa e, numa per­spetiva com­para­tista, sobre a receção de Camões nas prin­ci­pais lit­er­at­uras mundi­ais, desde a espan­hola à brasileira e à norte-americana”.

Presunção e água-benta…

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

ACONTECIMENTO RARO E NOTÁVEL...














A Aula

Cynthia Guimarães Taveira

Hoje cheguei atrasada, não muito, à aula de "Estudos do Modernismo" do Mestrado em Estudos Portugueses da FCSH.
Ainda não estava lá há dois minutos quando a professora Manuela Parreira da Silva ergue uma fotocópia no ar para todos vermos a "árvore sefirótica" estilizada de António Telmo. Só tive tempo para dizer: "O meu querido AntónioTelmo", mas o espanto não deu para mais.
Era uma página da ´Gramática Secreta" de António Telmo.
António Telmo chegou à universidade!!!
Lembro-me de que quando tirei a Licenciatura em Antropologia, um professor gritou-me, gritou-me mesmo, dizendo que Mircea Eliade estava ultrapassado e que deveria ser deitado no lixo. Perguntei-lhe na altura se Platão também. Claro que não levei resposta, só uma cara toda encarnada a bufar na minha direcção.
Já tinha notado grandes mudanças na universidade: podíamos falar livremente do "secreto" do "esoterismo",  já tinha reparado, até, que alguns alunos queriam avançar com teses dentro dessas áreas.
Mas ver António Telmo ali, a ser dado, a ser analisado, nunca pensei.
Obrigada professora!
António Telmo ainda tem muito para dar.

AS DANÇAS DE DALILA, 4

Excerto de Dalila Pereira da Costa

“Para a visão da história portuguesa - e nesta época, mais do que qualquer outro lugar da terra e tempo, urgirá não desligar a lenda da história, não abolir a primeira em face da segunda. (…)
Assim, as ilhas lendárias vivem na imaginação dos homens duma época e são integradas nos seus mapas reais, aqueles que os conduzem e lhes indicam as rotas a seguir, num oceano real: como os mais altos testemunhos do avanço da experiência sobre esse mar desconhecido, - como alargamento do território da verdade sobre a terra.
Demanda, Navegação e Descobrimentos, serão duas formas de aventuras paralelas e inseparáveis desta nação. Nela encarnada simultaneamente na própria história. Em sonho e acção."

Retirado do livro: A Nau e o Graal, Lello & Irmão - Editores, 1978, páginas 99 e 101

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

TEMPOS DE HOJE


Não há somente o Portugal da Terra
Há outro Portugal, o do Outro-Mundo,
Onde Pedro anda a caçar na serra
E Inês repete o seu adeus profundo

Senhor de um povo que entre brumas erra,
O Portugal-Maior não tem segundo
Rei Encoberto, quando vais para a guerra?
Camões, que estás dizendo, moribundo?

Andaste na oficina do Bandarra
Ó tu
Que sentes do bruxedo a garra
E deitas profecias à lua-cheia!

Leva-me a crer, com a peneira erguida,
O outro Portugal de outra-vida
Por quem a raça anseia!

António Sardinha (1888-1925)

A Questão de Portugal

Cynthia Guimarães Taveira

Na época salazarista falar dos Descobrimentos e do resto da História de Portugal era, de alguma forma, uma espécie de legitimação do Estado Novo. Claro que a História pode ser aproveitada para determinados fins uma vez que também ela é um aproveitamento dos factos do tempo. Mas há uma questão que acompanha a nossa História e que é exactamente a Questão de Portugal.

Provavelmente nunca um país foi tão questionado pelos seus. Tanto pelos seus poetas, escritores ou filósofos como pela forma decaída da Questão traduzida no tipo de frases ditas pelo português comum: "este país não vai a lado nenhum",ou "tenho vergonha do meu país". Parece haver uma relação com este país do tipo "eu e ele" ou "eu e tu" e talvez, por isso, André Coyné tenha escrito "Portugal é um ente", ou seja, algo que se confunde com um ser, com uma pessoa. Temos uma relação verdadeiramente pessoal com o nosso país. Daí que até os filósofos que se debrucem sobretudo sobre questões ontológicas, mais tarde ou mais cedo, toquem a pátria nas suas reflexões, toquem esse outro ser para além deles e dos outros e escutem os poetas nos seus lamentos e exaltações.

Se um país é personificado deverá comportar-se como uma pessoa. Com o seu corpo, o seu coração, a sua alma (incapaz cientificamente de ser testada) bem como o seu espírito. A Questão de Portugal talvez seja a questão da própria Pessoa. O que é dado à Pessoa? O que se espera dela? Para onde caminha? A Questão da Pessoa é a questão antropológica, uma questão ainda muito longe de ter resposta. Portugal e Pessoa confundem-se e mantêm-se como um maná a que recorrentemente escritores, poetas, filósofos e artistas retomam como seu alimento. Daí o facto de existir uma linhagem em Portugal de entes que questionam o ente maior onde vivem. Uma linhagem impossível de aniquilar pois parece ter as suas raízes num país que a tecnologia, a política ou as grandes empresas nem sequer vislumbram. O país invisível, acima do país territorial e político, aquele que é construído, lado a lado, com este nas margens do rio do esquecimento que apenas alguns sabem atravessar, e, no entanto, adormecido não morre, esquecido, não esquece, enterrado no passado, reside no futuro.

Este outro Portugal, o do Outro-mundo, o Portugal Maior ou o da Outra Vida de que nos fala António Sardinha não parece ser apenas uma questão teórica ou uma questão de teoria pois vai muito para além de uma especulação puramente formal e racional, não obedece igualmente a um conjunto de princípios sistemáticos e perenes que regem uma Ideia, não há um sistema propriamente dito, porque, de forma serpenteada e sábia, filósofos e poetas sabiamente souberam contornar a “tentação” de elaborar um sistema; não é uma suposição porque a Questão não tem sempre respostas vagas, não é uma tese pois não se defende um ponto de vista perante as batinas dos académicos ou de olhares penetrantes em busca de um erro ou contradição (antes pelo contrário, muitas vezes se foge do academismo como o diabo da cruz), não é um teorema pois muitas das “visões-respostas” sobre o que é Portugal não são demonstráveis num compasso dedutivo antes vindo, por vezes, de intuições rápidas, sentimentais, muito semelhantes à forma como o Espírito Santo sopra. Não é uma questão teórica em definitivo, até porque a teoria, de alguma forma, ou se fica por ela própria ou é impelida para a prática, como a potência para o acto. E os resultados muitas vezes não são nada deslumbrantes.

A Questão de Portugal, roça a utopia quando o sonho se torna tão agudo como uma agulha no cimo de uma montanha, mas não é utopia porque esta traz em si o germe da sua negação. A utopia é um céu congelado e um céu congelado não cabe nesse Outro Portugal. Passa suavemente pelo delírio, esse Outro Portugal, o delírio provocado pelo perfume deveras sentido do jardim plantado à beira mar, um paraíso possível em carne, o delírio de vermos efectivamente Pedro a caçar, Inês a dormir, as naus a avançar. Um delírio que nos remete para o passado, mitificando-o (ou seja, dando-lhe características míticas), repetindo-o em rituais interiores feitos de gestos do pensamento e, mais estranho ainda que um delírio, uma evocação onde entra naturalmente o coração.

A Questão de Portugal está ligada à evocação desse outro Portugal indefinido, esse “deitar profecias à lua cheia” pode ser lido como ter visões em tempo de evocações ou evocar em tempo de visões. Vê-se esse outro Portugal e evocamo-lo. Não há a ansiedade de passar da teoria à prática, há a certeza que esse outro Portugal existe. Existe na esfera do sagrado e é necessário chegar a ele. Existe em movimento, em vida, em criação e em construção perpétua. Tudo ao contrário da questão teórica e até meramente filosófica naquilo que pode ter de especulação sobre o real. Não há uma aplicação teórica, há uma proposta de muitos caminhos para chegar ao Portugal imaginado e todos esses caminhos são abertos pela porta principal da Questão antropológica. Numa linha de Pascoaes abre-se uma avenida de luz no meio da paisagem: “as nações sem alma são simples colónias”; num texto de António Quadros uma advertência: “a antropologia precede a História” e “ não é possível, em suma, indagar sobre o passado sem ter interrogado primeiro o ser do homem e as condições do movimento mental e anímico que orientam, no seu processo, as frustrações e os triunfos dos movimentos sociais ou políticos“; numa frase de Fernando Pessoa um breve e surpreendente atalho: “considerar a Pátria Portuguesa como a coisa para nós mais existente, e o Estado Português como não existente”; num escrito de Leonardo Coimbra, uma orientação com a dimensão de uma vida: “a seriedade e profundidade da alma nacional aparecerá logo que esta consiga furtar-se à fascinação dos figurinos estrangeiros. Como quebrar o encanto? O poeta, o pintor, o músico devem procurar dar ao povo português a sua alma verídica!”, e assim sucessivamente. Cada desvendador de Portugal é um batedor na selva dos enganos daquilo que se poderia tomar por um simples país, igual demais aos outros e é ,em simultâneo, graças às revelações que vai tendo desse Portugal Maior, seu profeta. O que é deveras estranho uma vez que a Era da Profecia parece ter acabado por volta do século VI a.C. e, para nosso bem, não há dúvida que nesse aspecto somos um país atrasadíssimo, retido nas malhas de um tempo há muito esquecido.

O processo profético em Portugal passa pela palavra e ainda por uma consciência do tempo diferente da contagem decrescente dos relógios digitais o que terá como consequência uma estranha forma de vida.
A palavra tem a dupla função de materializar as visões dos ângulos desse Outro Portugal e em simultâneo, de alguma forma, o ir criando. É um processo místico onde céu e terra participam: Hildegarda de Bingen, visionária medieval, afirmava ter visto a cidade do céu em construção. A cidade celeste, que julgávamos definitivamente erguida está afinal em construção. Esta afirmação obriga a rever em parte a noção do mundo das essências de Platão, onde os modelos/arquétipos nos surgem como perfeitos, acabados e inalteráveis noutra dimensão. Estará o céu em construção ou estará apenas semi-construído? A geografia celeste está em movimento? A resposta alquímica “o que está em cima é como o que está em baixo” oferece, pela, sua abstracção, uma resposta intermédia: nem totalmente construído nem, paradoxalmente, totalmente imperfeito. O Portugal imaginário é imaginado pelos nossos pensadores e, conforme o seu grau de pureza, cabe ou não nessas esferas celestes. Esse Portugal é o “país das horas aparentes”, para citar Álvaro Guerra. Aqui, no Portugal íntimo, não há horas para quem nele nasce e vive. Não há tempo. A lua como medida dos ciclos, o sol como medida dos dias são apenas a aparência cósmica, a camuflagem de um país que já não é de um mundo de grilhetas e gerador do tempo. Saturno está em festa, afastou-se de Chronos e abraçou Kairos gozando os dias de ouro. Aqui, onde se agitam e repousam as canetas dos poetas e filósofos não há passado nem futuro, nem compromisso entre memória e sonho, porque a memória é o seu sonho e o seu sonho a sua memória. E a única história possível é a do futuro.

A percepção deste outro tempo onde não há horas passa pelo fenómeno da iniciação e da irmandade, ambas geradas na naturalidade e a caminho da sobrenaturalidade. É tentador pensar numa linhagem iniciática em Portugal que passe por ordens muito mais-do-que-secretas e, quiçá, perfeitas, palavras-passe e senhas cuja criptografia nem os melhores cabalistas possam decifrar. É tentador pensar sempre numa espiritualidade, de alguma forma, materialista, que seja visível, palpável, agarrada, escrita e que sobretudo tenha um dono dessa verdade encontrada. Há um acontecimento recorrente ultimamente a que se pode chamar “a propriedade da verdade”: não é a verdade encontrada que verdadeiramente interessa, mas sim, o dono da verdade, aquele que a descobriu e a possibilidade que este tem de ser uma “estrela” no mundo das descobertas. Convinha, para esses casos, lembrar que na Idade Média, a obra falava mais alto que os homens, e as suas mãos nada assinavam, não assassinando assim o verdadeiro propósito do seu gesto: a glorificação de algo maior do que si próprio.

O rito como possível porta para uma iniciação está hoje bastante limitado por fenómenos poluidores. Essa poluição contemporânea (que também é física…) pode ter como base a existência ou não do próprio mito que, como se sabe, é a base de qualquer rito. O sincretismo em espiral feito a partir de diversas religiões (fenómeno crescente para qual nos chamou a atenção René Guénon) sobretudo a partir do século XIX com a explosão de uma antropologia eufórica nascida do deslumbramento pelas leis positivistas suscitou, nalguns espíritos, um desejo de uma simplificação que condensasse diversas doutrinas tornando os mitos e personagens míticas existentes em estranhas formas de religiosidade, unidos numa série de correspondências que partiam sobretudo do seu lado mais visível e exterior quando, na origem, estavam inseridos em espaços, tempos e culturas muito próprias. É assim que Isís, é afinal, Diana, que é Vénus que é Kali que está ligada à Deusa Mãe correspondendo à Virgem que é também a mulher interior que há em nós e ainda a “anima” dos homens, enfim, nem o caldeirão dos druidas levava tantos condimentos da mesma espécie. É tudo reunido e bebido de um trago e o individuo, uma vez imbuído de este estado de embriaguez mítico-sintética, pode, enfim, criar um rito aproveitando cacos dispersos de histórias soltas como uma espécie de arqueólogo apressado com o desejo absoluto de reconstruir e ressuscitar uma civilização inteira a partir de meia dúzia de pedras.
Em primeiro lugar nem todos os antigos ritos fomentavam o fenómeno da iniciação. Muitos eram ritos que procuravam a continuidade de uma certa normalidade da natureza e dos homens, inseridos numa consciência do tempo cíclico. Em segundo lugar, a iniciação pressupõe sempre uma ruptura, como tão bem nos ensinou Mircea Eliade.

Não há mitos novos, nem se criam mitos e muito menos se criam mitos a partir de fragmentos de outros mitos. Em Portugal, o que se vive é uma consciência mítica perante a História o que permite aos seus filósofos, escritores e poetas irem alimentando de alguma forma, esse Outro Portugal que vive numa esfera mítica, e, pela lei natural, aquilo que é alimentado, permanece vivo. É essa consciência mítica, e não qualquer fenómeno ritual exterior, que permite a iniciação em Portugal. O exercício da imaginação tem um papel decisivo na iniciação portuguesa pois toda essa consciência mítica tem lugar num espaço e tempos imaginários e obriga a rupturas internas com antigas formas de vida e de pensar, podendo haver, na maioria dos casos, intervenção de um terceiro elemento nesse diálogo entre o homem e aquilo que imagina. Esse terceiro elemento é, de facto, sobrenatural. A consciência mítica leva a rupturas internas (características da iniciação) e que, por sua vez, conduzem à intervenção, ou ao sublinhar de forças sobrenaturais que de alguma forma legitimam o percurso iniciático. Da mesma forma que o grau de pureza do Portugal imaginado, leva a que este caiba, ou não, nas esferas celestes. É no centro da ruptura ontológica que reside a evocação e isso, na sua veracidade, ou é extraordinariamente difícil de fazer (se se partir de um gesto voluntário e premeditado, no caso da iniciação ritual) ou é tão fácil como tomar um copo de água (se for um gesto interior absolutamente espontâneo, desapegado, como é o caso da iniciação mística). Em Portugal as palavras, os silêncios, a geografia e a arquitectura antiga são a verdadeira sociedade secreta que alguns procuram nas fatiotas e gestos rituais improvisados e apressados. São estes factores os testemunhos de uma consciência mítica. E quem participa nessa consciência está sujeito à iniciação e a entrar numa espécie de irmandade que vive não da semelhança entre irmãos, mas sim, da sua absoluta diferença e originalidade interiores embora participando de algumas memórias semelhantes, de alguns sonhos, de alguma religiosidade, de uma sensibilidade face às mesmas questões (mitemas nacionais, messianismo etc) conduzindo à partilha dos mesmos símbolos nas formas de expressão e ainda da consequência, quase inevitável, de uma súbita intervenção do Espírito Santo. E tudo isto conduz a uma estranha forma de vida. A uma forma de vida dupla devido a uma consciência de missão, sem fanatismo ou vaidade, uma forma de missão cujo único compromisso está na obra que se deixa para trás na hora da morte.

Fernando Pessoa teve consciência de tudo isto, e, naturalmente, por ser livre, único e original, brincou com tudo isto: ao dizer desejar ser um fazedor de mitos, dizia, por outras palavras que alimentava um mito e chamava a atenção para o facto de se poder ou não criar mitos, e brinca ainda mais (destruindo por completo o materialismo espiritual) quando escreve: “A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito ou passe. Não precisa reunir, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns aos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela, já se lhe não pertence. (…). Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Não se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: “quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também. E é na palavra “pronto” que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.

Fiel à sua obediência - se assim se pode chamar onde não há obedecer - à fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros - chamemos-lhe sempre assim - não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelos simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação”.

 A brincadeira de Fernando Pessoa é de uma ironia séria ou de uma seriedade irónica. A noção de irmandade surge como consequência da iniciação interna e não ao contrário. E a matéria prima do rito interior reside nesse Outro Portugal cujos símbolos vão ficando gravados, de geração em geração, na presenças de indivíduos que influenciam outros, nas palavras que se deixam escritas, nos silêncios partilhados, na pedra, na geografia diversa e na intervenção do Espírito Santo como fonte da iniciação desse e nesse Outro Portugal e seus criadores.

Lisboa, algures num mês de 2008

domingo, 8 de janeiro de 2012

ALMOÇO DE REIS

Reportagem fotográfica por:

Filipe Nobre Gomes












Entre outros. Pedro Sinde, Pedro Martins, Maria Antónia, Anair,
Helder Cortes, Maurícia












Da esquerda para a direita: Pedro Sinde, Carlos Aurélio, Helder Cortes.
Em baixo: Maria Antónia, viúva de António Telmo

Pedro Sinde à esquerda e, ao lado dele, Mário Rui, o nosso anfitrião


Paulo Santos

Panorâmica


Luís Paixão

Chopin também lá esteve...
 O senhor de barba é António Carlos Carvalho


Os nossos anfitriões, Mário Rui  e sua esposa, Cristina

 
E a Lua, claro, elevando-se sobre o laranjal...