(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



domingo, 27 de fevereiro de 2011

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 51


Na foto: Moacyr Scliar

António Carlos Carvalho

Morreu um grande escritor e um homem bom -- algo de muito raro, esta conjunção de qualidades.
Chamava-se Moacyr Scliar, tinha 73 anos e era um imenso contador de histórias.

Deixou mais de setenta obras, imagine-se, incluindo romance, contos, biografias, crónicas, tendo conquistado três prémios Jabuti.
Em Portugal, no entanto, só me lembro de lhe terem publicado «O exército de um homem só», «O centauro no jardim», «Max e os felinos» (Caminho) e «A mulher que escreveu a Bíblia» (Livros de Seda). Continuam a não descobrir o livro mais «português» dele, «A estranha Nação de Rafael Mendes».

Filho de pais russos, judeus, que emigraram para o Brasil, Porto Alegre, Moacyr aprendeu com eles a importância de uma boa história -- e bem contada -- para dar sal à vida. Impregnado de tradição judaica, ainda que não praticante, Moacyr conhecia certamente o velho ditado do seu povo, «Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias».
E assim fez, toda a vida -- quando não estava no hospital ou no consultório a atender os seus pacientes.

Disse uma vez que gostaria de ter na sua lápide esta frase: «Viveu bastante mas não aprendeu muito». Nada disto acabou por ser verdade, evidentemente…

A sua frase preferida era «Não te expliques e não te queixes». Era na verdade um homem cheio de ironia e muito afável, como comprovei há uns dez anos, quando ele passou por Lisboa e o entrevistei.
Tinha lido quase tudo dele e verifiquei, com agradável surpresa, que aquele senhor alto, de olhos claros, médico respeitável e respeitado pela sua dedicação, excelente escritor louvado pelos seus pares e pelos seus muitos leitores, era afinal um homem simples. Deu-me um abraço no final da entrevista, como se nos conhecêssemos há muitos anos e fôssemos grandes amigos. Um gesto significativo, pelo menos para mim, que confirmou plenamente a impressão que os seus livros me tinham sempre dado.
E isto é tão raro que jamais o esqueci.

Leiam os livros dele, peçam-nos às livrarias, encomendem-nos, e vão ver o que é um escritor e um homem coerente com a sua escrita.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 14



Os mistérios da escrita

Alexandra Pinto Rebelo

Siddharta, Jesus ou Muhammad nunca escreveram um texto religioso pela sua mão. Pelo menos, não chegou nenhum texto autógrafo até nós, nem tão pouco existem relatos dando conta da sua existência. Talvez por isso, se tenha tomado como verdade que nenhum deles sabia escrever sendo essa a razão do seu silêncio escrito. Afirmações deste género ainda se escutam e lêem por aí.

Muhammad sabia escrever. Escreveu pelo menos três cartas a outros tantos soberanos pela sua própria mão, manuscritos que se conservam até hoje. Podemos então perguntar por que razão não terá sido ele a redigir os textos do Corão. Em vez disso, o trabalho de escrita foi feito por seguidores, transcrevendo o que iam ouvindo. Esta questão, parece-me, tem uma resposta fácil. Corão significa “recitação”. Os textos devia ser decorados e transmitidos de memória. A sua passagem para a escrita destinou-se, muito simplesmente, a evitar desvios do “recitar” original.

Não se sabe se Siddharta saberia ler ou escrever. Era muito provável que o soubesse dada a sua origem social. A mesma pergunta pode ser feita em relação ao facto de não ter deixado nada escrito, pergunta estendida aos cinco séculos após a sua morte, data em que aparecem os primeiros textos considerados iniciadores do cânone budista. Também me parece que neste caso, a resposta é, igualmente, fácil. O que Siddharta descobriu, ou redescobriu, é sobretudo um processo. Através de uma simples postura de yoga é possível alcançar estados de consciência diversos dos habituais, mais vívidos, mais cientes, digamos. É o pôr de parte o mundo mostrado através de discursos, para o vivênciar na plenitude, na sua essência. Certa vez terão perguntado a Siddharta qual era o grande ensinamento da sua escola, ao que ele respondeu, ser o andar, o sentar e o dormir. Aquele que perguntou terá ficado muito intrigado, como é normal, respondendo que isso é o que toda a gente faz. Siddharta então respondeu que sim, mas no seu dharma existia uma diferença. Quando andavam, sabiam que andavam, quando se sentavam, sabiam que se sentavam, quando dormiam, sabiam que dormiam. Neste processo, qualquer texto é apenas uma curiosidade pertencente ao mundo das ideias. Nenhum budista minimamente culto se preocupa em ter, sequer, grandes discussões sobre a veracidade de quaisquer palavras atribuídas a Siddharta. Basta sentar, em postura de meditação, e o próprio processo se encarregará de tudo aquilo que importa saber.

O caso de Jesus é deveras intrigante. Não se sabe, tal como em relação a Siddharta, se Jesus saberia ou não escrever. Parece-me, no entanto, que seria relativamente fácil o seu acesso à escrita enquanto processo. Caso entendesse não o fazer pessoalmente, poderia sempre pedir a alguém que o fizesse. Teria, inclusivé, vários tipo de escrita ao seu dispôr, como o hebraico, o latim, o grego, todos eles dirigidos a auditórios diferentes. Teria sido esse o problema? Escolher uma língua de suporte para as suas próprias palavras, constituíria um sinal selectivo de todo a evitar? Talvez bastasse o exemplo da sua própria existência, de parte da sua vida pública, morte e ressurreição, sendo então o princípal texto a ser escrito uma biografia que teria de integrar a sua vitória sobre a morte, não podendo, pois, ser escrita por ele mesmo. Ou talvez soubesse somente dos perigos da palavra escrita e os quisesse evitar, deixando a questão da escrita para outros que, por mais inspirados que pudessem ser, teriam sempre uma autoridade mais fraca do que a sua. Penso que este é um dos grandes mistérios de base do cristianismo. Quem souber responder a esta questão, estará muito perto da sua essência.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 50


António Carlos Carvalho

«Um Príncipe não tem biografia. A sua biografia é a História do seu Povo».

Mouzinho de Albuquerque escreveu estas palavras para o Príncipe D. Luís Filipe, de quem fora nomeado aio -- a revelação foi feita pela cientista Maria de Sousa, agora premiada e que citou estas palavras para justificar que o seu prémio era na realidade devido ao povo português e ao País. O gesto é bonito e invulgar em época de tantas glórias vãs por coisas mais ou menos triviais.

Parece que o Príncipe nunca chegou a ler a carta -- viria a ser assassinado em 1 de Fevereiro de 1908, como sabemos (mas convém sempre lembrar, para contrariar a ideia-feita do «povo dos brandos costumes»…) --, mas a missiva foi publicada em Maio de 1908 e um familiar de Maria de Sousa guardou esse folheto.

Pelos vistos, Mouzinho de Albuquerque não tinha a mesma ideia do «Príncipe» que Maquiavel defendera, bem pelo contrário. Concluímos, igualmente, que nunca aceitaria ser aio de alguns príncipes mediáticos que hoje se expõem barbaramente aos olhares ávidos das multidões globalizadas.
Aliás, convém igualmente referir que Mouzinho, aclamado como herói nacional em 1897, veio a suicidar-se em 8 de Janeiro de 1902, poupando-se assim à visão da tragédia do assassinato do seu Príncipe e passando a figurar na extensa galeria dos ilustres suicidas portugueses que levou Unamuno a escrever que Portugal era «um país de suicidas».

Mas a sua frase (e o pensamento profundo que ela contém) devia talvez figurar em lugar de destaque do Palácio de Belém (que foi palácio real) e ser obrigatoriamente citada em todas as cerimónias de tomada de posse de novos governantes. Isto é, se estes soubessem previamente o que é um Principe e não estivessem convencidos de que seres desses só existem nos contos de fadas, coisas próprias de imaginações infantis…

Por essas e por outras é que defendo que temos de começar tudo de novo e voltarmos à escola da História, para então re-fundarmos Portugal, fazendo deste pedaço de terra, pelo menos, um lugar decente para se viver. Para vivermos juntos e, em paz e harmonia, cultivarmos este jardim.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

PRODÍGIOS DE IMAGINAÇÃO


Na imagem: fractais

Peço a atenção dos leitores para estes três prodígios de imaginação provindos de três culturas diferentes: a celta, a persa e a indiana. Três prodígios de imaginação sem efeitos especiais, sem influências televisivas ou cinematográficas. Lendo isto, resta-me perguntar até que ponto não somos escravos da imaginação dos outros e, por isso, perdemos nós mesmos a capacidade de imaginar. Somos escravos e os escravos apenas podem desejar uma outra vida. A imaginação, pelo contrário pertence aos homens livres dos pesadelos da escravidão, aos homens livres que, do alto de uma montanha contemplam o horizonte, vêem outros espaços e utilizam a língua como se de um encanto se tratasse. Os homens livres vivem a sua vida e outras tantas, os escravos desta civilização nem vivem a sua nem aquela que desejariam ter. Convido os leitores para o mundo real da imaginação, aquela pura, sem tecnologia tolhendo os movimentos. Imaginem-se ainda crianças, num tempo sem luz eléctrica, com as sombras das velas e lamparinas por companhia, sentados no chão a ouvir os mais velhos relatando estes episódios. Por momentos que pare o tempo para que um outro surja.
Cynthia Guimarães Taveira
Tradição Celta

“Por fim, ele [Couhoulinn] pôs o seu capacete de crista e deu um grito igual ao de cem guerreiros. Este grito tinha um enorme alcance, pois era dado ao mesmo tempo pelos fantasmas com rostos de bode, pelas fadas dos vales, pelos demónios do ar, diante dele, por cima dele, à sua volta, sempre que ele saía para fazer correr o sangue dos inimigos e para executar extraordinárias façanhas. Depois vestiu o seu véu de protecção, que o tornava invisível, peça de indumentária trazida da Terra das Promessas e dado por Mananann, filho de Lîr.
Deu-se então a sua primeira contorção, que foi terrível, múltipla, maravilhosa. As suas pernas tremeram à sua volta como uma árvore contra a qual vem bater um vento tempestuoso. Cada um dos seus membros se pôs a tremer, cada articulação, cada dedo, cada juntura, desde o cimo da cabeça até à ponta dos pés. Num acesso de fúria, ele torceu o corpo, os seus dedos dos pés, a parte da frente das pernas, os joelhos passaram para trás dele, os seus calcanhares, as barrigas da perna, as nádegas, voltaram-se para a frente. Os músculos superficiais das barrigas da perna pousaram sobre a superfície anterior das suas pernas e formaram aí uma bossa tão grossa como o punho dum guerreiro. E os nervos do cimo da cabeça moveram-se para trás da sua nuca, de tal modo que cada um deles produzia uma bossa redonda, indescritível, tão grossa como a cabeça de uma criança de um mês.
Depois as feições do rosto deformaram-se, e um dos seus olhos entrou para dentro da cabeça de tal modo que nem um guindaste teria conseguido trazê-lo do fundo do crânio para a face. O outro olho saltou fora da pálpebra e veio a colocar-se na superfície da face. A boca deformou-se de uma forma monstruosa. As maxilas afastaram-se, deixando escancarada a boca e tornando assim visível o interior da garganta. Os pulmões e o fígado vieram flutuar na boca. Com uma sapatada de leão, ele bateu na pele que cobria a sua maxila superior, e todas as mucosidades que, como uma corrente de fogo, chegavam do seu pescoço até à boca, se tornaram tão grandes como a pele de um carneiro de três anos. Ouviu-se o barulho que fazia o seu coração ao bater no peito, e este barulho era tão violento como o que é provocado pelos latidos de um cão de guerra ou os rugidos de um leão que se prepara para atacar um urso. O calor provocado pela sua violenta e ferocíssima fúria encheu o céu de nuvens de tempestade e, do seio destas nuvens, saíram mil faíscas de fogo que se espalharam por todo o lado com uma imensa crepitação, como uma trovoada que não cessasse de atingir a terra.
À volta da cabeça, a sua cabeleira tornou-se espigada e semelhante a um ramo de fortes espinhos no buraco de uma sebe. Se sobre a sua cabeça alguém tivesse sacudido uma macieira coberta de belos frutos, estes não teriam caído à terra mas ter-se-iam todos plantado sobre cada um dos seus cabelos eriçados pela fúria. Na sua fronte, acendeu-se então a luz do herói, um fogo comprido e grosso como a pedra de amolar de um guerreiro, e do cimo da sua cabeça saiu um raio de sangue castanho, rectilíneo como uma viga, tão alto, tão espesso, tão forte, tão comprido como o mastro de um navio. Resultou daí um vapor mágico semelhante ao fumo que sai do palácio dum rei, quando o rei se vai sentar junto à lareira, à noite, no fim de um dia de Inverno.”

Excerto reescrito a partir de fontes irlandesas da Idade Média retirado do livro “A grande epopeia dos Celtas - Terceira Época - O herói dos cem combatentes” de Jean Markale, Ésquilo Edições, pág. 143

Tradição Persa

“Quando acabou e preparou o círculo da maneira que queria, colocou-se e parou no meio, onde fez uma rezas e recitou versículos do Alcorão. Insensivelmente o ar escureceu de maneira a parecer que já era noite e que a máquina do mundo se ia dissolver. Sentimo-nos transportados por um medo terrível, esse pavor aumentou ainda mais quando vimos de repente aparecer o génio filho da filha de Elbis com a forma de um leão enorme.
Assim que a princesa viu aparecer esse monstro, disse-lhe: ‘Cão, em vez de rastejares diante de mim, ousas apresentar-te sob essa forma horrível e julgas amedrontar-me?’ ‘E tu??’ retorquiu o leão, ‘não receias renegar o contrato que nós firmámos com uma jura solene, de não nos molestarmos nem causarmos nenhum dano um ao outro?’ ‘Ah!, maldito!’, replicou a princesa, ‘é a ti que devo fazer essa censura.’ ‘Tu vais, interrompeu bruscamente o leão, ‘pagar-me o trabalho que me deste em cá voltar.’ Ao dizer isto, abriu uma boca enorme e avançou para ela para a devorar. Mas ela, que já tinha tomado as suas precauções, deu um salto para trás e teve tempo de arrancar um cabelo, e, pronunciando duas ou três palavras, transformou-o num sabre afiado, com o qual cortou em dois o leão pelo meio do corpo. As duas partes do leão desapareceram e apenas ficou a cabeça, que se transformou num grande escorpião, que, não se sentindo em vantagem, retomou a forma de uma águia negra e poderosa e perseguiu-a. Deixámos de as ver uma e outra.
Pouco depois de terem desaparecido, a terra entreabriu-se diante de nós e dela saiu um gato preto e branco, com o pêlo todo eriçado e que miava de uma maneira horrorosa. Um lobo negro perseguiu-o e não lhe deu tréguas.
O gato, muito apressado, transformou-se numa minhoca e colocou-se junto de uma romã caída por acaso de uma romãzeira que estava plantada à beira de um canal de água profundo, mas pouco largo. A minhoca furou a romã num instante e escondeu-se. Então a romã inchou e tornou-se grande como uma melancia, erguendo-se até ao telhado da galeria, donde, depois de dar uma voltas em rotação, caiu no pátio e partiu-se em vários bocados. O lobo, que durante este tempo se transformara em galo, lançou-se sobre as pevides da romã e pôs-se a engoli-las uma após outra. Quando já não viu mais, veio até nós de asas abertas, fazendo muito barulho, como para nos perguntar se já não havia mais pevides. Restava uma à beira do canal, na qual ele reparou ao voltar-se. Correu depressa, mas, no momento em que ia debicá-la, a pevide escorregou para o canal e transformou-se num peixinho… (…) O galo lançou-se ao canal e transformou-se numa solha, perseguindo o peixinho. Estiveram ambos duas horas na água e nós não sabíamos o que lhes tinha acontecido, quando ouvimos uns gritos horríveis que nos fizeram estremecer. Pouco depois vimos o génio e a princesa a arderem. Lançavam um contra o outro chamas pela boca, até que se puseram a lutar corpo a corpo. Então as duas chamas aumentaram e deitavam um fumo espesso e flamejante que se erguia muito alto.”

Excerto retirado das “Mil e Uma Noites”, A história do invejoso e do invejado (quinquagésima noite), Edições Europa-América, pág. 118

Tradição Indiana

“Certa vez, quando brincavam, as crianças disseram a Yasodã: «Krsna comeu terra.» Yasodã tomou Krsna pela mão, e censurou-o dizendo: «Seu maroto, por que razão comeste terra?» «Não o fiz», disse Krsna. «As crianças estão a mentir. Se acreditas nelas e não em mim, vê tu própria a minha boca.» «Então, abre-a», disse ela ao deus, que por brincadeira tomara a forma de uma criança humana; e ele abriu a boca.
Yasodã viu então todo o universo dentro da sua boca, com os seus limites longínquos do céu, e o vento, e o relâmpago, e o globo terrestre com os seus oceanos e montanhas, a lua e as estrelas, e o próprio espaço; e viu a sua própria aldeia, e viu-se a si mesma. Ficou confusa e assustada, pensando: «Será isto um sonho ou uma ilusão criada por Deus? Será talvez uma ilusão da minha própria mente? É que o poder ilusionista de Deus inspira em mim crenças falsas como “Eu existo”, “Este é o meu marido”, “Este é o meu filho”.» Quando Yasodã conseguiu compreender deste modo a verdadeira realidade, Deus espalhou a sua ilusão mágica sob a forma de amor materno. Yasodã perdeu instantaneamente a memória do que acontecera; colocou o seu filho ao colo e voltou a ser como era, mas o seu coração fora agora inundado de um amor ainda maior a Deus, que julgava seu filho.”

História retirada do livro “Sonhos, ilusão e outras realidades” de Wendy Doniger O‘Flaherty, Assírio & Alvim Edições, pág. 192

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

PARA ESTE ANO...

Congeminações

I ciclo de estudos em homenagem a António Telmo

Ortodoxia e Livre Pensamento
Março a Novembro de 2011
Biblioteca Municipal de Sesimbra

Em breve publicaremos programa detalhado.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE


Desenho de Cynthia Guimarães Taveira

Só Deus escreve sobre Deus

António Telmo

Os cães caçadores não temem o som poderoso dos tiros, mas entram em pânico com o estoiro dos foguetes e o ribombar do trovão. Assim, o instinto inteligente distingue o alto do baixo ou do rasteiro, o que vem ao rés da terra do que soa alto na nuvem. O galo eleva-se dentro de si mesmo para soltar as cinco notas anunciadoras do Sol. Os pássaros levantam a cabeça para cantar e fazem-no nos ramos cimeiros das árvores ou no alto das torres. Quem está aí que me lê para sentir o que Camões viu ouvindo cantar os pássaros:

“Os pássaros que cantam
Meus espíritos são que a voz levantam”?

“Todos os seres adoram Deus”, assim se diz numa surata do Corão. Mas nós, hoje, nós que dispomos, enquanto homens, da inteligência que concebe no visível e no invisível, como havemos de adorar Deus, perseguidos que somos na rua e nos cafés, em casa, por toda a parte pela rádio e pela televisão, pelo ruído dominador dos metais actuantes fora do seu lugar natural, pelas explosões do petróleo, do óleo que se extrai da pedra multissecular, pelo rock (escreve-se assim, ó portugueses?) tan tan tan minando os interstícios do corpo, como havemos de ser se nos envolvemos do que não é para não sermos e não nos ouvirmos no que de mais fundo e significativo há em nós? Deus adora-se nas Igrejas, mas também aí entrou o jazz e as melífluas músicas próprias de uma espiritualidade inferior. Estamos pois impedidos de vencer a gravidade da alma elevando sentimento e pensamento àquela altura onde vai o instinto dos animais?

Era ainda noite, antes de nascer o Sol, no Cabo Espichel, junto aos pinhais. Eu estava lá, na orla deles, voltado para o Oriente de onde deveriam vir as rolas que assassinamente esperava. Principiava a nascer a alba. Aclareava-se ao fundo o céu. De súbito um sonoro zumbir de insectos feriu-me insistentemente os ouvidos. Eram moscas como abelhas ou vespas dispostas em fila ao longo da orla do pinhal. Alternavam a imobilidade com um voar rápido em círculo que as repunha no mesmo sítio. Estavam todas voltadas para o nascente como eu, mas não para matar. Desapareceram momentos depois do sol ter nascido.

Deus não é o Sol, mas o Sol é um símbolo vivente de Deus. É símbolo quando, através dele, se presta culto a Deus que infinitamente transcende todos os sóis. Isto o sabem os animais, melhor que os ocultistas e outros adoradores de símbolos.

Pediram-me para escrever sobre Deus. Só Deus escreve sobre Deus. E, às vezes, acontece fazê-lo através das nossas pobres palavras. Assim seja!

[Publicado originalmente em "Sesimbra Eventos", n.º 16, de Natal/Ano Novo, 2001-2002]


domingo, 20 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 13



Uma nova cosmogonia

Alexandra Pinto Rebelo


É admirável o livro The Great Transformation, de Karen Armstrong, datado de 2006. A autora, analisa vários momentos do milénio que antecedeu o nascimento de Cristo partindo do princípio de que, nesse período axial, existiram grandes transformações religiosas nas culturas mais influentes a nível mundial. A sua atenção recai, sobretudo, no confucionismo e taoísmo, na China; no hinduísmo e budismo, na Índia; no monoteísmo, de Israel; no racionalismo filosófico da Grécia.

Em todas estas culturas há uma sensibilidade nova em comum, iniciada na Índia, com o hinduísmo. Em princípio, não há uma influência directa entre regiões, mas sim um alcançar de uma espécie de novo mundo como necessidade sentida por todos.

O mundo antigo vive dos condicionalismos dos rituais e dos sacrificios. O cosmos era concebido como um organismo que ia consumindo energias, sendo necessário a reposição dessas forças periodicamente, quer através de rituais cíclicos, quer através de sacrifícios. Os sábios da idade axial, vão modificar esta nossa relação primária com o mundo. Dão um significado ético ao ritual, colocando a moral no centro da nova vida espiritual. Com isto, o ser humano adquire uma importância extrema.

O cristianismo faz parte desta nova sensibilidade humana, constituindo, no entanto, uma das mudanças mais tardias. Se pensarmos de acordo com a proposta de Armstrong, o cristianismo irá renovar, não o judaísmo, que já tinha entrado na sua fase axial, mas sim duas regiões que ainda não tinham entrado na nova sensibilidade, ou seja, a Europa e o Egipto. Esta teoria encaixa na perfeição, se deixarmos a túnica e as sandálias cheias de areia do deserto à nossa porta, tendo a humildade suficiente de admitir o quanto o cristianismo deve à Europa e ao Egipto a nível simbólico, mítico, filosófico. Utilizando uma linguagem mais metafórica, pode dizer-se que o primeiro sopro do cristianismo é na Palestina, mas as suas sementes vão cair nos núcleos mais importantes do império romano, transformando as suas práticas religiosas, dando-lhes um sentido mais humanizado.

Parece-me, então, que as commumente chamadas Virgens de Ternura, poderão ter uma nova interpretação.

Maria é considerada Mãe de Deus no Concílio de Éfeso no ano de 431. É curioso o dogma ter sido proclamado precisamente na cidade de Artemisa, mãe natureza para os pré-cristãos, sendo representada com inúmeros frutos saindo do seu corpo, um dos locais de maior peregrinação da Antiguidade. Parte dos seus atributos, e da devoção a si dirigida, passam, a partir daí, para Maria.

E o fruto de Maria é Jesus. Estamos, julgo, perante uma nova cosmogonia, podendo esta derivar quer do mito de criação hebraico, quer dos mitos pagãos de renovação do cosmos. Depois do mundo estar criado, depois do mundo ser sucessivamente renovado, este novo mito cosmogónico diz-nos que, com Cristo, o mundo voltou a nascer. È, desta vez, um mundo feito de graça e ternura, tanta quanta existe entre uma mãe e um filho. Mas, ao mesmo tempo, é um mundo humanizado, livre já do jugo, muitas vezes incompreensível, dos rituais requeridos pelos deuses. (Os frutos pendiam somente de Artemisa, pertenciam ao mundo vegetal. O fruto de Maria é humano.) Mundo baseado no nosso livre arbítrio, no nosso caminho ético, tantas vezes individual.

A criação do mundo passa então para um plano secundário. O mundo físico de águas, céus, minerais, plantas, de animais, torna-se o cenário simbólico onde o percurso espiritual dos seres humanos se desenrola. A sua reactualização em termos de forças, deixa de ter, igualmente, a importância dada anteriormente. Com Cristo, somos nós, os seres humanos que necessitamos dessa renovação de forças, através da fé, através das assembleias com os nossos pares.

Karen Armstrong não o refere, mas penso que uma outra idade axial começou a ser desenhada em meados do primeiro milénio depois de Cristo. Refiro-me áquela sonhada pela Idade do Espírito Santo e que no oriente se encontra também no budismo zen. A europeia, tem como símbolo a pomba, ou a coroação das crianças, a japonesa tem como símbolo o Buda que eleva à altura do coração uma flor, como resposta às perguntas concretas sobre o Dharma.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 122



Saber de cor ou a sabedoria do coração

Cynthia Guimarães Taveira

Num resumo muito resumido dava ontem na RTP 2 um documentário científico sobre o coração. Conclusões: o coração possuía células nervosas muito semelhantes às existentes no cérebro, de tal modo que se poderia falar num “pequeno cérebro” que vive dentro do coração. Feitas experiências com muitos fios eléctricos, percebeu-se que perante a visualização de uma imagem o primeiro órgão a reagir era o coração e não o cérebro. Mais do que isso, perante a imagem dada o coração reagia e, em fracções de segundo, passava a reagir de uma forma diferente consoante a imagem seguinte que ainda nem sequer tinha sido dada a ver, ou seja, o coração tinha a capacidade de adivinhar a imagem seguinte reagindo antes de tempo. O coração conseguia enviar informações para o cérebro e o cérebro enviava informações para o coração. O coração possuía memória e uma espécie de inteligência emocional, a tal ponto que aqueles que recebiam corações de dadores, em certos casos, pareciam terem mudado de personalidade. Mostrou-se o caso de um senhor que toda a vida tinha sido um pouco abrutalhado e pouco delicado para a mulher e que, depois de ter recebido o coração do dador, passara a escrever poesia de amor quando nunca tinha tido qualquer tendência para a escrita. Investigado o mistério, descobrira-se que o dador era um amante e escritor de poesia e uma pessoa extremamente sensível. O coração consegue também apreender de outros corações o que se passa com eles. Aquilo que dizemos comummente, “esta pessoa tem boas ou má vibrações”, é afinal produto das mensagens que enviamos uns aos outros pelo coração. Na Escócia, depois de muitos estudos, chegou-se à conclusão de que o número elevado de mortes por doenças cardíacas se devia sobretudo à falta de esperança, mais do que ao excesso de tabaco ou à comida de plástico; era nas classes mais pobres e tristes que se morria mais cedo (20 anos de diferença). Existe uma síndrome de Coração Partido. Depois de um choque ou de um desgosto, o coração muda de forma porque é bombardeado com substâncias libertadas quando há um elevado nível de stress. O coração fica com a forma de um balão, podendo ser curado pela ausência de stress e por técnicas de meditação.
Dizia o António Carlos Carvalho: “Estão eles a gastar fortunas nestes estudos quando bastava ir falar com um mestre chinês.”
Dizia Alexandra Pinto Rebelo: “Hoje em dia os argumentos de autoridade na retórica são os da ciência e não os da religião”.
Dizia Camões que “segundo o amor que tiverdes, tereis o entendimento dos meus versos.”
No fundo da nossa cultura há como que uma expectação da prova. A esperança na demonstração: o mundo é um espectáculo de ilusionismo e tem sempre um truque por detrás susceptível de ser demonstrado, passo a passo, racionalmente. A cultura ocidental tem como motor invisível o Complexo de S. Tomé: ver para crer. É claro que este complexo tem duas faces: na primeira, a crença só é possível depois da prova; na segunda, mais esotérica, a clarividência é a verdadeira experiência. Na nossa civilização, muitas vezes ficamo-nos pela primeira face: aquela que pertence ao cérebro. A segunda pertence ao coração: ver com o coração. Saber de coração. Saber de cor. Saber. Sabedoria.
Assim, a filosofia portuguesa não está imune a esta encruzilhada: saber com o cérebro ou saber com o coração. António Telmo é diferente dentro do seio da Filosofia Portuguesa porque procurou fazer com que a informação passasse do cérebro para o coração e vice-versa. E era extremamente criativo por isso mesmo e porque se limitava a seguir a natureza.
O perigo dos sistemas é igual ao perigo que corremos como civilização, o das prisões, o das ditaduras, o de um materialismo oco e vazio (sem ser cheio). Existe o risco de António Telmo não ser considerado um filosofo dentro da chamada Filosofia Portuguesa. Eu diria antes que, enquanto não se escutar o que António Telmo disse, a Filosofia Portuguesa estagnará num limbo pois que, preocupada com os sistemas, se esquece da Sabedoria. Agostinho da Silva sabia isso muito bem, daí o seu amor ao Culto do Espírito Santo que prepara o mundo para o tempo em que não haverá prisões. Aquilo que a mente prende o coração liberta. Amar a pátria é uma libertação porque a nossa pátria contém o sonho desse mundo livre.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 121



Cynthia Guimarães Taveira

Não és a sorte, nem o azar
És os dois sempre a disfarçar
Todos os teus sinais
São sinais de outros sinais
O tu e eu não são fiéis
O nós e o nós são outros tantos
És a preguiça do saber exacto
E contas palavras erradas
Para saberes os sonhos certos
Passas pela terra e a terra por ti
Num cruzamento de encruzilhadas
Cada afirmação tua é uma dúvida
Cada pergunta uma certeza
Entregas-te sem que lá estejas
Pois a demanda nunca reside onde estás
És um tempo e um espaço baralhados
E podes ser um relato às avessas
Desdobras-te em sacrilégios e devoções
Em impulsos e seduções
És a vertigem no equilíbrio
E o equilíbrio na vertigem
És uma mão desconhecida que se estende
E ergues as almas paradas ao movimento
Não oprimes pois não tens tempo
Os teus olhos estão fixos mas não és morte
És vida em cheio que nos atinge
Para além do azar, para além da sorte
O teu nome é ser viagem.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

ENIGMAS, 4


Gravura de William Blake

“Por veneração, só porque era dedicado a ela, concentrei-me e rezei uma ave-maria. E então ainda no seu meio ou no fim, não me lembro, de súbito, uma força fortíssima do alto e vinda em ondas circulares, anéis, rodeou e apertou, docemente na sua força terrível, todo o meu ser no seu corpo todo, de alto a baixo. Ficou, permaneceu assim, possuindo-me totalmente; dentro de mim, gemia, tão forte era esse abraço circular; toda eu estava como que vibrando dentro de mim, animada por essa força; como energia, como me fazia sofrer até ao cerne de meu corpo e ao mesmo tempo me enchia de doçura. (…)
Mas a virgem é diferente: sua doçura é violenta e possessiva. E não desce e fica, ao nosso lado, separada invisível e presente: mas desce, do alto sobre nós, penetra-nos e rodeia-nos e toda ela é doce possessão de querer, corporalmente todo o nosso ser: nele, ela é uma vibração, tremor, que nos dá vida nova através da morte.
E ela é a Rainha dos Anjos: como eles desce helicoidalmente sobre nós, e nos rodeia. A Virgem é força, mas que vem e se exerce e se une a nós, num corpo vivo, possuindo-o. Como poder de encarnação. Ela é também alegria, mas terrível. E luz, mas luz da noite. E vida, da morte.
Se um dia puderes suportar sua força, seu abraço, saberás o que é nascer na morte. Porque ela é a rainha da vida e da morte. Por isso ela é a estrela da alva.”

Dalila Pereira da Costa in “Os Jardins da Alvorada”, Lello & Irmão - Editores, 1981, pág. 117

“Logo no inicio de Vida Nova, referindo o primeiro encontro com Beatriz, aparecida, quando tinha nove anos, num traje de cor vermelha, o poeta [Dante] diz que «o espírito vital que habita a secretíssima câmara do coração começou a latir com tanta força que se mostrava espantosamente nas menores pulsações» e acrescenta que, tremendo, ele próprio disse estas palavras: Ecce deus fortier me, qui veniens dominabitur mihi (Eis o deus mais forte do que eu que, vindo, me dominará). (…) «Sentia um maravilhoso tremor que começava no lado esquerdo do peito, e se derramava subitamente por todo o corpo»; «então, foram de tal modo aniquilados os meus espíritos pela força que o Amor adquiriu, vendo-me tão perto da gentilíssima mulher, que não continuaram em vida mais do que os espíritos visuais» (…) A visão próxima da Forma de Luz fê-lo tocar os confins da morte: «Pus os pé naquela parte da vida além da qual se não pode ir com a intenção de regressar».

António Telmo in “O Horóscopo de Portugal”, Guimarães Editores, 1997, pág. 129-131

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

EXTRAVAGÂNCIAS, 120


Cynthia Guimarães Taveira

AS ÁGUIAS E OS ABUTRES

A sala estava apinhada. Interesse imenso por parte do auditório. As intervenções sucederam-se. Todos os intervenientes puseram parte de si no que diziam, tal como António Telmo gostava. João Cruz Alves trouxe-nos um vídeo de uma intervenção de António Telmo. A sala estava silenciosa, sorvendo as palavras daquele que nunca quis ser mestre de ninguém mas que encantava todos os que dele se aproximavam e que, de alguma maneira, aprendiam com ele. Foi alegre e triste vê-lo assim de novo. A saudade invadiu a sala.
As conferências acabaram por ser uma pouco à imagem e semelhança de António Telmo: vivas, questionadoras, inteligentes, pouco sistemáticas, críticas, humorísticas, mas sobretudo com aquele calor que não se explica de onde vem. Num dia frio de Inverno, sentiu-se ali o calor do Verão.
Um ou dois abutres pairaram no ar, como dois pesadelos, no meio das águias. Os pesadelos também pertencem ao mundo da alma. O primeiro, vindo do espaço sideral, questionou a portugalidade, dizendo em alto e bom som que esta impedia a espiritualidade. Seu nome, Paulo Borges. Uma onda de rebeldia invadiu a sala: por vezes é a própria portugalidade que nos mostra o caminho da espiritualidade. Ouvia-se a resposta resistente num burburinho.
O outro, mais parecido com uma serpente vinda dos Infernos, convidava a uma autópsia (mau gosto escolhido nas palavras) à obra de António Telmo. E convidava os jovens a descobrirem um sistema na obra de António Telmo. Seu nome, Pinharanda Gomes.
Logo as águias piaram e comentaram: não há sistema, não haverá nem nunca houve. Mas nem por isso deixa de haver amor à sabedoria, caminhos a descobrir. Não há sistema, não haverá nem nunca houve. Há paixão e pensamento. E os jovens riram-se do perigo dos sistemas. E foram-se embora mais leves, lendo livremente António Telmo, descobrindo-o no seu caminho. Foram-se embora lendo livremente e sendo livres.
António Telmo teria dado uma gargalhada, se é que não deu, lá do alto: O amor tudo vence, diria, e o coração de Portugal ainda pulsa secretamente, no meio da confusão do mundo: não no centro do mundo, mas no centro da Ideia.

Cynthia Guimarães Taveira

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011





OS OUTROS DO RESTELO

Os outros do Restelo
São marujos novatos
Que governam o país
Pelo modelo dos fatos.

Os velhos históricos
Ao mesmo sítio vão
E sentados no cais
Nem dizem sim nem não!

Nem dentro nem fora
Se encontram rotas,
Futuros progressos
De gáveas e gaivotas.

Os decrépitos decretos
Regulam todos os gostos.
Só os sonhos que restam
Estão livres de impostos.

Eduardo Aroso
Fevereiro de 2011

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 12



A não violência

Alexandra Pinto Rebelo

Conhecemos o Senhor Ropu em Malta, bem como uma parte da sua família. Como fomos os únicos ocidentais a adivinhar a sua origem indiana, o Senhor Ropu simpatizou imediatamente connosco.

Conversávamos longamente sobre a sua cultura e a nossa, sobre aquilo que víamos, sobre as suas vidas de emigrantes no Dubai. É uma pequena maravilha poder falar demoradamente com alguém, parando o passo ao ritmo da conversa, gesticulando suavemente, sem o tempo a tocar-nos no braço dizendo “temos de ir”. Este prazer, tão nosso aqui do sul da Europa, prazer partilhado por outros, tem-se retirado aos poucos e poucos do nosso léxico de costumes. É pena que as Manifestações sejam gritos em relação a assuntos absolutamente práticos e não se dêem a assuntos considerados de menor importância, a pequenos luxos culturais que se vão dissolvendo aos poucos.

Num desses momentos, o Senhor Ropu perguntou-me se conhecia o Mahabarata, épico indiano. Disse-lhe que sim. Porém, só o conhecia através de um filme realizado admiravelmente por Peter Brook. Nessa altura ainda era um pouco difícil comprar alguns livros em Lisboa, sobretudo relacionados com o Oriente. Tinha apenas o Bhagavad-Gita, obra posterior, mas que naquela se encaixa, narrando os ensinamentos de Krishna no campo de batalha.

O Senhor Ropu parou. Olhou para o chão com uma expressão séria. Pensei ter cometido uma daquelas faltas de respeito imperdoáveis entre culturas, apesar de não compreender o que seria. Ele então baixou a voz e disse-me, num tom muito delicado, que apesar do Bhagavad-Gita ser uma obra sagrada, não se devia guardar nunca um seu exemplar em casa. Perguntei-lhe o porquê, claro. (Não conseguia conceber nenhum motivo impeditivo para termos uma obra sagrada em nossa casa. Muito pelo contrário, até me parecia que dignificava o espaço.)

O Senhor Ropu explicou-me de seguida que, sendo o tema principal do Bhagavad Gita a guerra, a obra, apesar de sagrada, continha em si a violência. Nós não devemos ter em nossa casa nada que apele à violência, nem um livro sagrado, pois o próprio espaço ficará de alguma forma marcado pela desarmonia, reflectindo-se isso nas pessoas que o habitam. Só devemos permitir a existência, nesse nosso primeiro espaço (ou assim deveria ser), de livros que falem de paz e de harmonia.

Lembro-me amiúde, depois de vários anos passados, do conselho do Senhor Ropu e da perplexidade então sentida e que, de alguma forma, nunca deixei de sentir. Imaginei-me, na altura, a deitar os meus livros todos pela janela, queimando-os, qualquer coisa como um Fahrenheit 451 em versão individualizada. Acho que não tenho livros que não tenham em si qualquer coisa de violento. Pensando no assunto por alto, talvez uma ou outra coisa budista, uma ou outra coisa hindú.

A nossa cultura sempre fez o elogio da violência, começando pela Ilíada e pela Odisseia. Estamos tão embrenhados nela que nem nos apercebemos. Quando falo em violência não me refiro só àquela física, mais óbvia. Refiro-me também à violência de ideias, à violência das imagens, à violência dos costumes, dos heróis. À violência dos próprios santos deixando-se representar, muitos deles, com os instrumentos do seu martírio. Não sei se a maior parte das culturas serão assim, a nossa sei que o é.

Possivelmente, tal manifesto de violência dá-nos a preparação suficiente para irmos resistindo, enquanto o mundo não se tornar um lugar quase perfeito. Talvez não conseguíssemos sobreviver, por agora, sem esse exercício teórico da agressão.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

CARTA ABERTA A PEDRO MARTINS



Eduardo Aroso

Caro Pedro Martins,

Na passada terça-feira, 25 de Janeiro, dia em que se comemora a fundação da cidade brasileira de S. Paulo, onde mais de 15 milhões de pessoas falam a Língua Portuguesa, tive o grato privilégio de, inesperadamente, o ver em Coimbra, e assim podermos falar num local onde o mistério das Rosas de Isabel sempre requereu a nossa língua para, no possível, o exprimir, começando pelo próprio esposo real D. Dinis, impulsionador do idioma luso e ele próprio poeta-trovador. Mesmo ao lado do Portugal dos Pequenitos (noutro sentido «dos Maiores»), da Galeria de Santa Clara que habitualmente é banhada por um sol místico e acolhedor, àquela hora na esplanada já fria, também lançámos os olhos ao Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, que dali se avista em todo o lado sul. Sentados depois na sala que recebia calor da lareira vindo de uma outra, de alguns tópicos que abordámos, sempre no mote do saudoso António Telmo «reunir o que está disperso», um deles gostaria de trazer de novo nestas palavras, no intuito apenas de o clarificar, para o caso de não o ter feito, como é costume nas conversas que temos com alguém que não vemos há algum tempo e que decorrem, via de regra, no amistoso afã de quem quer trocar muitas ideias e notícias.
Tendo vindo ao assunto o conceito oriente-ocidente, seja também no que respeita ao pensamento português, citei eu dois exemplos: o de Guénon e o de Fernando Pessoa. Desde já, caro Pedro Martins, lhe peço licença para este intróito da questão. Porque creio não ter sido suficientemente claro na nossa conversa, começo por dizer que ninguém porá em dúvida que o melhor do ocidente se deve também ao melhor do oriente. No entanto, é preciso considerar que se o ocidente se degradou em muitos aspectos, parecendo manchar e mesmo esquecer ao longo dos séculos uma certa pureza ancestral do espírito do oriente, como hábitos de vida e conceitos filosóficos e doutrinais, na exacta contraparte desta situação adquiriu e conservou porém uma gnose numa oitava acima da sua congénere oriental. Vejamos: quando um mestre da mais alta craveira espiritual (avatar, messias) aparece no mundo, ele não só traz uma mensagem nova por tese, doutrina ou conceito, como explicita, no possível, o que de anterior ainda é absolutamente necessário e que urge lembrar e manter. Cristo não aboliu a antiga lei; completou-a, e assim libertou. Como muito bem descreve Annet Rich, a ideia-chave do hinduísmo é «unidade, ensinando-nos que a Divindade está em toda a parte do universo; depois chegou ao mundo a ideia-chave da religião persa ou de Zoroastro que é pureza.» (…) «Séculos mais tarde veio Buda para novamente ensinar as antigas verdades que se encontravam escondidas sob as ruínas do egoísmo e da casta». Posterior à onda espiritual que brilhou sobre a Grécia e que cai para ser ensombrada pelo militarismo romano, neste ambiente hostil surge o Cristo que revela o Amor. Cristianismo que, a partir do século IV, terá que ser procurado não na Igreja de Pedro, mas na de João, a via que os Templários abraçaram. Podemos dizer que o esoterismo do ocidente começa aqui, isto é, a preservação da essência no meio de uma crescente degradação por um cristianismo de fora, que cresce e se enraíza numa estrutura hierárquica, pari e passu com o império romano, cristianismo esse que do dogma levaria ou acompanharia o materialismo actual.
É ponto assente que uma das missões dos Templários seria a de unir (de um modo não apenas geográfico) oriente e ocidente. Mas nisto reside o enigma: que ligação? Por terra e mar, ou pelo espírito? Ou por ambos? Não nos pode deixar de impressionar que uma ordem guerreira e iniciática como a dos Templários tenha cultivado um especial carinho pelo culto do feminino, que na tradição cristã é a Virgem Maria, símbolo de intercessão, mas também princípio criador (Espírito Santo).

Cristo não aboliu a compaixão, a inofensividade, a paz e outros pontos da doutrina de Buda, tendo contudo lançado o enigma «Não vos trago a paz, mas uma espada». Acentuou também que o sofrimento expia-se sofrendo, quando não há alternativa («Toma a tua cruz e segue-Me»), ou então evita-se no presente e/ou no futuro quando aconselha que aos inimigos se deve perdoar «setenta vezes sete». Também não veio fazer a apologia do nirvana – do qual provavelmente nasceu a tragédia do nosso ocidental Antero, bem patente nalguns sonetos –, mas deu o exemplo de superação, no marcante episódio da tentação no deserto, mostrando que a força espiritual pode e deve ser direccionada, e nisto tocou o ponto essencial para o clássico problema do bem e do mal. O perigo, tão delicado para o budismo, que a essência do desejo contém, não pode ser traduzido na recusa do mundo, só porque é gerador de dor, sofrimento e tensões várias. Ou seja, a recusa de enfrentar a dualidade – pelo menos com a complexidade que o ocidente a toma.
O panorama actual da relação oriente-ocidente mostra-nos, inequivocamente, que o primeiro já só existe como passado do presente e que, agora, em rápido movimento se tem “ocidentalizado” no pior que tem a nossa civilização. Mas, perante isto, não existe, intocável, toda a gnose das civilizações do sol nascente? À legítima pergunta se responde afirmativamente, valendo também para o ocidente no que expus em cima. «A Europa jaz, posta nos cotovelos:/ De Oriente a Ocidente jaz, fitando» (…) «Fita, com olhar esfíngico e fatal, / O Ocidente, futuro do passado». É razoável pensarmos que Pessoa, ao dizer Europa, se refere ao movimento da civilização. Se é verdade que, na perspectiva geográfica, o sol nasce a oriente, não é menos significativo o seu movimento que é de leste para oeste, assinalando assim o curso da civilização, com as suas virtudes e defeitos. Como, pois, o equívoco de trocar o budismo pelo cristianismo ou a flor-de-lótus pela rosa? Como, pois, voltar-se para o passado do presente (e do futuro), não reconhecendo o verdadeiro tao (via) do ocidente «Eu sou o caminho, a verdade e a vida», pronunciado pelo Senhor do Sol? Como, pois, recusar encarar a sombra, o «guardião do umbral» no confronto da pura individualidade ou individuação na unidade divina que o pensamento do ocidente foi revelando?
Depois deste intróito, quiçá longo para uma carta, se entenderá melhor o percurso iniciático do indiscutível René Guénon, mas que não estabeleceu a essencial diferença entre uma coisa e outra: oriente e ocidente. Se bem que a divindade não pode estar, em circunstância alguma, dividida geograficamente, o certo é que a forma de a realizar na imanência humana tem caminhos diferentes. Quando um discípulo procura o caminho da iniciação só pode avançar no seu «raio vibratório». Não é novidade. Vem nos livros. Disseram-no Besant, Blawatsky, R. Steiner, Heindel, entre outros, há cerca de cem anos. Embora Guénon tenha escrito páginas e páginas enciclopédicas sobre ocultismo, não disse o essencial e interior sobre o esoterismo cristão. Não podia dizer. Como muito provavelmente os autores atrás mencionados não poderiam ter dito sobre o sufismo. Creio ser pertinente a seguinte observação: a propósito de Guénon, António de Macedo diz-nos num dos seus livros que teve uma conversa com o seu amigo Lima de Freitas, tendo-lhe confidenciado que no autor de A Crise do Mundo Moderno, «em nenhum dos seus livros se lê uma só palavra sobre amor e sexo». (Nem sequer no sentido sagrado do último termo, diria eu), «ao que Lima de Freitas retrucou: - Nem sobre Estética!». Muitos, entre nós, há muito observaram que Guénon, enigmaticamente, calou sobre Portugal e os Templários. Provavelmente porque, também neste ponto, pouco ou nada sabia, assunto que aliás está intrinsecamente relacionado com o esoterismo cristão. Tendo nascido em Blois, não muito longe de Paris, acabou por morrer no Cairo, convertido ao sufismo, sendo o pormenor da cidade onde faleceu de pouca importância. Importância sim, nele, foi o do seu «raio vibratório» (um entre os sete existentes na Terra) inequivocamente islâmico (adoptou, por fim, um nome de acordo) e por isso incapaz de compreender, pelo menos no lado mais profundo, a doutrina secreta do Cristo.

Quanto ao interessantíssimo caso de Fernando Pessoa, podemos dizer que segue uma via inversa. Como bem observou António Quadros, o poeta místico-ocultista parte de uma predominância racionalista e filosófica, avança para um estádio neopagão, depois espírita, gnóstico, teosófico e hermético (onde surge também a astrologia) para ser absorvido, finalmente, pelas doutrinas rosacruzes e templárias. Se bem que, como também adverte António Quadros no prefácio de «À Procura da Verdade Oculta» (ed. Europa-América), estes estádios, como é evidente, não estão separados de todo, correspondendo a épocas de acentuação de interesses, de interiores (re) descobertas. Particularmente significativo é o conjunto de escritos que Pessoa regista nos últimos dois anos da sua vida, o que faz evidente o seu percurso, ou o seu oculto encontro-em-si-mesmo, que outra coisa não é que o portal ou já altar da iniciação. O seu «raio vibratório» é inequivocamente o cristão esotérico, com a particular expressão ocidental rosacruciana e templária. Vamos reler, por exemplo, o seu poema à Virgem Maria, datado de 14/8/1935, cerca de três meses antes da sua morte física: «À Virgem – Ninguém, nem eu, tem de minha alma dó, / neste momento,/ Ó mãe universal, sê minha só!/ Não são teus olhos, é a minha vida…/ Não são as tuas dores reveladas/ Pela presença das espadas/ Que te me fazem uma mão vivida…/ O que eu sou e o que eu fui, bóia, fervilha/ à tona das marés mudadas./ Não são teus olhos que [sic]». Ainda do mesmo mês e ano, um outro: «Virgem Maria – Mãe de quem não tem mãe, no teu regaço/ Poisa a cabeça a dor universal/ E dorme, ébria, do fim do seu cansaço…/ E tens na mão usado e nunca immundo,/ O pequenino lenço maternal/ Com que enxugas as lágrimas do mundo».
Parece até que Pessoa se voltou resignadamente (ou desiludido) mais para a Igreja de Pedro do que para a de João, ele que tinha dito anos antes «troquemos Fátima por Trancoso». Apenas, em meu entender, depois da tal «procura da verdade oculta», uma pura aceitação, cândida e simultaneamente reveladora, onde o poeta alquimiza todo o seu percurso, ou melhor, quando encontra o seu getsmani. Convém ter a par disto que dos últimos dois anos da sua vida datam também versos onde encontramos palavras como calvário, cruz, Pilatos, Nazareth, Anjo da Guarda, e poemas como é o caso de Monte Abiegno, de inconfundível conteúdo iniciático, quando o poeta alcança o cume mais elevado. Assim, nos derradeiros anos, a cruz a que o poeta se refere não é a da Igreja de Pedro, mas a esotérica, quando no final do poema O Encoberto diz «Que símbolo final/ Mostra o sol já desperto?/ Na Cruz morta e fatal/ A Rosa do Encoberto».
Esta carta, à primeira vista, parece estar emoldurada quase só de uma certa teologia do cristianismo, pela citação de várias passagens bíblicas, e por uma defesa do ponto de vista ocidental. Seja assim; sobretudo no último ponto. Sabemos que religião e filosofia seguem vias diferentes, mas não antagónicas, porque ambas estão sob o mesmo Sopro Universal. Porém, eis a diferença fulcral, também quanto a oriente-ocidente: tendo em conta o actual mundo dito da comunicação (mas que espécie de comunicação?), ainda assim cada povo e civilização interpretam a divindade e a si se pensam de modo particular. Aqui recordamos a lúcida afirmação de Álvaro Ribeiro: «A cada povo é proposto um ideal diferente de realização da Humanidade». Perante isto, que conclusão extrair, se conclusão se pode tirar? Uma coisa é certa: há um caminho. Antes, o início e o fim desconhecem-se. Depois, tocam-se de modos diferentes, juntos no plano da realização, como ouroboros que morde a sua cauda. Portugal tem sido designado como a terra da serpente, animal de duplo sentido que tanto atraiu Pessoa, que nos falou da Ordo Serpentis. Cristo mostrou a possibilidade de dois caminhos num só ao dizer «Sede sábios como as serpentes e mansos como as pombas».
Aceite o melhor abraço, na expectativa de regressarmos a Santa Clara ou a Sesimbra, para continuarmos a «unir o que está disperso».

Coimbra, 1 de Fevereiro de 2011
Eduardo Aroso

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

PROGRAMA PARA DIAS 14 E 15 DE FEVEREIRO



A não perder...

14 de Fevereiro, 2ª feira
  • 10h00: Sessão de Abertura
    António Braz Teixeira
  • 11h00: Comunicações
    Joaquim Domingues, «António Telmo: o homem e a obra»
    Abel de Lacerda, «Um olhar de António Telmo na simbólica de Prestes João»
    Roque Braz de Oliveira, «António Telmo e os caminhos da hermenêutica»
    Carlos Vargas, «A ironia em António Telmo»
  • 13h00: Intervalo para almoço
  • 14h30: Comunicações
    Paulo Teixeira Pinto, «Portugal sem segredos»
    Mário Rui, «António Telmo e as Três Tradições do Livro»
    Manuel Gandra, «Linhagem seminal e espiritualidades bastardas – finais de todos os tempos e no contexto lusíada»
    Luís Paixão, «O número 8 na obra de António Telmo»
  • 16h30: Intervalo para café
  • 17h00: Comunicações
    António Carlos Carvalho, «Os nomes de António Telmo»
    Cynthia Taveira, «António Telmo e a inversão dos candelabros»
    Rui Lopo, «Significado e Valor da Filosofia em António Telmo»
    Pedro Martins, «António Telmo e Luís de Camões»
  • 19h30: Jantar no Círculo Eça de Queiroz*. Inclui, a partir das 21h, apresentação de uma obra inédita de António Telmo, por Nuno Nazareth Fernandes.


15 de Fevereiro, 3ª feira

  • 11h00: Comunicações
    João Cruz Alves, «Testemunho sobre um homem novo»
    António Quadros Ferro, «Correspondência entre António Telmo e António Quadros»
    Elísio Gala, «Língua e Pátria»
    Renato Epifânio, «A ideia de Pátria em António Telmo»
  • 13h00: Intervalo para almoço
  • 14h30: Comunicações
    Carlos Aurélio, «Religiosidade e razão poética em António Telmo»
    Paulo Borges, «O último texto de António Telmo: "O acabar da história [...] bruscamente engolida pelo nada que essencialmente é"»
    António Cândido Franco, «António Telmo e o Surrealismo»
    Rodrigo Sobral Cunha, «O viajante»
  • 16h30: Intervalo para café
  • 17h00: Testemunhos
    Manuel Ferreira Patrício
    Pedro Sinde
    Paulo Santos
    Pedro Ribeiro
    Pinharanda Gomes


* Para o Círculo Eça de Queiroz exige-se fato escuro e gravata. Jantar: 25€ (marcação até 7 de Fevereiro, para: iflbgeral@gmail.com)

sábado, 5 de fevereiro de 2011

REALIDADES


Pormenor de "As tentações de Santo Antão", de Hyeronimus Bosch,
Museu Nacional de Arte Antiga

Cynthia Guimarães Taveira

Notícia retirada da Internet:
“O artista de origem grega e australiana Stelarc implantou a cartilagem de uma orelha no próprio braço. O processo levou anos e ele quase perdeu o braço por causa de uma infecção.
Ele é um dos participantes da feira Kinetica, em Londres, que reúne arte com novas mídias e tecnologias. Stelarc explica que quando a orelha se desenvolver mais, com o uso de células tronco, vai instalar um microfone sem fio nela. O som captado poderá então ser transmitido para diversos lugares.”

Mais uma vez a "liberdade de expressão". Mais uma vez a total ausência de respeito ou de humanidade.

Bosch sabia do que somos capazes e fez descrição detalhada da nossa época antes dela existir.

Senti-me por todos aqueles portadores de deficiência que nada escolheram. Tortos, com menos um braço, com menos uma perna, uma mão, um olho. Com um desgosto na alma por não terem nascido direitos, ou por doença ou por acidente. Senti a tristeza deles ao lerem esta notícia.
Senti que há gente indiferente, desumana que não dá valor ao que tem.
Arte? Então os médicos nazis eram uns artistas... não sabia.
Senti que há gente má. Ponto final.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

SABEDORIA ANTIGA, 11



O rinoceronte mais célebre da Europa

Alexandra Pinto Rebelo

No início do séc. XVI, Afonso de Albuquerque entra em conversações com o Rei de Cambaia. O objectivo era obter a permissão para a construção de uma fortaleza portuguesa em Diu. Como era costume no seu tempo, entrega presentes da parte do Rei de Portugal, D. Manuel. A autorização, mesmo com os obséquios, não é dada. No entanto, o Rei de Cambaia retribui os presentes: um “catalete de lavor em madrepérola” para D. Manuel e uma “bicha monstruosa”, o rinoceronte, para Afonso de Albuquerque. O animal chega a Goa em Setembro de 1514. Afonso de Albuquerque não sabe o que lhe há-de fazer. Lembra-se então que D. Manuel gosta de animais exóticos, mantendo alguns elefantes asiáticos no Paço do Rossio, devidamente acompanhados pelos seus tratadores indianos. Decide enviar-lho. A “bicha monstruosa” lá parte de Cochim em Janeiro de 1515, alimentada a palha e arroz pelo seu tratador indiano, chegando a Lisboa, em boas condições de saúde, a 20 de Maio do mesmo ano.

O animal causa espanto como não poderia deixar de ser. Corre pela corte a informação de que os rinocerontes são, sem sombra de dúvida, mais fortes do que os elefantes. D. Manuel quer verificar se assim é, ficando marcada uma luta entre a “bicha” e um dos elefantes “lisboetas”, confronto ocorrido a 3 de Junho de 1515, no Palácio da Ribeira, relatado mais tarde por Damião de Goes na sua Chronica Del Rei D. Manoel (1566).

A luta, ao contrário do que poderíamos esperar, não foi nada cruel. O elefante era jovem e quando percebe que o rinoceronte vai na sua direcção, dá meia volta e foge, sendo levado de novo para as suas instalações sem nenhuma mazela. O rinoceronte é aclamado nesse momento como o animal mais aguerrido, tornando-se célebre.

O Rei decide enviá-lo a Leão X, como presente. Por esses tempos, convinha dar presentes surpreendentes aos Papas para o que desse e viesse. O rinoceronte parte de novo em viagem em Dezembro do mesmo ano. Mas a notícia da presença do animal em Lisboa já corria pela Europa. Francisco I, Rei de França, pede que o navio transportando a preciosa carga aporte em Marselha, a caminho de Roma, para que ele o possa ver. Assim fazem. Novamente no mar, acontece o não menos célebre naufrágio, atirando para a costa o corpo do rinoceronte já sem vida.

É Valentim Fernandes, tipógrafo da Morávia a viver em Lisboa, que dá a notícia do rinoceronte aos seus amigos em Nuremberga e em Augsburgo. Para além da descrição verbal do animal, envia-lhes igualmente um desenho ilustrando a sua fisionomia que, segundo Dagoberto L. Markl, poderia ser uma cópia de um original elaborado por Francisco de Holanda.

Dürer, um dos pintores mais conceituados do renascimento, terá tido acesso à carta e ao desenho enviados por Valentim. É a partir deles que elabora as suas famosas gravuras, datadas, igualmente, de 1515.

Deste curioso episódio da nossa história, poderemos pensar nalguns apontamentos que dela vamos retirando. Na importância, por exemplo, de Portugal para a abertura da Europa ao mundo. Muito possivelmente desde Alexandre que a Europa não assistia, em fascínio, a notícias de mundos tão distantes. Na rapidez com que a informação circulava no renascimento, sendo uma informação fecunda para os humanistas. Na deslocação de pessoas que, até há bem poucos anos, nunca pensariam em habitar cidades no outro lado do mundo.

REALIDADES


Cynthia Guimarães Taveira


Nunca viu um computador? É velho? Está só? É pobre?

Nós, o governo da República viemos dar-lhe uma grande notícia!!!

Vai ver um computador! Onde? Não sabemos, desenrasque-se! Estupendo!!!
Vai passar a ter as mesmas experiências que os novos com este magnífico acesso à Internet, mais especificamente ao Portal das Finanças! Magnífico!!!
Vai deixar de estar só porque vai poder finalmente falar com alguém para lhe pedir o favor de lhe declarar o IRS! Espantoso!!!
Vai ser ainda mais pobre porque não vai conseguir entregar o IRS e não vai ter direito a reembolso! Fantástico! Fantástico! Fantástico!!!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

PALAVRAS DE LEONARDO, 1



“O lirismo é a dignificação e a exaltação do indivíduo. O lirismo procura o verdadeiro, o original sentido de cada alma. O poeta lírico, que, para interpretar as almas, começa pelo que elas apresentam de mais imediatamente concreto, achará no indivíduo o amor que o une ao ente amado. E com esse amor ele o pode enredar e prender à família, à humanidade, ao Universo inteiro.
Originariamente individualista, o lirismo pode levar o homem, de entusiasmo em entusiasmo, a sentir-se bem mais concreto e real na universal sociedade dos seres do que encerrado nos seus sentimentos, que, isolados em si, perderiam a cor, o significado e a vida. Na obra de Camões temos a alma lusitana. Reencontraremos a nossa alma enquanto os nossos olhos souberem chorar de sofrimento e os nossos braços se souberem erguer em resgate. Nessas virtudes antigas devemos ir buscar a força para a obra de hoje. Ela não será um futuro de novas descobertas ou conquistas guerreiras. Mas aquela audácia mística que nos fez ir procurar os mundos desconhecidos empreguemo-la na descoberta dos ignorados mundos da nova justiça, mais humana, mais inquieta e mais amorosa. Aquela coragem e aquela lealdade bem precisas nos são para a obra de perfectibilidade moral e social que a consciência nos exige.”

Leonardo Coimbra in Dispersos, I. Poesia Portuguesa, Editorial Verbo, 1984, pág.206