(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



segunda-feira, 30 de novembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 35

António Carlos Carvalho

Passou mais um aniversário da morte do Fernando Pessoa. É uma das poucas efemérides que guardo dentro de mim, agora ainda mais porque moro a poucas centenas de metros daquela que foi a sua última morada neste mundo.
Como se sabe, o poeta viria a morrer em 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses, ao Bairro Alto – e há muitos anos descobri, com espanto, que 35 anos depois, no mesmo hospital e no mesmo quarto morreu também um dos seus grandes amigos, Almada Negreiros. Coincidência?
Consta que as últimas palavras de Pessoa terão sido: «Dá-me os óculos».
Como se o poeta ainda quisesse ver – ou ver mais.
No final da vida, Almada tinha percebido que o importante era saber ver, não apenas olhar.

Fernando Pessoa

Curiosamente, encontrei ontem mesmo uma interpretação fascinante (luminosa) das consequências da chamada Queda de Adam. Passo a citar Gabriel Ittah (em «Les Dix Paroles», obra colectiva, ed. Cerf, 1995):
«Antes da falta o que é que via Adam? Não o aspecto exterior das coisas, mas sempre o aspecto interior. Que via ele na sua mulher? Tselem Elohim, essa partícula divina que constitui o essencial do ser, sendo o corpo apenas um invólucro acessório. Que vêem os olhos de Adam? Por todo o lado, a presença divina.
Após a falta, existe um versículo muito revelador (Ge. 3, 7):
«Os olhos deles abriram-se e eles compreenderam.»
Será que a falta lhes abriu os olhos? Temos a impressão que se trata de inteligência, ora nós julgávamos que a falta embrutecia. E de repente a própria Torah diz-nos: esta falta tão grave, tão essencial, abriu-lhes os olhos. Que é que terão então compreendido?
É precisamente aí que se situa a queda do ser humano. No início, vendo somente as coisas na sua interioridade, não tinha vergonha. Os seus olhos estavam dirigidos para a presença divina e só a ela viam. Após a falta, compreende. Entender intelectualmente representa o nível mais baixo de percepção do homem. A coisa deixa de ser sentida, já não é vivida, mas unicamente compreendida.
Nesse momento (Gen. 3, 8) eles entendem, compreendem que existe uma presença divina. Compreender é a manifestação essencial da queda. A presença divina torna-se qualquer coisa que depende do intelecto. Já não há realidade visual, apenas entender e compreender.
A partir desse momento, as coisas corporais tornam-se a realidade. Antes da falta, o homem via em todos os seres uma partícula divina. Depois da falta, só vê um corpo. Compreende que existe uma partícula divina que habita em cada ser. Mas isso deixa de ser experimentado.
Não basta saber, é necessário transmitir esse saber ao coração. O compreendido é insuficiente, deve tornar-se vivido. Muitas vezes, o homem vive de maneira realmente oposta ao que compreende. O que a Torah espera dele é que atinja uma percepção que transcende o mundo da matéria e que veja o que anima o mundo corporal, ou seja, a palavra divina.»


Mais tarde, o dom da Torah consistiu em preparar os Filhos de Israel para acederem a uma certa visão, a que vai além da compreensão: «todo o povo via as vozes» (Ex. 20, 18).

É isso que se espera agora de nós: vermos aquilo que ouvimos.

Como no Sinai.

domingo, 29 de novembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 40

Deste lado do mar de Sesimbra*
Pedro Martins

Ao Elísio Gala


Conheci Orlando Vitorino pouco tempo antes de ele partir. Foi em Estremoz, longe do centro, no Bairro da Salsinha. Conheci-o numa manhã de domingo, num café pacato, com a Serra d’Ossa ao fundo. Fui ali levado pelo Inácio Ballesteros. Logo percebi que a reunião no local era costumada. Orlando Vitorino já lá se encontrava. António Telmo chegaria pouco depois.
Àquela hora, manhã alta, chegado do Sul, o sol vinha da serra e insinuava-se na sala umbrosa. Pairava uma luz tépida, sem clamor. Afável, sorridente, algo curioso, Orlando Vitorino acolheu-me com bonomia. Impressionou-me a sua serenidade, definitiva, quase derradeira. Disse-lhe que era de Lisboa, que vivia em Sesimbra, e que frequentava a tertúlia de seu irmão em Estremoz. A alusão à Piscosa valeu por um santo-e-senha. Agradado, Orlando recordou histórias da sua juventude, quis saber de pessoas, evocou-me lugares.
Em dada altura, o Inácio Ballesteros fez inflectir a conversa para Sampaio Bruno, versando um episódio de O Encoberto, um dos muitos trechos anti-clericais com que o leitor se depara nas páginas deste livro. A talho de foice, e para minha surpresa, o autor de Tongatabu afirmou que Eça de Queirós era o maior escritor católico português. Com uma seriedade imperturbável, sem trair o mais leve sinal de ironia, foi desfiando um ror de argumentos na demonstração da sua tese. Nunca serei capaz de desfazer a dúvida que me deixou.
Meses depois, fiz-lhe chegar, pelo João Tavares, algumas publicações sobre Sesimbra, em cuja edição eu estivera envolvido. Eram livros de velhos amigos, como António Reis Marques, Rafael Monteiro e José Preto. Quando o reencontrei no café Mira Serra, deu-me conta do agrado que a leitura daquelas obras lhe causara, e ofereceu-me um exemplar de O Plutocrata, um pequeno livro seu que viera a lume alguns anos antes, sob o pseudónimo de Ernesto Palma. Abri-o no frontispício, folheei-o, detive-me na dedicatória. Ali posta como um sinal, era-me devolvida a palavra onde as ondas sorriem e a luz se demora. Escrevera ele: Ao Pedro Martins, deste lado do mar de Sesimbra.
Por essa altura, corria o ano de 2003, estava eu a meio do primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Orlando Vitorino elogiou o escritor francês. Mas logo protestei interromper a sua leitura, para dar a atenção devida ao livrinho que me fora oferecido. Não faltei ao prometido. E fui surpreendido por um texto breve e genial, acutilante e sagaz, onde a arte da palavra e a luz do pensamento destroçam ideias feitas. Ao relê-lo hoje, descubro-o – e isto é terrível – mais actual do que nunca, e sei que uma palavra define o seu autor: liberdade.
A liberdade, eis o traço de união que cinge, num abraço, os homens da Filosofia Portuguesa. Orlando Vitorino conquistou-a e defendeu-a, entregando-se a um combate sem tréguas, provavelmente perdido, mas que tinha de ser travado. Raros homens do espírito ousaram uma luta assim, pertinaz, porfiada, sem temor. Nisso esteve a sua virtude. Nisso está a sua saudade. Nisso estará a sua glória.
Não voltei a vê-lo. Daí a poucos meses, em Dezembro, no lançamento do Mapa Metafísico da Europa, do Carlos Aurélio, soube que estava muito doente. Dias depois, telefonei a António Telmo. Atendeu-me a sua mulher. Pediu-me desculpa, mas tinha de desligar. Acompanhava o cunhado à sua última morada.
Não voltei a vê-lo. E perguntei-me se o não teria conhecido demasiado tarde. Logo em Janeiro do ano seguinte, iniciei colaboração efémera num jornal do concelho de Sesimbra. Evoquei Orlando na primeira das cinco crónicas mensais que ali publiquei. Ao escrevê-la, dei-me conta de que, afinal, o conheci demasiado cedo. E parti em busca do tempo perdido, neste lado da vida, deste lado do mar de Sesimbra…
____________
* Aqui republico, com levíssimas alterações (só a dedicatória constitui novidade), parte de um artigo originalmente destinado a uma evocação plural de Orlando Vitorino, numa outra publicação. Ontem, durante o lançamento da nova edição de O Plutocrata, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, tive oportunidade de, em público ou em privado, me referir a alguns dos episódios acabados de contar ao leitor. Por razões óbvias, dadas as circunstâncias de tempo, lugar e modo – as mesmas que ora me impelem a dar, de novo, este escrito à letra de forma.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 39



Mar Mor
Eduardo Aroso

Tem o horizonte mais largo,
Fundura além de corais.
Nele ninguém soçobra,
Âncoras são catedrais.
Dentro ninguém se perde
Pois há sempre uma gaivota
Que na vaga do desânimo
É um aviso que nos ergue.
Mar mor, mar nosso,
Cálice de sal e dor.
Prece à espera de ser dita
Na vaga mais alta
Da hora abstracta
Que se precipita….

Buarcos, Figueira da Foz, 19-11-09

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 31

Cynthia Guimarães Taveira




O Voo
E havia aquele espaço em que o corpo imaginado ganhava uma forma real quando o artista o encarnava e o fazia estremecer num primeiro instante de vida. Sempre leve esse corpo, etéreo como as nuvens e voava deslizando numa ternura pela superfície do planeta. Aí já não era a pintura que importava, mas uma outra vida. A vida dos deuses capazes de moldarem a ilusão do mundo com um sopro, um virar de cabeça, um gesto voluntário das mãos. Como se este fosse o propósito último da pintura: encarnar corpos leves, poderosos e absolutos, enfim consagrados a todos os reais possíveis, inesgotáveis, susceptíveis de serem criados apenas pela vontade. Como se a vontade fosse o primeiro e derradeiro instrumento da criação, e tudo se resumisse a ela, sem barreiras do pensamento, do símbolo, da preocupação com a estética, por tudo isso já conter em si. Uma essência essencial da própria vida, o grão de mostarda do imanente.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

NO PRÓXIMO SÁBADO, ÀS 15:00, NA BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SESIMBRA

Lançamento. É já no próximo sábado, dia 28, pelas 15:00, que a Serra d’Ossa lança O Plutocrata, de Ernesto Palma (pseudónimo de Orlando Vitorino), uma das últimas obras que o autor de Refutação da Filosofia Triunfante nos deixou, e que inicialmente saiu a lume em 1996, com a chancela da Ledo. O lançamento realiza-se na Biblioteca Municipal de Sesimbra e a apresentação da obra estará a cargo de Elísio Gala, do círculo dos Cadernos, que também a prefacia.
Mas quem é O Plutocrata? A palavra a Ernesto Palma: “Plutocrata é o homem que alia, a uma grande disponibilidade de dinheiro, o poder de com ela dominar a sociedade, não à maneira do político que a oprime ou liberta, nem à do militar que a disciplina, nem à do clérigo que a apascenta. O domínio que o plutocrata exerce é o de definir as hierarquias que compõem a sociedade, preservar as posições ou planos que tem cada hierarquia, designar as pessoas que ocupam essas posições.”

terça-feira, 24 de novembro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 22

Pedro Sinde


A Tertúlia ou a Arte de Conversar
28.8.2005
Consta que o termo “tertúlia” vem mesmo de Tertuliano, mas não directamente. Terá sido na corte de Filipe IV de Espanha que a palavra apareceu, porque os literatos e os artistas se reuniam regularmente sob o nome de Tertuliano, que opunham ao de Cícero, como quem opõe o cristianismo ao paganismo.
A alta tradição da Filosofia Portuguesa criou uma série de tertúlias, que se espalharam por diversas gerações, formando gradualmente uma escola formada por várias personalidades, de que cito, a título exemplar, o nome: Sampaio Bruno, Teixeira Rego e Guerra Junqueiro; Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes; Álvaro Ribeiro e José Marinho; António Telmo, em Sesimbra (com Rafael Monteiro), Vila Viçosa e depois em Estremoz; Orlando Vitorino, em Lisboa.
Quando se vai para uma tertúlia destas, em que se procura o mais alto, a única coisa que importa, deve-se ter presente que se desconhece o lugar espiritual que cada alma ocupa – a que os sufis chamam “sirr”, o lugar secreto que a alma ocupa na hierarquia espiritual –, deve-se ouvir o que cada um diz independentemente de quem o diz, que é o preconceito habitual que nos leva a ouvir de modo submisso quem cremos elevado e desatentos quem cremos “abaixo” de nós. Não se sabe onde sopra a verdade ou através de quem o faz. Abd el Qader diz a este propósito: “Deus enuncia certas verdades através de pessoas que não são dignas, afim de as dar a conhecer àqueles que são dignos.”
António Telmo conta que José Marinho quando chegava à tertúlia perguntava, por vezes, “hoje temos conversa ou diversa?” Nesta pergunta estava já pressuposta a ideia que fundamenta a conversa, isto é, a convergência das almas diversas para um ponto partilhado de mesmo interesse.
Ora, só pode haver conversa se o interesse (inter-esse) que ali reúne as almas for o mesmo; e aqui têm início os grandes equívocos das conversas que só o sejam na aparência, pois são, na realidade, diversas ou de diversão.
Quando se encontram almas que aspiram ao mais elevado, conversam, convergem ou comungam a causa da sua inquietação, isto é, do que os tira da quietação, do que os move, os fins para que se dirigem e o que viram no caminho que estão percorrendo. Assim, escolhem criteriosamente os temas, as teses e os teoremas – como diria Álvaro Ribeiro.
Só pode haver conversa nesta condição, onde quer que entre a superstição, a diversão e a competição, estamos no domínio da polémica e da discussão que melhor serve para encher páginas supérfluas de jornais e enganar o leitor desprevenido.
Cada um sabe ou deve saber guardar o silêncio ou calar tudo quanto saia do que serve de tema de conversa.
A conversa começa com a escolha de um tema que tanto pode surgir do discípulo mais atrasado no desenvolvimento da sua alma, como do mestre, que visa assim orientar o discípulo.
Há dois tipos de atitudes possíveis perante a própria ignorância: há aquele que, ignorando, procura conhecer e há o que, ignorando, disfarça a sua ignorância.
A primeira aprendizagem, a primeira regra da conversa não é o saber falar, mas o saber ouvir: um surdo não ouve. Para saber ouvir é preciso estar interessado, sem interesse não importa o que seja dito, cai a semente sempre por entre infecundos penedos.
Saber silenciar, saber ouvir e saber falar. A última aprendizagem é a de saber falar, aprende-se falando e sabendo ouvir; sabendo, depois de lançado o tema, extrair todas as teses implícitas e argumentar com os respectivos teoremas. A superstição não cabe na argumentação.
Para que a conversa flua fecundantemente é ainda necessário saber reconhecer que as conversas acontecem em planos muito distintos que Dante já esclareceu.
A motivação para o encontro na tertúlia deve ser sempre a da demanda do mais alto. Motivações sociais são sempre acessórias e servem frequentemente para estragar a conversa. Antes de se dirigir à tertúlia deve o tertuliante procurar descobrir em si se é a motivação que o leva ou se é ele que leva a motivação.
Na filosofia portuguesa a relação entre mestre e discípulo é implícita (e não explícita, como no oriente), quer dizer, toma por base a circunstância da amizade de espírito a que os celtas chamavam: anamcara – literalmente, «o amigo da alma».

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

AFORISMOS, 11

Eduardo Aroso

51 – A reforma educativa de maior alcance que se tem feito em Portugal é a da formatação de professores.
52 – Organização da urbe – As ruas dividem a cidade, dividem mesmo, isto é, colocam de um lado os edifícios dos arquivos que, diz-se, pertencem ao Estado. Do outro lado, as casas dos cidadãos que têm sentimentos vivos.
53 – A razão e o coração: duas colunas que não se fitam, separadas por um espesso nevoeiro. O Homem dividido em si. A máxima grega «Gnôthi séauton nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo» é para constantemente nos lembrar disso. E para que a lenta madrugada do espírito possa ir mostrando os alvores da manhã divina.
54 – Consentir também que o efémero é de Deus, numa espécie de “última linha de manifestação”. Na dificuldade de avaliar a sua importância relativa, é de crer todavia que, conforme a palavra, tenha pouca duração. O efémero serve uma vez, como os guardanapos de papel.
55 – O sentido da liberdade criadora e organizadora no céu da apetência do pensamento português é o da exegese do Espírito Santo. O insondável Amor do Pai, através da mediação do Filho, toma forma e ganha inteira expressão no acto criador e libertador do Espírito Santo. E nisto, tudo o que se tem entendido por Revelação toma um sentido mais luminoso. Ele é o salvador das épocas caóticas, dos tempos do desespero, o súbito horizonte de alegria que se abre no naufrágio do soluço nocturno.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

TEOREMAS DO «57»: A ARQUITECTURA

TESE
A arquitectura é uma arte decorativa.
Corolário:
Primado dos outros artistas plásticos sobre os arquitectos.
____________
ANTÍTESE A arquitectura é uma técnica de construção.
Corolário:
Primado dos engenheiros sobre os arquitectos.
____________

SÍNTESE A arquitectura é um factor de articulação do belo e do útil (tectura) com as arquias (princípios sobrenaturais.
Corolário:
Primado dos arquitectos; concepção da arquitectura como arquisofia.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 30

Cynthia Guimarães Taveira


A Tela Branca
Em arte não há novidade. Novidades encontramo-las espalhadas pelos jornais nas bancas ou nas surpresas, bem vindas, ou não, que se nos apresentam pela vida. Trémulo, o pintor, está frente à tela branca. Ela está imóvel, passiva, serena. Espera-se. Em conjunto com a batuta do maestro que escuta, o pintor ergue o lápis primeiro e desenha as formas, as curvas, os “porquês“, os “comos”. De seguida segura no pincel e a cor vai tomando conta dessas formas, curvas, “porquês” e “comos”. Deixa a resposta. A obra é uma pergunta respondida e por isso não há novidade. Acabou. Limpou o suor. Sentiu a alegria súbita no final. Cumpriu-se. Prevista, agora vista, a obra é actualizada em gesto e antiga desde há muito.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

TEOREMAS DO «57»: AS ARTES PLÁSTICAS

TESE
A arte é uma composição formal em que só têm valor os elementos plásticos.
Corolário:
Entre a arte realista e a arte abstracta só há diferenças de gradação, porque ambas dispensam o conceito filosófico.

____________

ANTÍTESE A arte é uma composição alegórica em que os elementos plásticos se colocam ao serviço de causas preconcebidas e úteis.
Corolário:
A arte publicitária, que atraiçoa maquiavelicamente a verdade, na persecução de fins imediatos que só ilusoriamente realiza.
____________

SÍNTESE A arte é uma composição simbólica, em que os elementos plásticos se reúnem para um superior fim espiritual.
Corolário:
A estética da imaginação, mediando realidades diferentes, cujas fronteiras a obra abate, em fraternidade teológica com as outras artes.

AMANHÃ, ÀS 18:30, NA ASSOCIAÇÃO AGOSTINHO DA SILVA, EM LISBOA


Livros. de olhos lavados, de António José Borges, e A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha, são os títulos em foco na sessão dupla de lançamento que amanhã tem lugar, pelas 18:30, na Associação Agostinho da Silva, em Lisboa.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

TEOREMAS DO «57»: O TEATRO

TESE O teatro é uma inefável expressão poética.
Corolário:
O teatro perde essência poética no processo que vai da alma do lírico à redacção dos diálogos e à representação nos palcos.

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ANTÍTESE O teatro é um ornamento cultural de grande difusão publicitária.
Corolário:
O teatro é um serviço público e portanto um negócio do Estado.

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SÍNTESE O teatro é o trânsito da arte para a filosofia, da imagem para o conceito, da poesia para a prosa.
Corolário:
Não há teatro sem espectáculo; nele reside o ponto de encontro do gesto, no sentido camoneano, e da palavra humana.

AFORISMOS, 10

Eduardo Aroso

46 – A Verdade guarda-se no mito: virgem para se entregar aos braços irreconhecíveis de cada época.
47 – O dia de hoje não é só o dia de hoje. É o dia de todos os tempos. Hoje, porém, devo dar-me a este tempo presente. Para que, no futuro, não se diga em vão que esse dia não é de todos os tempos…
48 – Quando, a torto e a direito, ouvimos a expressão “este país”, para além do mecânico hábito de impensada repetição, ainda assim podemos crer que algo fala verdade pela desocultação de uma ausência, ou seja, a insistente menção a “este país” significa que um outro existe ou poderá vir a existir. Dado que a expressão tem sido sinónimo de uma fonte interminável de desgraças e dissabores culturais, é de crer no “outro país”, mais verdadeiro, estável e prometedor. Nele vive conscientemente a nação e – melhor ainda – a pátria, o ser inconfundível e universalmente português.
49 – Todo o pensamento que seja faina diária provoca transpiração. Mais do que a segregação das glândulas endócrinas vertida directamente no sangue, esse suor do pensamento espalha-se pela alma e pelo intelecto. Ao contrário dos vírus que tendem a disseminar-se rapidamente, esse misto de transpiração e dor só se abre em plenitude no tempo certo; assim as flores na época apropriada.
50 – A Torre de Belém, ante o mar e o horizonte, está voltada ao céu para sonhá-lo e, um dia, deixar a terra. Para onde se erguem as torres de hoje?

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 21

Pedro Sinde



O paradoxo
É conhecida a frase de Agostinho da Silva em que este diz sensivelmente (cito de cor) que “não é pelo ortodoxo nem pelo heterodoxo, mas pelo paradoxo”.
Todos os grandes, mesmo quando defendem o “ortodoxo”, sabem que as formas são sempre corpetes e que, portanto, há qualquer coisa para lá, acima, que é além de qualquer forma; essa “qualquer coisa” apresenta-se à razão como paradoxal (por estar acima dela: são as “verdades acima da razão”, a que se refere Sampaio Bruno). No entanto, a mesma razão, vê-se forçada a reconhecer essa coisa, apesar da sua natureza paradoxal, natureza que faz com que seja simultaneamente “isto” e ”aquilo” e, no entanto, não seja nem “isto” nem “aquilo”.

O Combate Entre o Carnaval e a Quaresma, de Pieter Brueghel, o Velho: clique na imagem para a ampliar
Foi a propósito de uma reflexão deste tipo que me ocorreu qualquer coisa que tinha escrito há uns anos (descobri que é datado de 1-X-1997) e que é, no fundo, uma espécie de modesta hermenêutica do paradoxo:
O que é o paradoxo? Uma fricção entre dois pólos que se amam na sua oposição. Luta feita de guerra e amor, luta de apaixonados. Aqueles que vêem o paradoxo apenas à superfície, vêem uma guerra inconciliável. Aqueles que vêem o paradoxo em profundidade, é ao amor que os une que vêem. Cada qual vê com o seu olhar.
A faísca que salta da sua fricção, pedra contra pedra, pode acender em nós, se soubermos e pudermos aguentar a sua intensidade, o fogo da transcendência na imanência, que é a própria natureza da nossa paradoxal existência: imanentes e transcendentes a um só tempo…

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 29

Cynthia Guimarães Taveira




A Alegria
O pintor duvida, sua, tenta, apaga, dobra-se, olha de longe, desvia o olhar. Ajusta a cor à emoção, sai de si em êxtase e agarra a alma do modelo com a amplitude de um pincel. Agita-se. Dorme, definha, não come. Não acorda a pensar nos próximos pincéis, nos próximos tubos de tinta a espremer. Arrasta-se pela casa com olhos sonolentos e dirige-se como um sonâmbulo para o quadro. Quando grita, o pincel grita com ele. Quando ama, o pincel ama mais, e quando chora cai uma lágrima de tinta. Dói o corpo todo ao artista. Não tem posição e esquece-se de todas as posições em que está. O corpo é um invólucro dorido e leve. A arte só é possível com algo de zen no paradoxo. O fogo não destrói, une. E por fim pára, o pintor, e a respiração pára com ele. O pincel desliza caindo suavemente no chão. A obra está pronta. E acontece esse momento indescritível, único, fugaz, com qualquer coisa de forte e de ligeiro em simultâneo e com a dimensão da razão inteira da existência da vida e do mundo. A obra olha para o pintor, reconhece-o e, de uma forma altamente misteriosa, transmite-lhe a alegria. Não uma alegria qualquer, do Carnaval ou do aniversário. Mas a Alegria, a verdadeira. É breve, esse momento, mas é o derradeiro voo em direcção à certeza. É nesse momento que a obra mostra estar, por fim, viva.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 34

António Carlos Carvalho

-- Ora, isso é um mito!
-- Mas não passa de um mito ...
Quantas vezes é que já ouvimos isto? Ou que já lemos? Não sei quando, nem como, nem porquê, mas a verdade é que, a partir de certa altura, nesta simiesca (a expressão é do Pascoaes) maneira de ser e de estar que se tornou a nossa, passámos a repetir esta falsidade como se fosse verdadeira: «mito» sinónimo de «mentira».
Creio que, uma vez mais, estamos a prestar homenagem, inconscientemente, às técnicas de propaganda do sinistro dr. Goebbels: uma mentira, repetida muitas vezes, acaba por se tornar verdade.
Aliás, é o que a publicidade (cujas técnicas de influência influenciaram a propaganda de ideias) faz todos os dias: encher-nos os olhos e os ouvidos com uma boa mentira.
Neste caso, a questão é mais grave: se nos convencerem que «o mito é uma mentira», perderemos definitivamente um utensílio importante para a nossa meditação.
Todos os povos têm (ou tinham) mitos de fundação, que dão fundamento à sua própria identidade. Esses mitos, que são narrativas exemplares, não narram acontecimentos no sentido histórico – e, no entanto, são absolutamente verdadeiros porque estão repletos de uma profunda sabedoria, são riquíssimos de significado e neles nos podemos reconhecer, identificando-nos pessoal ou colectivamente.
Podemos dizer que o mito é uma narrativa fundadora de identidade: lendo-a, somos arrastados para uma dinâmica que nos estrutura. E assim entendemos o que somos.

A Batalha de Ourique, de Domingos António de Sequeira
Lembro aqui uma passagem da «Arte de Ser Português», obra evocada há pouco tempo em Sesimbra – Pascoaes escreveu:
«Bem sabemos que o Cristo de Ourique é uma lenda, o que ingenuamente demonstrou Alexandre Herculano. Mas é certo que a Lenda se formou, o que, para nós, tem mais valor que a realidade histórica daquela aparição. A esta realidade preferimos a legendária. (...) E vê-se que na Legenda existe, em mais verdade, o génio de um Povo, que na História. Aquela, é criada pelo que ele tem de mais íntimo e profundo; e esta, pelo que ele possui de mais comum aos outros Povos.»
Repare-se na distinção que Pascoaes faz (em 1915!) entre Lenda e Legenda – distinção essa completamente esquecida no nosso tempo, mas fundamental – e leiamos Legenda como Mito: o mito é realmente uma história que se deve ler, guardar na memória e transmitir aos que vêm a seguir. Uma identidade transmitida em cadeia, a partir de uma narrativa exemplar.
De qualquer modo, tudo isto está explicado, muito melhor, nas obras de Mircea Eliade (em boa parte traduzidas entre nós – basta procurar e ler com olhos de ler).
Por isso, em vez de papaguearmos estes e outros disparates modernos, repetidos até à exaustão pelos meios de comunicação mas também por muito boa gente com títulos universitários, mais nos convém ir beber à fonte, aí onde a água do conhecimento corre pura, ainda não maculada pela poluição das ideias feitas.
Isto é, se ainda nos importamos com o significado e com o valor das palavras.
Ou seja, se é que ainda nos importamos com alguma coisa ...

terça-feira, 10 de novembro de 2009

NO PRÓXIMO DIA 21, ÀS 15:30, EM MONTEMOR-O-NOVO

57. O ciclo de simpósios dedicado aos 12 Teoremas do 57 - Actualidade dos Teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa, que os Cadernos de Filosofia Extravagante têm vindo a organizar, ao longo do corrente ano, na Livraria Fonte de Letras, em Montemor-o-Novo, regressa no próximo dia 21, às 15:30. Será o terceiro encontro desta série, e nele participarão, como apresentadores, António Carlos Carvalho (teorema do Teatro), Cynthia Guimarães Taveira (teorema das Artes Plásticas) e Luís Paixão (teorema da Arquitectura).
Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos o seu teorema.
Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.
A anteceder a realização do simpósio, os teoremas respectivos serão aqui publicados.

MILHAFRE: O BLOGUE DO MIL

Divulgação. O MIL - Movimento Internacional Lusófono tem, a partir de hoje, um blogue próprio, o MILHAFRE, a que se pode aceder em http://www.mil-hafre.blogspot.com/.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

PENSANDO À BOLINA, 13

Pedro Sinde



A flor da Saudade é a Açucena
Quem assim o diz é Isidoro de Barreyra, um desses monges secretos que Sampaio Bruno tanto gostava de repescar, perdido no labirinto estreito de uma qualquer biblioteca. O livro em que o diz tem o seguinte cativante título: Tratado das significaçoens das plantas, flores, e fruttus, que se referem na sagrada escrittura, tiradas de divinas, e humanas letras, com suas breves considerações. Isidoro de Barreyra, foi monge da Ordem de Cristo em Tomar, no Convento de Cristo. Este livro interessantíssimo é de 1622. Também Camilo o refere a propósito da Saudade.
Os saudosistas deviam atentar neste facto interessante que é o de haver uma flor que é o símbolo da Saudade.
Se seguirmos atentamente a explicação de Isidoro de Barreyra veremos que há ali uma cifra. Em primeiro lugar o monge começa por nos apresentar a Açucena na sua significação bíblica como símbolo de pureza. Aparece, por essa razão, ao lado da Virgem nas representações da anunciação. De seguida, muda o discurso e, ao contrário do que acontece no resto do livro, refere a significação da Açucena "entre nós", pressupõe-se que querendo dizer entre os portugueses, mas pode ter outra significação mais funda.

Lilium Album. The book of plants, Basilius Besler

Ora, entre nós, a Açucena significa não a pureza, mas a Saudade. A justificação que o monge dá para isso é muito interessante, sobretudo porque não é exacta. Quer dizer, Isidoro de Barreyra explica que a Açucena tem a característica de florir mesmo quando cortada ou arrancada da raiz e colocada num recipiente com água. Ora, isto é exacto, o que não é exacto é que a Açucena seja a única flor com esta propriedade e se essa é a razão para que seja ela a simbolizar, em vez de outra, a Saudade, então há aqui um erro estranho. É por esta razão que me parece que aqui se esconde qualquer coisa de muito importante e que eventualmente estaria ligado com a Ordem de Cristo naquela altura. Um observador tão fino, como era Isidoro de Barreyra, nunca cometeria um erro tão grosseiro; o erro é uma cifra. Do meu ponto de vista, Isidoro de Barreyra está a cifrar algo muito importante ligado à tradição portuguesa e à Ordem de Cristo. A forma pela qual ele apresenta o assunto ali no livro, dá a entender que a Açucena representa exotericamente a pureza na iconografia Católica, mas esotericamente representa a Saudade, na tradição portuguesa. Isidoro de Barreyra diz assim: "E ainda que muitos attribuão isto à puresa da Virgem, com tudo segredo tem pintaremse as Cessens [Açucenas] só neste mysterio, & não em outros."
Tudo isto me parece ligado à noção de exílio. No próximo Pensar à bolina procurarei explicar, se vi bem, qual a razão.

texto originalmente publicado no blogue Maranos

domingo, 8 de novembro de 2009

O CAMINHO DO CAMINHO, 9

Cynthia Guimarães Taveira




A Casa
Havia uma casa de pedra no meio do caminho. Erguia-se na noite da serra de Sintra. Sentavam-se num banco em frente conversando durante muitas noites. Conversavam sobre tudo. Viagens, passeios simples sem aviões pelo meio, memórias, opiniões e, sobretudo, como acto natural, sobre a tentativa de descobrir a verdade das coisas. A filosofia não requeria sistemas porque ela era a da mais antiga espécie. Um diálogo entre amigos. Digo eu uma coisa, dizes tu outra, mais uma pedra no edifício, mais uma memória que nos forma. Mais um riso, mais um suspiro. Caminhavam com as palavras. Nesse banco, no breu de Sintra, de vez em quando paravam. Olhavam o recorte da casa indistinta:
- Eras capaz de passar aqui a noite?
- Acho que está assombrada, mas acho que sim.
- Uma noite de vigília?
- Aqui só podia ser uma noite de vigília, nem que fosse pelo pânico!
E riam-se dos mistérios de Sintra e da estranha capacidade que essa serra tinha de os acolher. Sintra não era como os outros sítios. Tinha humores, e vozes, brilhos súbitos, labirintos escuros. Nunca havia um dia igual ao outro, como se a serra se renovasse e tivesse fases iguais à da lua. Imaginavam-na como uma grande dama, enorme no seu corpo de árvores, riachos e flores, coroada de rochas, envolta num véu de nevoeiro, ora ocultando-se ora revelando-se. A morte não morava ali, porque nada era estático. Uma brisa que passava era uma mensagem cifrada. Sabiam que havia algures um coração na serra, escondido, palpitando, inquieto. Talvez no seu interior, talvez no seu exterior. Havia mistérios ali, maravilhosos, tenebrosos alguns…
A serra parecia já os conhecer enquanto o contrário nunca seria verdade. Falavam em frente à casa e pensavam que talvez se tratasse de um hotel antigo desabitado. Nada sabiam dela mas, no fim dos seus passeios iniciados ao pôr-do-sol, acabavam sempre ali. O que eles não sabiam era que a casa os escutava. Ouvia as conversas, sorria. Sábia, a casa.
Anos mais tarde, voltaram à luz do dia, desta vez sabendo através de uma revista que a mansão era filosofal, e que todas as suas estranhas esculturas tinham um significado, e que a casa falava sem palavras. Olhavam-na já com outros olhos. O temor dera lugar à curiosidade. Era uma casa aparentemente surrealista, desconexa. Esculpida toda ela, com labirintos e jardins, com fontes e lagos, pedras por todos os caminhos, sinais indicando sentidos vários. Era uma casa improvável porque era o contrário do que uma casa deveria ser. A casa era, afinal, uma viagem. Não era estática. Todos os passos levavam ao encontro de novas paisagens, novos ângulos, novos pontos de vista. Não se estava naquela casa. Ia-se naquela casa. E o mais estranho é que, depois de a terem percorrido, a casa ia com eles, para onde quer que eles fossem, pela vida fora. A casa aparecia-lhes nos bancos da escola onde aprendiam lições gastas, nas ruas de Lisboa, nas escolhas que faziam. A sua presença fazia-se sentir nos sinais, pequeninos sinais, que subitamente se transformavam em autênticos símbolos. Atentavam neles numa atitude religiosa. O mundo era um símbolo inteiro, a casa apenas um microcosmos reflectindo esse imenso mundo. E ouvia os filósofos que dialogavam uns com os outros e, ao ouvi-los, comovia-se e, não os conseguindo largar mais, segurava-os, escutando todas as conversas, incitando-os ao caminho. O mundo irrompia com flores, e os passos tornavam-se uma dança. Com voltas e cornucópias, luas discretas iluminando as noites. E a vida nunca seria mais a mesma para eles. Até ao fim a casa estaria com eles.
No caminho do caminho aprendera que um milagre faz mais sentido do que a cura por um xarope. A panaceia universal estendia-se numa aparente falta de sentido. E tudo tinha sido virado de pernas para o ar. O verdadeiro surrealismo estava no mundo triste que aparentava ter um sentido e era onde não havia sentido nenhum que se podia encontrar o sentido de todas as coisas. A casa entrava com vénias e sorrisos por todo o lado. Nos sonhos onde os bonecos amigos da Alice, no seu país das maravilhas, boiavam em pias baptismais que ficavam dentro da casa. Os cortinados escarlate, pesados de veludo, ocultavam rostos e conversas do outro lado e no pátio de terra batida o então dono da casa preparava uma obra de caridade. Nada fazia sentido, aparentemente, mas nos sonhos esses símbolos vivos faziam parte de uma outra lógica de uma outra ordem de ideias. A imensa capacidade criativa contida explodia em alegria e verdade. Só o mundo sem milagres permanecia mudo e sem sentido. Qualquer símbolo, por mais pequeninito que fosse, parecia fazer mais ondas dentro deles do que uma aula inteira de matemática.
Uma gota de água que caísse de um céu sem nuvens era mais verdadeira do que uma enxurrada vinda de nuvens carregadas. O fenómeno, o irreal, o surpreendente faziam parte desse mundo paralelo que parecia conhecer de antemão as causas e efeitos, trocando-lhes a ordem. O improvável era a coisa mais provável do mundo. E a prova estava no fundo dos seus olhos que haviam adquirido um brilho único, e notava-se neles a existência de uma alma desperta, ao contrário de outros olhos que com eles se cruzavam, desalmados, aprisionados na procura de um sentido onde não havia sentido nenhum.
Anos mais tarde visitaram a casa, de novo. E não a estranharam tanto. Pareciam adivinhar a saída dos labirintos com naturalidade. Talvez começassem, por fim, a conhecer a casa… A passo e passo. Afinal a casa tinha entrado nas suas conversas filosóficas, estava-lhes no sangue. Por isso, e apenas por isso era uma verdadeira casa filosofal. Porque se cruzava e enrodilhava com a própria vida.

sábado, 7 de novembro de 2009

PARA VER

Lançamentos. Já está disponível, no blogue da Nova Águia, uma breve reportagem fotográfica da apresentação do Aladino, de Rodrigo Sobral Cunha, hoje, na Quinta da Regaleira, em Sintra. E também uma outra, da sessão sobre Pascoaes, há uma semana, em Sesimbra.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

AMANHÃ...






Lançamento. A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, livro da autoria de Rodrigo Sobral Cunha, de que já aqui se falou, é lançado amanhã, com a chancela da Zéfiro, na Quinta da Regaleira, em Sintra. O programa (para consultá-lo, clique na imagem) é vasto e aliciante. A apresentação da obra, a cargo de António Telmo e Pedro Sinde, será feita às 15:00 horas.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 28

Cynthia Guimarães Taveira





A Paisagem
Os cenários assim olhados são paisagens interiores. Essa cidade que desliza sobre os nossos passos é a cidade incrustada nas paredes das nossas telas. A contemplação é íntima, é demanda ao íntimo tão íntimo que não nos é dado a conhecer. As montanhas são abismos virados ao contrário caindo sobre o nosso deserto e o mar verte-se no céu. O pintor quando olha já pincela e corrige o mundo no coração. É o erro que gera o pintor. O erro do ângulo, o erro da cor, o erro da luz que poderia ser outra. E é a exactidão que o redime.
O momento da folha de bambu balouçando ao vento é o outro momento do pintor que balança também mas mais um pouco. Mais um pouco de verde, mais um pouco de azul e eis o céu, o verdadeiro céu porque o outro.
Ele olha o mundo mas não o quer, ele ama a paisagem mas não a retém. Invade-a, conquista-a, encanta-a, descobre-lhe a alma e deixa-a elevar-se quase só. No instante em que lhe dá vida, dá-lhe também a liberdade. Coisas de demiurgo. Sussurros amenos em dias de tempestade…

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 33

António Carlos Carvalho

Só para encerrar o triste assunto «Caim»:
O jovem universitário, muito progressista e cheio de si, estando de visita à sua terra natal, foi visitar o velho rabi.
-- Sabe, rabi, descobri que não acredito em Deus.
-- Não faz mal, meu filho, Deus acredita em ti.
-- Não está a perceber, rabi, eu sou ateu.
-- Mas costumas ler a Torah?
-- Não, não me diz nada.
-- Mas ao menos estudas o Talmude...?
-- Não, rabi, essas velharias não me interessam.
-- Mas então, meu filho, tu não és ateu, és um ignorante!
Lembrei-me muito desta história da sabedoria judaica, ouvindo ou lendo o que se comentou a respeito da polémica criada em torno do tal romance badalado. Cheguei à conclusão (ou melhor, confirmei) que existe por aí uma grande ignorância, misturada com uma série de ideias feitas, a respeito dos textos bíblicos.
Lamentável, sobretudo, o profundo desconhecimento que tantos católicos revelam quando se trata dos que eles chamam «Antigo Testamento» -- é como se nunca o tivessem lido, ou então, se leram, não perceberam nada. Não perceberam, sobretudo, que Jesus passou o seu tempo de vida neste mundo a citar passagens do tal «Antigo Testamento» (que nunca chamaria assim, claro...). Incluindo o que constitui o essencial da sua mensagem: «amarás o teu próximo como a ti mesmo» -- que já encontramos no Levítico, 19, 18.
É essa lamentável ignorância que permite, como ouvi nestes dias, dizer que «o Deus do Antigo Testamento é cruel» (foi dito por uma intelectual católica e progressista, e de esquerda, aos microfones da Antena 2: a pobre senhora, coitada, nem sequer percebe que, admitindo a existência de dois deuses, o do Antigo e o do Novo Testamento, está a ser simplesmente politeísta...) ou que o amor só nasceu com o Cristianismo (afirmou um escritor prolífero nesse mesmo programa) – então e o amor de Abraham e de Sarah, de Isaac e Rebeca, de Jacob e Rachel (e de Léah por Jacob), de David e Betsabé, e o do «Cântico dos Cânticos», verdadeiro «santo dos santos» dos textos bíblicos...?

Abraham, Sarah e o Anjo, de Jan Provost

Como é possível ignorarmos os nossos textos fundadores?
Eis um bom retrato da nossa época: tantas bibliotecas, em papel e na Internet, e tanta ignorância – agora sem desculpa de não termos acesso fácil às fontes.
Entretanto, o que escrevi antes suscitou um comentário do «Pedro» sobre a confusão actual entre símbolo e sinal e a possibilidade de vivermos hoje a realidade do símbolo, nomeadamente enquanto dominador da pulsão predadora.
O que me faz lembrar o meu encontro com o universo do simbolismo.
Corria o ano de 1970 e eu vivia uma crise de agnosticismo (pois é, ninguém é perfeito...). O meu amigo João Carlos Alvim passou-me um livro e disse-me: «Tens de ler isto» O livro em questão era «Symboles fondamentaux de la science sacrée», de René Guénon. Li-o e a minha vida mudou – de repente, graças à descoberta do símbolo, tudo fazia sentido.
Depois li a obra toda do Guénon, estudando-a atentamente. E a seguir passei para outros autores da mesma linha de pensamento tradicional, entre eles o importantíssimo Luc Benoist. Uma das suas obras, «Signos, Símbolos e Mitos» (Edições 70) escrita a partir da descoberta de Guénon pelo próprio Benoist, é igualmente essencial para entendermos o que está em jogo no mundo do simbolismo – e na sua verdadeira chave, segundo o mesmo Guénon: a teoria do gesto.
Escreve Luc Benoist:
«Considerada na sua concepção mais alargada, a teoria do gesto postula a reintegração da continuidade a todos os níveis de um mundo que a física quântica apresenta como dominado pelo descontínuo. Ela restabele um elo de solidariedade virtual entre estados distintos, sobretudo quando o gesto inicial se transforma em ritmo pela sua própria repetição. Porque a acção, imediata por definição, produz os seus efeitos de modo sucessivo e só se liberta do provisório graças ao ritmo que comanda os gestos, os ritos e os símbolos. Existe, diz Guénon, identidade entre o símbolo e o rito. Não apenas por qualquer rito ser um símbolo realizado no tempo, mas porque, reciprocamente, o símbolo gráfico é a fixação de um gesto ritual.»
Admito que esta compreensão do símbolo não seja para todos – nem sequer para os que tinham a obrigação de entender o que está aqui em causa, religiosos e professores de simbolismo na universidade – a uma dessas professoras, aliás muito conhecida pelos seus trabalhos sobre a tradição hermética, ouvi-a eu defender que o símbolo é uma criação meramente humana (como o sinal de trânsito, perguntei eu?).
Com o decorrer dos anos, fui-me afastando de algumas ideias guenonianas e mergulhando mais no perene universo bíblico. O que me leva agora a recordar, por exemplo, que Deus explica a Caim que o mal está acocorado (como um predador à espreita) à sua porta e que ele tem de saber dominá-lo. De facto, a tendência ou inclinação para o mal encontra-se dentro de cada um de nós (como a do bem) e compete-nos saber como a devemos dominar.
Por outro lado, em matéria de simbolismo, podíamos citar o episódio do não-sacrifício (ao contrário do que se costuma dizer) de Isaac: Deus pede a Abraham que lhe ofereça, que «faça subir» o seu filho único, bem amado, e Abraham julgar ver nesse pedido uma ordem, e nessa ordem a obrigação de fazer com Isaac o que outros pais, de outros povos vizinhos, faziam com os seus próprios filhos: matá-los e oferecê-los aos deuses.
Claro que Deus está apenas a pedir a Abraham que se desligue do seu filho tão desejado (por Abraham e por Sarah) para que ele, Isaac, possa libertar-se dessa atadura paternal e seguir o seu próprio caminho.
Mas Abraham imagina o pior: leva o filho ao alto do monte, ata-o (liga-o) e quando se prepara para desferir o golpe da sua faca de pastor, um anjo suspende-lhe o gesto e indica-lhe um carneiro preso pelos chifres entre os arbustos.
E assim, de uma maneira simbólica, se deve encerrar a era dos sacrifícios humanos, e mais ainda a dos infanticídios, transferindo o sacrifício para os animais.
(Diga-se de passagem que «sacrifício» ou «holocausto» são palavras com outras conotações bem diferentes das que contém o «korban» hebraico, «oferta de gado» feita subir ou aproximar de Deus. E que a tradição judaica nunca fala de «sacrifício» mas antes de «atadura de Isaac»).
Eis um bom exemplo da importância do simbólico como dominador do tal instinto predador a que todos estamos sujeitos quando nos esquecemos da nossa condição de seres humanos a quem foi dado como norma: «Tu não assassinarás». E ainda mais: «tu escolherás a vida».
Mas claro que nestes tempos em que vivemos, com tanta confusão de imagens, de sinais, de palavras, com tanto esquecimento ou ignorância dos textos fundadores, nestes tempos de «tudo é permitido», entrar no universo simbólico é muito mais complicado e arriscado do que viajar para outro planeta: arriscamo-nos a descobrir que este mundo que fizemos, nós, todos cheios de direitos e de liberdades, mas de nenhuns deveres, está virado de pernas para o ar. E que seria necessário, tal como Abraham, sairmos daqui, deste estado das coisas, e irmos para o lugar que Deus nos indicar.
Ou seja, irmos para nós próprios, ao encontro do propósito para o qual formos criados.
O simbolismo continua a ser uma aventura, uma descoberta, uma demanda, certamente uma das mais importantes. Mas onde estão os novos argonautas, os Cavaleiros do Amor?

terça-feira, 3 de novembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 38

Santo-e-senha
(sobre A Verdadeira História de Aladino e a Lâmpada Maravilhosa, de Rodrigo Sobral Cunha)
Pedro Martins

Perante um livro inclassificável como este, não temos palavras bastantes: sempre algumas ficarão por dizer – um pouco à imagem daquelas com que, noite após noite, Xerazade retoma e reata os relatos suspensivos da ira do sultão. Foi justamente na tradição assim percebida que Rodrigo Sobral Cunha se escorou e escudou ao empreender a façanha de reinventar Aladino.
Tradição – sabem-no os juristas versados no comércio das coisas – significa sobretudo transmissão e entrega. Rodrigo, que se guardou da ocupação pretoriana, pôde depositar o seu escrúpulo na recepção da herança. Daí o denso intróito brunino dos parágrafos iniciais, firmando a tardia recepção europeia da narração interminável. Só na aparência o aparato erudito ali está a mais. É por ele que o autor requer homens despertos. Que o leitor há-de saber merecer este livro!
Aquém do mistério, inexpugnável, que determinou a obra de arte autêntica, fica destarte revelado o segredo que, contra os falsários, importa relevar. Mas além deste segredo, há ainda outro, que são dois. O autor anuncia-os de viva voz: 1) é dentro da própria história que a coisa que está fora dela se passa; 2) é fora da própria história que a coisa que está dentro dela se passa.
Na distância indistinta que separa o interior do exterior veio a caber toda a luz da criação, ou não fosse a obra uma apologia exaltada e exaltante do primado da imaginação. A um tempo, Rodrigo tornou-se escravo e senhor deste poder soberano, quase derradeiro. Foi o preço a pagar pela ventura das palavras primogénitas. Dito de outro modo, talvez o autor, de início, apenas tivesse em mente a composição de um ensaio sobre o conto celebrado. Depois disso, um momento terá havido em que a narrativa oriental invadiu o estudo do hermeneuta. Ou, quiçá, entrementes, haja sido a razão atlântica do filósofo a potenciar o estro anónimo fixado por Galland… Quem o saberá?

Fosse como fosse, quando Rodrigo se deu conta, já era tarde. Passava da hora inaugural. A coisa estava em marcha; fazia, inexorável, o seu caminho.

Na extrema concisão de uma só linha, de um só período, breves parágrafos indicadores da acção pelo movimento verbal fulguravam não obstante como aforismos. Como versos dispersos pela planície prosaica do grande poema. Perscrutando, subterrânea – segundo a citada, transcrita tradução de De Quincey –, os sons que atravessam o mundo, a geomancia do mago africano, conducente ao lugar onde encontraria o rapaz, volvia-se afinal – na alusão implícita, por sugerida – em exercício de ritmanálise. Era um livro que entrava no outro. E havia palavras que saíam voando de outras palavras, desenrolando o tapete, desfazendo o turbante, desvelando Aladino – palavras que no paladino revelavam, alfim, o alado imo. No filósofo emergente do ritmo, semelhantes divertimentos, lembrando musicalmente scherzos, sempre seriam coisa séria; e, em verdade, eram prelúdios do grande final, tingido por uma apoteose serena, na recriação inaudita dos momentos em que Aladino, já na posse da lâmpada, se detém a contemplar o jardim.

Depois dos segredos, o milagre. É para cima, e não em frente, que as fronteiras se diluem nesta narrativa poética e filosófica, sinal de que o agir, o sentir e o pensar vibraram em uníssono na alma do autor. E, por entre as coisas que são de sempre, há coisas novas que aguardam o leitor atento a este novo modo de dizer e ao que nele vai dito, sinal de que a nova geração da filosofia portuguesa procura não se deixar represar em sistemas perfeitos ou fórmulas acabadas, no que aliás intenta honrar os seus maiores.

Reconhece-se, evidentemente, a marca da escola – de uma escola – neste livro. “Rodrigo Cunha tirou uma história de outra história” – escreve António Telmo no prefácio que intitulou de Chamamento, de alguma sorte fazendo lembrar o gesto do muezim que, do alto do minarete, convoca os fiéis à oração, às horas santas. E, na verdade, assemelha-se este livro a um concerto de vozes que se erguem para a luz. É que, acompanhando a nota prefacial subscrita pelo autor de Viagem a Granada, nas suas laudas iremos ainda encontrar uma notável série de ilustrações de Carlos Aurélio, e um posfácio – Silsila – onde Pedro Sinde ilumina a iniciação que no Aladino encontra, por analogia com a paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Lembro-me então de um outro extracto do livro de Rodrigo, numa transcrição tirada de Ruskin: “Os grandes feitos da arte são tornados possíveis quando as almas dos homens se encontram como as jóias nas janelas do palácio de Aladino, puras por igual as pequenas gemas e as grandes, sem precisar de cimento, mas sim da harmonia das suas facetas”. Lembro-me depois de que Aladino permaneceu na caverna durante três dias (sexta-feira, sábado e domingo) que – coisa ainda não inteiramente notada a este propósito – são os dias santos das três religiões abraâmicas, aquelas que, segundo Álvaro Ribeiro, confluem no formação do pensamento português. Se a interpretação iniciática que Pedro Sinde fez do Aladino estiver correcta – como, de facto, está –, a passagem de Ruskin pode bem ilustrar outrossim a unidade interna, e transcendente, com que a gnose da tradição lusíada, pelo prisma da imaginação criadora, cingiu os três monoteísmos. Nas sucessivas lembranças deixadas ao leitor, deponho a esperança de haver correspondido ao chamamento que pede o santo-e-senha desta obra:

Continua!

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O OUTONO, 4

[de Verbo Escuro, no 132.º aniversário de Teixeira de Pascoaes, dia de Finados]

V. O outono é belo, porque nos provoca uma fuga da alma sobre as cousas, isto é, sobre o Passado. E o homem adora tudo o que o afasta de si mesmo. Ele gosta de se contemplar, através da Saudade –, essa distância espiritual, que dá perspectiva eterna ao seu frágil ser transitório.
VI. Ah, se a morte fosse a infinita lembrança da Vida?!
Não será o Reino da Saudade o espaço misterioso, que medeia entre esta vida e o Além? E a dor que deixamos, nos outros, ao partir, não irá formar o corpo do nosso espectro? a luz da sua consciência e dos seus olhos?
Ai dos mortos esquecidos! São apenas esqueletos…
VII. O outono é belo para o homem, porque ele já foi árvore, e recorda ainda a delícia do adormecer, quando a seiva pára arrefecida, e a sensação do mundo externo, tomba, com as folhas, das ramagens.

Teixeira de Pascoaes

AFORISMOS, 9

Eduardo Aroso

41 – Os novos púlpitos entram em nossas casas, convocando-nos para a procissão (pagã ou não) cujo objectivo é ir engrossando à medida que passa, não em cada rua, mas a cada dia. No bulício da água-benta do racional, já ninguém sabe qual o santo que vai à frente…
42 – Mais rápida do que o movimento das pálpebras, a viseira do futuro abre e fecha ao mais simples pestanejar da alma.
43 – Viriato – o Sonho antes do Sonho.
44 – D. Sebastião é o mito do imprevisível. Não se sabe a hora do regresso do Rei-Encoberto e, sobretudo, o modo como o fará. Para além do que a tradição consagra como manhã de nevoeiro - leia-se tempos pouco claros – O Desejado é o mito do imprevisível porque representa o que é novo para criar futuro, e o que é verdadeiramente criação nova não se prevê, embora tome depois as rédeas da História. «Morrer, sim, mas devagar» significa, de modo inverso, reaparecer subitamente, por nunca, em verdade, se chegar a morrer.
45 – A pátria é a janela de onde se começa a avistar o mundo. A nossa é manuelina. Ide…

domingo, 1 de novembro de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 37

Reacção minha, há 12 anos, ao que li hoje, aos 82, sobre um dos meus livros*
António Telmo



Tendo passado o limite da idade que Dante, na Divina Comédia, assinala como o termo da vida humana, julgo ter entrado no domínio daquela estéril serenidade ociosa que é o dos velhos que, antes desse termo, conheceram, tiveram e praticaram o dom da inventividade. Como, porém, sinto que é pecado não praticar a arte de escrever quando se foi educado nela por homens que a praticaram para além daquele termo e me vejo sem força íntima para inventar coisas novas, achei poder desviar-me de tais obstáculos reflectindo sobre aquilo que escrevi como quem se debruça sobre as águas do que passou procurando ver nelas a própria imagem renovada.
Começarei por Tomé Natanael. Muita gente me procurou em Estremoz no intuito de conhecer o antiquário de Estremoz que dei por meu Mestre de sabedoria em dois contos, - No Hades e O Bateleur. Tive de dizer amavelmente a essa gente que Tomé Natanael era uma invenção minha, que eu compus como uma personagem a partir de ter visto nesse nome um anagrama do meu. O que é intrigante é que, depois disso, eu mesmo pus-me a duvidar se Tomé Natanael não existiria, algures nas zonas luminosas do meu ser, como o meu próprio intelecto. É como se houvessem duas pessoas em mim, uma muito inteligente que é ele e outra mais ou menos estúpida que sou eu. É a escrever que uma se envolve com a outra e, então, tudo se segue de palavra em palavra como num sonho lúcido. Assim foi. Compus um e outro conto, combinando coisas antigas com coisas novas que se me foram mostrando à medida que ia escrevendo.
Mas, relendo agora o que designei mais tarde por O Antiquário de Estremoz, descubro no conto harmonias e sequências significativas de que não fui, durante a sua elaboração, minimamente consciente. Tudo ali bate certo. A Árvore das Sephiras está presente no quadro de Rafael e nos dois castiçais que eu e o antiquário figurávamos enquanto fixávamos o fundo da Loja. O conto é um organismo espiritual, concebido da conjunção de quem não sabe nada com quem sabe alguma coisa.
____________
* NOTA DO EDITOR: Com pedido de publicação, enviou-nos António Telmo, no final da semana passada, o texto inédito, escrito aos 70 anos, que hoje, gostosamente, damos a lume. Pode ser visto como uma reacção salutar às palavras que Ângelo Monteiro escreveu sobre O Bateleur, e que os Cadernos de Filosofia Extravagante patentearam ao leitor português.

PASCOAES EVOCADO ONTEM EM SESIMBRA

Encontro. Com a vida e a obra do autor de Para a Luz e Verbo Escuro, ontem, em Sesimbra, na Biblioteca Municipal, numa sessão em que foi apresentado o quarto número da revista Nova Águia, quase inteiramente dedicado ao vate de Gatão. Renato Epifânio, que coordenou a sessão, conta-lhe aqui como foi.