(os textos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores)

Leia aqui a homenagem da Fundação António Quadros a António Telmo.



quinta-feira, 30 de abril de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 7

António Telmo: Filosofia plena e assumpção da História
Pedro Martins

1. António Telmo exorta-nos algures a que reunamos as numerosas tríades de conceitos com que o leitor atento de Álvaro Ribeiro se depara, sempre que percorre as laudas luminosas da sua obra. Fá-lo com o propósito evidente de nos levar a estudá-las. Tanto quanto me lembro, não revela António Telmo a razão profunda do alvitre, mas pressente-se que o filósofo entreveja nesse trabalho exaustivo a porta que nos aproxima do tesouro legado pelo seu mestre, senão a chave que a franqueia.
Bem se compreende que um pensador subtilmente tributário do movimento aristotélico como Álvaro Ribeiro conceba a tríade como a lei inexorável da manifestação. Essa tríade pode ser descritiva de uma sucessão de termos já consumada (diacronia), qual a do movimento da potência que, posta em acto, se cumpre na perfeição; ou, por acréscimo, indiciar a geração de novos movimentos, pela existência simultânea dos termos que a compõem (sincronia). Além dos movimentos específicos assim representados, a posição relativa dos termos enunciados na sequência triádica e a possibilidade efectiva de desenvolver a analogia entre tríades são factores que, por si ou conjugadamente, se oferecem à nossa ponderação.
Assim, o mesmo termo – “poeta” – não tem o mesmo sentido quando, nas Memórias de um Letrado, Álvaro Ribeiro o inclui na tríade poeta, dramaturgo e historiador, que refere a Jaime Cortesão; e quando, n’A Razão Animada, a propósito da leitura como processo de convívio mental com os espíritos de escol, declara dar preferência “aos historiadores que nos façam imaginariamente reviver a acção, aos poetas que nos ensinem a poetar, aos pensadores que nos façam pensar”. Ali, poeta está por poeta lírico, sendo que o historiador, dada a implícita permutação com o romancista, se há-de reportar à epopeia (em Cortesão, será a história, e não o romance, a dar a final o épico, género já entrevisto no poema inaugural A Morte da Águia e nos sequentes dramas O Infante de Sagres e Egas Moniz). Aqui, a analogia com essoutra tríade, definidora do composto humano, que se analisa em corpo, alma e espírito – analogia que Rui Lopo, em lúcido ensaio sobre Tempo e Liberdade no Pensamento de Álvaro Ribeiro, pôde licitamente estabelecer – mostra como poeta é o termo médio de uma simultaneidade hierarquizada, e não já a potência de uma manifestação sucessiva. (...) ler mais

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 6

Testemunho…
João Tavares

Pede-me o amigo Pedro Martins que escreva um apontamento ou um testemunho que possa juntar-se a outros em singela homenagem ao nosso comum amigo, o filósofo António Telmo.
Não nos é fácil eleger aquele acontecimento que mais signifique o convívio de quase uma vida.
Parou-nos a mão no quase, presa que ficou pela justeza do termo empregue, logo se dando conta que se fixara na contagem dos anos, um alçapão que esconde, não poucas vezes, a soberba, como se, alguma vez, a contagem do tempo se pudesse constituir como válida razão e bastante…

O horóscopo ou a fortuna, ou lá seja o que for, que só Deus o saberá certamente, levaram um moço, que mal completara o seu primeiro «quartel de vida», açodado pelas revoadas abrilinas que lhe enchiam o peito, rumo ao filósofo. Aconteceu em Borba, localidade do Alentejo, onde, por então, eu leccionava numa sua escola e o pensador vivia com a sua família.
Do que se falou, resta-nos uma confusa impressão, mas lembramos bem a sua placidez quando, à despedida, lhe soltámos:
- Desculpe, ficará para a próxima uma melhor explicação! (faláramos de política, já se vê!...).
Não permitiram os fados, pois haviam disposto, por outra forma, que próxima não houvesse mais, mas respeitosa aproximação, coroada por amável dedicatória, tesoiro que guardo e memoro, que o autor de Arte Poética, generosamente, apôs neste livro que me ofereceu.
O que mais importará, será partilhar com quem possa vir a ler estas linhas, uma interrogação: jamais, em vez alguma, o ínclito filósofo haver dado aos problemas, mistérios, ou segredos, conversados, o mesmo encaminhamento, porém sempre versando e elevando o mesmo Ideal. Ousaríamos dizer que ao seu Convívio ocorre o que a uma fonte não pode deixar de ocorrer: sempre a mesma água nascente, porém sempre água nova!
Em mais de três décadas, nem por uma vez ouvimos de nenhum conviva, e tantos eles se já contam, que as conversas havidas (que nunca diversas são!), em algum momento ou em alguma circunstância, pudessem ser adivinhadas, tal a vida nova que por elas perpassa.
Do que se tratou, foi de ter sido oferecida a esse jovem a possibilidade de ouvir a sua fonte.
Bem-haja, António Telmo!

quarta-feira, 29 de abril de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 5



Um Homem
António Carlos Carvalho

Se a memória não me falha, conhecemo-nos em 1976. O António Telmo foi ter comigo às instalações de «A Capital», onde então eu trabalhava, para me entregar o manuscrito de «História Secreta de Portugal». Trocámos algumas palavras, ali mesmo, no átrio de entrada da sede do jornal e eu recebi das suas mãos o manuscrito de um livro que logo devorei, entusiasmado com a descoberta.

Nessa altura, eu dirigia a colecção Janus da editora Vega, em que desejava publicar obras diferentes sobre temas fora do comum. «História Secreta de Portugal» era exactamente o tipo de obra pretendida. Mas era muito mais do que isso: uma obra pioneira, um rumo novo que se abria entre nós.

Para mim, que alguns anos antes, noutra editora, tinha traduzido «O Mistério das Catedrais», de Fulcanelli, aquele manuscrito de António Telmo era a resposta perfeita à minha interrogação: porque é que não se fazem «leituras» destas a partir dos nossos próprios monumentos, decifrando-os? Pois bem, ali estava então o que eu desejava. Um livro luminoso, que nos abria os olhos para a mensagem do Mosteiro dos Jerónimos.

E assim se publicou «História Secreta de Portugal» na Vega. É verdade que essa edição não nos correu bem, a mim e a António Telmo. Doeu-me e indignou-me a maneira como ele foi maltratado pelo editor – há editores que são verdadeiros predadores, mas só então demos por isso... Passado um ano e tal, o mesmo editor anunciou-me que a colecção Janus ía acabar «porque não se vendia». Afastei-me da Vega em 1978 mas claro que a colecção existe até hoje e continua a reeditar essas obras sem pagar direitos aos autores...

Adiante.

O António Telmo e eu continuámos a cruzar os nossos caminhos por aí, já sem nenhum vínculo de carácter editorial a ligar-nos, mas com interesses comuns que nos aproximavam. Encontrámo-nos várias vezes em Sesimbra, na casa do Rafael Monteiro, discutindo as excelências da Filosofia e da Religião, cada um de nós batendo-se pela sua dama com a energia que se impunha.

Em 1980, assisti, deliciado, no Palácio Foz, à magistral conferência de António Telmo sobre «O Segredo d’ Os Lusíadas». E fui lendo as outras obras que ele ía publicando. Para mim, que nunca fiz parte do grupo da Filosofia Portuguesa mas conheci alguns membros desse grupo, António Telmo era, e continua a ser, o elo da cadeia de transmissão de uma certa forma de pensamento português, neste país cada vez mais à deriva.

Lendo o que ele escreve (e relendo, porque somos sempre obrigados a relê-lo) ou ouvindo as suas palavras, aprendo sempre alguma coisa mais. Nele há sempre inovação, o que significa que António Telmo rejuvenesce por dentro. Contador de histórias, os seus contos filosóficos fazem-nos pensar – e acordar. Sem esquecer o seu humor, que nos desarma, a nós que fazemos questão de parecer gente séria e grave.

Vejo em António Telmo a figura exemplar do que a terminologia bíblica designa por Zaken, e que é muito mais do que simplesmente o ancião: é o homem que, através da sua experiência, adquriu a sabedoria. De facto, há nele algo do sábio talmudista, aquele que, dialogando consigo e com os outros, encontra sempre algo de novo no que foi dito e repetido até à aparente exaustão.
Há dias, em troca de mensagens com o Pedro Martins, dizia-lhe eu que sou apenas um farejador, como aqueles cães que buscam seres humanos no meio das ruínas dos sismos. Também eu farejo o Homem no meio das ruínas do nosso tempo. O que não tem nada de novo, de original. A desertificação da humanidade é muito antiga: Moisés «virou-se para um lado e para outro e viu que não havia homem»; David aconselhou ao filho Salomão: «Coragem pois e sê homem»; séculos mais tarde, Diógenes andava com uma lanterna à procura de homens verdadeiros.
Essa busca de Moisés, de David e de Diógenes é ainda a nossa, hoje, aliás cada vez mais premente.

António Telmo é um desses poucos Homens verdadeiros que me foi dado conhecer.

Por isso agradeço a Deus a dádiva e peço-lhe que o guarde por muitos anos, para nos mostrar o Oriente e entender essa luz.

RAZÃO POÉTICA, 2

O Génio da Língua Portuguesa
excerto de um texto originalmente publicado em 1991

“Quando só houver Europa, depois de abolidas as fronteiras e, sobretudo, depois da unificação da moeda, terá de pôr-se o problema da homogeneização das línguas, porque, dada a prometida livre circulação das pessoas e do trabalho, se todas mantiverem os mesmos hábitos linguísticos, será o caos da comunicação social. Não chegará a escolha do inglês, do francês ou do alemão para os actos oficiais. Será necessário que todos, desde a Rússia até Portugal, falem a mesma língua. O espírito que congrega os homens serve-se de dois agentes: o dinheiro e a palavra, que formam o seu duplo aspecto tenebroso e luminoso.

No século passado, a babilónica inteligência secreta, que trabalha para a homogeneização da Humanidade, não teve, então, a astúcia de principiar pelo económico ou, se teve, guardou-a para melhor oportunidade. Começou logo pelo fim, pela unificação linguística. Mas o esperanto foi um fracasso. Se os dois extremos da cadeia são o dinheiro e a palavra, antes de tentar pôr os povos a falar uma única língua será necessário dissolvê-los, desligando as pessoas da consciência singular de pertencerem a uma Pátria. Tem-se hoje a certeza de que a solução pelo esperanto não voltará a ser proposta. Foi recentemente declarado pelo Ministro da Educação que o francês e o inglês vão passar a ser dados nos primeiros anos do ensino público, o mais perto possível do início da vida. Como é fácil prever, uma ou outra destas duas línguas será a escolhida para funcionar como o «écu» e com o sistema binário dos computadores na progressiva desintegração dos povos.
Qual será o destino do português? Dele ficarão apenas documentos escritos, a literatura, que será recordada por essa máquina de fazer passar o vivo à história a que se dá o nome de Universidade. Há quem sonhe com a propagação imperial da língua portuguesa. Mas tal é impossível pela razão simples de os estrangeiros não serem capazes de assimilar a sua fonética. Teria de ser reduzida, degradando-se naturalmente numa nova espécie de esperanto. De resto, os ensaios de reforma ortográfica que procuram unificar o português do Brasil, do mundo africano e o de Portugal já tendem para a esperantização, limando as diferenças naturalmente invencíveis. Cada língua é a criação artística ou espiritual de um génio fonético, isto é, daquele génio ou daquela inteligência sobrenatural que elabora um sistema harmónico de sons significativos tendo por base elementar o sistema transcendente das sephiras (Ver minha Gramática Secreta da Língua Portuguesa).
A Linguística, fundada como ciência exacta em 1816, data da publicação por Franz Bopp da Gramática Comparada das Línguas Indo-Germânicas, foi progressivamente elevando os andares de um edifício cónico, poderosa, subtilmente poderosa, aparentemente inofensiva maquinação para destruição das línguas. É o movimento inverso do mito da Torre de Babel. A prática dissolvente terá sempre de ser precedida pela teoria que a prepara. Pessimistas perante o destino social europeu da língua portuguesa que, dentro de alguns anos teremos de considerar uma língua morta para nós, como o Brasil e a África ainda resistirão durante algum tempo mais à destruição das Pátrias, cabe-nos descobrir uma gramática que sirva, ao que de nós continua a sobreviver noutros continentes, de escudo e de lança contra a subversão geral das línguas. Tal gramática será a que determine os princípios activos pelos quais o nosso génio fonético formou do latim o português. É, de facto, no momento em que o latim se transforma em português que podemos surpreender a «forma» de onde ele nasce e progressivamente emerge como uma admirável criação espiritual. O leitor já se apercebeu de que, para nós, o que caracteriza e distingue uma língua é a sua fonética. Tudo o mais deriva daí.”

António Telmo

(retirado de Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005)

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 4

O peso da palavra
António Cagica Rapaz

Se vos disser que aos doze anos beneficiei de aulas particulares ministradas por António Telmo, ninguém se admirará se, a seguir, revelar que tive a nota mais alta do país no exame escrito de Filosofia do antigo 7º ano, em 1962.
Obtive exactamente 18,5 valores, o mesmo tendo conseguido uma outra aluna com quem dividi o prémio de quinhentos escudos.
Importa, porém, acrescentar que os ensinamentos que recebi diziam respeito à forma mais expedita de bem aplicar os cirúrgicos efeitos, puxar com precisão ou juntar num canto as três bolas do bilhar, arte em que António Telmo era já um executante primoroso, aliando uma técnica apurada a uma imaginação exuberante e a um total desprezo pela comezinha avidez da vitória nas provincianas competições.
Estávamos na segunda metade da década de 50, em Sesimbra, e eu revelava algum tímido jeito para a coisa quando o futuro grande filósofo teve a bondade de me dar umas lições cuja particularidade maior era ser o mestre a pagar a hora do seu bolso.
A instrução teve o seu início no café Ribamar onde a tertúlia intelectual tinha lugar, e prosseguiu no café Central, teatro das grandes representações às três tabelas.
Mais tarde, troquei as bolas do bilhar por outras maiores, de coiro, e o taco por botas de futebol a que hoje gente evoluída chama chuteiras.
O ainda jovem Telmo seguiu o seu caminho até atingir a projecção que sabemos e de que os seus amigos tanto se orgulham, por tudo e porque ele continua a espalhar a palavra do conhecimento e a iluminar as mentes de quantos o lêem, é certo, mas particularmente dos bem-aventurados que têm o privilégio de o escutar.
Contrariamente ao que se poderia esperar, não segui Filosofia.
Na altura, o 7º ano era o fim do meu percurso escolar, o limite da bolsa dos meus pais, e o acesso à Faculdade só aconteceu graças às tais bolas de coiro que me roubavam o tempo e pouco espaço deixavam para leituras e reflexão.
E foi assim, ao pontapé, que acabei por alcançar um canudo de Filologia Românica, bagagem modesta que acabei por nunca levar para qualquer sala de aula já que a minha vida profissional foi feita na aviação comercial, carreira que nem o astrólogo Horus (que o António Telmo tão bem e também conheceu) foi capaz de prever.
As voltas da vida nunca me afastaram muito de Sesimbra, apesar de ter vivido 19 anos em França, e fui mantendo contactos com alguns amigos comuns, como os irmãos Reis Marques e, mais recentemente, o Pedro Martins.
Não estou aqui para debater nem suscitar reflexões, a tanto não me atrevo. Sou um espectador ocasional das extravagâncias da vossa Filosofia e já me sinto honrado por poder assistir e fingir que percebo.
Não me choca a ideia de que o pensamento português tenha a sua origem nas tradições judaica, cristã e islâmica, admito de bom grado que sim.
Nem arrasto por aí as correntes joaquimitas, embora me impressione a exegese xiita, quase tanto como a tradição cabalista.
Já me sinto perplexo perante a dúvida que paira sobre a eventualidade de Jesus ter ou não sido assistido pelos anjos.
E parece-me perfeitamente legítimo que alguém possa interrogar-se sobre a existência de uma Filosofia intrinsecamente portuguesa.
Na minha condição de profano, ao assistir a alguns colóquios, fica-me a impressão de haver ali uma espécie de jogo, um pouco à imagem do que Sant’Anna Dionísio diz de Pascoaes ao classificá-lo como um espírito dialéctico que afirma e nega na mesma frase e até na mesma palavra, saltando de heresia em heresia.
E acho estranho que, apesar de tanta sapiência, os filósofos dêem mostras de tanta inquietação, não parecendo que tenham conseguido alcançar a serenidade e a paz própria de quem deveria saber de onde viemos e, sobretudo, para onde vamos. Porque, afinal, o que se passa entretanto, esta passagem efémera, pouca importância tem.
Confesso que o que mais me agrada é aquele momento delicado, no final, quando da sala não parece surgir qualquer intervenção, a menor pergunta, e nos fica a sensação de que os diversos oradores estiveram ali a perder o seu tempo.
Felizmente, para todos nós, levanta-se o António Telmo e faz duas ou três observações, com ar de quem pede desculpa por se intrometer, e lança uma luz nova sobre o tema.
Todos nós podemos fazer leituras, coligir informação, preparar textos de apoio, mas o grande talento, o que define e caracteriza os maiores é a capacidade de pensar com profundidade e com originalidade, de arrancar sabe-se lá de onde um ângulo original, um raio luminoso, uma centelha de excelência.
Há pessoas assim, que nos transmitem a sensação de tudo saberem, de nos surpreenderem com uma palavra, uma frase que, depois de solta, nos parece evidente, mas que nunca cruzara o nosso pobre espírito.
Depois há o timbre da voz, denso e seguro, e o tom, arrastado, tranquilo, desprendido, próprio de quem não precisa de mais evidência.
É o vagaroso pôr-do-sol alentejano, o peso da sabedoria, o calor da partilha simples e suave do conhecimento, tomai e ouvi, estas são as palavras do Mestre…

terça-feira, 28 de abril de 2009

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 3

O caçador
Cynthia Guimarães Taveira

“Formosas são algumas e outras feias,
Segundo a qualidade for das chagas,
Que o veneno espalhado pelas veias
Curam-nos às vezes ásperas triagas.
Alguns ficam ligados em cadeias
Por palavras subtis de sábios magos.
Isto acontece às vezes quando as setas
Acertam de levar ervas secretas”

(Canto IX, 32 e 33)
Camões


Parecia ter desaparecido nas brumas da modernidade e ei-lo o Homem Novo, primitivo, perto da origem, pronto e pleno.

“Não há aqui qualquer pretensão de originalidade, a não ser que por origem se entenda aquela fonte onde todos bebemos, aquela ideia sem a qual nem sequer podíamos saber que há pensamento.”[i]

Imaginemos o cenário em que o encontramos. O cenário, não é cenário, mas todo o real.

“Mas o que é o desconhecido?
É logo de início o próprio mundo sensível e daí o enigma primogénio da sensação. Eis o que habita em nós. Não há pontos firmes e toda a dificuldade está em movermo-nos onde não há lugar.”
[ii]

E esse real é uma floresta. Uma floresta misteriosa.

Só há mistério enquanto se vê.”[iii]

Esse homem primitivo caça.

“Aristóteles comparou a filosofia à caça e, com efeito, a ave que se solta livre no espaço está para os olhos do atirador como a ideia está para o pensamento do filósofo que a transmutará em conceito.”[iv]

Podemos ouvir as folhas a serem pisadas enquanto passa e a fortaleza dos seus músculos batendo na terra em resposta ao seu pulsar.

“As touradas, meu caro amigo, foram feitas não para dominar os touros, porque então seria melhor e mais fácil matá-los a tiro, mas calcule você!, para dominar os tremores de terra.”[v] (...)

DEPOIS DE AMANHÃ: MATEUS SOARES DE AZEVEDO NA ASSOCIAÇÃO AGOSTINHO DA SILVA

Quinta-feira. É já depois de amanhã, dia 30 de Abril, pelas 19:00, na Associação Agostinho da Silva, em Lisboa, que o escritor Mateus Soares de Azevedo vai apresentar o seu mais recente livro, Homens de um livro só, bem como a recente tradução para a língua portuguesa do livro de Frithjof Schuon, A Transfiguração do Homem. A organização é do blogue Sabedoria Perene, da autoria de Miguel Conceição e Nuno Almeida, e tem o apoio da AAS, que gentilmente cede o espaço.

O pensador brasileiro irá ainda proferir duas breves palestras. Na primeira, intitulada “Esoterismo e Exoterismo no Sermão da Montanha”, apresentará uma interpretação “perenialista” de um dos textos mais importantes da tradição cristã. A segunda prelecção tem, de alguma forma, um carácter mais político-religioso e centra-se na tentativa de resposta à questão "Estará esgotado o papel histórico dos Estados Unidos da América?”. Mateus Soares de Azevedo enquadra a resposta no cenário internacional actual e com a função do fundamentalismo islâmico e do sionismo.
Mais informação e mapa...

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 2



Testemunho a/de António Telmo
José Albuquerque

Dar depoimento é fazer prova e fazer prova é demonstrar. É assim que o testemunho é encarado como prova judiciária.
Enquanto prova, o testemunho tem por objecto algo que é duvidoso, incerto ou controverso e é o julgamento que reconhece, por via dessa prova, um facto ou um direito com valor de verdade, que depois a sentença apenas ratifica.

Há aspectos do testemunho, enquanto prova, que não se podem transpor, como critérios, quando quem queremos homenagear é o Dr. António Telmo.

Desde logo, não está em causa, nem é necessário demonstrar ou fazer prova do seu encanto.
Depois, a sabedoria que se lhe reconhece não é nem controversa, nem incerta, nem duvidosa.
E sobretudo a verdade das suas palavras não requer qualquer julgamento nem sentença que a ratifique.

Não posso assim dar testemunho do Dr. António Telmo, porque esse testemunho, enquanto prova ou demonstração, é em si mesmo impossível.

Aliviado desse encargo, é de outro testemunho que gostava de dar fé: do seu próprio «testemunho», daquele que ele transporta e que tem passado àqueles que, com privilégio, lhe querem bem e o procuram honrar e merecer.

Mas como posso dele dar fé se pouco e mal conheço a sua obra?

Sendo fraca testemunha da obra, sou-o porém do que vi e conheci e do que se produziu na minha presença quando o ouvi filosofar nas várias ocasiões em que esteve em Sesimbra.
Afinal, não é a presencialidade ao acontecimento que dá credibilidade intrínseca à testemunha?

Se alguma credibilidade me for então reconhecida, dou fé em primeiro lugar do desejo de melhor conhecer e, quem sabe, também merecer, o «testemunho» do Dr. António Telmo. Imagino-o muitas vezes como o sábio que, no texto de Agostinho da Silva, escreve as «sete cartas a um jovem filósofo». Quanto gostava de receber uma e de através dela me sentir livre do peso do fato que os homens me fizeram vestir, como diria Fernando Pessoa!

Dou depois fé da capacidade de fazer espantar quem o ouve. Num tempo em que a vida manipula os homens, faz deles gente do erro e do medo e lhes quer sugar a alma, em que gostaríamos de nos sentir livres de tanta coisa que carregamos às costas, mesmo sem sabermos, em que a ganância e a vileza esburacou e depois encheu a alma dos homens com excrementos, esse é o privilégio maior, tão poucas são as sãs oportunidades de espanto pela palavra.

Dou fé ainda da luz que as suas palavras e raciocínio irradiam, da atracção que essa luz causa e da elevação espiritual que a todos os que o ouvem congrega.

Admirado pelo testemunho a/de António Telmo, corro o risco de, quando morrer, ao ir à presença de Deus para prestar contas, ele me perguntar porque é que, tendo-me sido dada vida e nome próprios, quis ser como António Telmo.

Certamente, António Telmo, espiritual e luminoso, total e intensamente António Telmo, nunca será sujeito a esse juízo de Deus, mas apenas ao seu testemunho.

Com admiração,

J. Albuquerque.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

RAZÃO POÉTICA, 1

[Poesia e Filosofia: Poesia Filosófica e Filosofia Poética]

“(…) Portugal, no tempo de Camões, vinha de iniciar um longo ciclo tenebroso de quatrocentos anos, de quarenta decénios ou de quatro séculos. Dir-se-á (…) que as legiões de Ahriman passaram a reger definitivamente os nossos destinos. «Uma austera, apagada e vil tristeza» enublou a alegria auroral da Ilha e quando, passados esses quatrocentos anos de deserto da alma, se começou de novo a ouvir a «angélica soada» dos poetas ou o severo dizer dos filósofos, quando vários «movimentos» espirituais de inequívoco sinal disseram ter chegado a hora da transfiguração logo movimentos contrários se formaram, aos quais uma longa, astuciosa e ardilosa campanha tinha dado todos os recursos e todas as armas para se imporem na opinião pública e deixarem na sombra a misteriosa jasminácea do pensamento português.

Duas figuras dominaram, durante meio século, o círculo das acções e reacções mentais dos portugueses: António Salazar e António Sérgio. Ambos têm de comum um critério cheio de severidade para com todas as formas de imaginação que se apresentam, nos poetas e nos prosadores, com a finalidade secreta ou patente de dizerem o mistério. A imaginação é, no pensamento de um e de outro, uma diversão da mente humana, que deve ser contida nos seus limites, onde deverá manter-se sem qualquer pretensão gnósica. É à própria imaginação, dada como a forma do irracional, que é atribuída, num a desordem política, no outro a desordem mental que caracterizam a vida portuguesa. Ordem e progresso ou ordem e clareza eis o ideal proposto por estes dois mestres das gerações actuais. António Salazar, numa entrevista, mandou Leonardo Coimbra deixar-se de filosofias e dedicar-se a escrever versos; António Sérgio, disse a Teixeira de Pascoaes que continuasse a escrever versos, mas não se metesse com a filosofia. Para que ficasse tudo na mesma, foi sob a égide de António Sérgio que se fez a revolução contra Salazar.

(…)

A esta separação ou cisão da poesia e da filosofia há que chamar aqui (…) o fender-se da Ilha ou o quebrar da ponte Chinvat. Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética. Um dos poucos exemplos de poesia filosófica é a de Antero de Quental, aliás o poeta mais caro a António Sérgio. Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto da filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser alegoria.

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objectividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esse mundo, porém, causa pavor e alguns se negam, por fé débil, a tomá-lo a sério.

Confundida a imaginação activa com a dispersiva fantasia, contra a poesia e a filosofia dos «imaginativos» levantam os adversários da gnose a exigência de um pensamento prático, «de pés fincados na terra». A teorização desta exigência atrai e solicita os estratos profundos deste povo da experiência, que atravessou os mares, edificou cidades e civilizações e «compassou» o universo. Há, porém, que não confundir a experiência, forma de conhecimento no perigo, com a preocupação de governar bem a casa, de fincar os pés na terra para nela ficar preso. A experiência do nómada do espírito não é a experiência do sendentário.”

António Telmo

(excertos retirados de Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Guimarães, 1982)

SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO, 1

Ao António Telmo
Isabel Xavier

Quando alguém nos é como o lugar
Que desenha Terra e Céu no horizonte
Ponto onde o sol vai mergulhar no mar
Ou o luar incide sobre o monte

Quando alguém é para nós o mastro
O vento que enche as velas, branca escuna
Sulcando o azul do mar, em sobressalto
O grito da gaivota sobre a espuma

Quando alguém é para nós o cais
Onde aportamos após a travessia
O ouro puro, puros os cristais
Rosa-dos-ventos além da maresia

É que se dá o anúncio da passagem
Milhares de asas de pássaros batendo
E a luz intensa desfere na paisagem
Golpes mortais dos quais vamos nascendo.

domingo, 26 de abril de 2009

A PARTIR DE AMANHÃ E ATÉ SÁBADO: SAUDAÇÃO A ANTÓNIO TELMO

Aniversário. António Telmo, mentor dos Cadernos de Filosofia Extravagante, festeja no próximo sábado, 2 de Maio, 82 anos de vida, efeméride que, a partir de amanhã e até ao dia do aniversário, aqui iremos celebrar, com a publicação de uma série de depoimentos, testemunhos e breves ensaios assinados pelos seus amigos. Paralelamente, será lançada uma nova rubrica, Razão Poética, na qual se darão a conhecer excertos fundamentais das suas obras. No dia 2, será também publicado um notável escrito autobiográfico da sua autoria, ainda inédito, e que, durante a próxima semana, virá a lume no jornal O Sesimbrense.

EXTRAVAGÂNCIAS, 16

Carta de Abel de Lacerda Botelho a João Tavares, sobre os Cadernos de Filosofia Extravagante

Lisboa, 13 de Abril de 2009

Exmº. Senhor
Dr. João Tavares
Serra d’Ossa Edições
Rua 5 de Junho, Lote 160
7160-216 VILA VIÇOSA
Exmº Senhor
E Meu Caro Amigo

Recebi hoje, a oferta dos dois exemplares dos “Cadernos de Filosofia Extravagante” que mui amavelmente me enviou, e que penhoradamente lhe venho agradecer.
E ao mesmo tempo, venho felicitá-lo como Editor, e ao Grupo de Autores por mais esta iniciativa cultural – tão necessária nos tempos que correm – e que é demonstrativa de que a Filosofia Portuguesa vive, está de boa saúde, e até se recomenda que seja tida em atenção pelos “débeis de espírito” que infelizmente nos desgovernam a educação e a cultura lusa.

Faço sinceros votos de que esta “semente” lançada em terra de Além do Tejo frutifique e dê 100 por um, pois a “terra é boa” e os “agro-cultores” que dela tratam são genuínos e autênticos o que, e por isso mesmo, avalizam e são garantia de “bons frutos” – e mesmo que “frutos extravagantes”, sejam eles.
Bem hajam. Continuem, e sinceros votos e profícuo labor.

Mesmo quanto ao título encontrado para título da Revista: “Cadernos de Filosofia Extravagante” eu vos felicito também, não só por se adivinhar que o possível “padrinho” tenha sido o António Telmo, na esteira do Agostinho da Silva, como na verdade a “nossa filosofia Portuguesa” se enquadra perfeitamente no epíteto de “extravagante”.
Pois a palavra “extravagante”, para além de poder ser sinónimo de “estroina” ou de “perdulário” como é focado e bem na vossa “Apresentação”, ela é também sinónimo de “Extra-vagante” isto é: “algo que vai além de, que ultrapassa, que supera, que é mais que somente “vagante”. Vagante, neste sentido, é o viajante “sem caminho”, aquele que “anda” no “vago”, aquele que viaja vagando, ou que “vagando” caminha, e viaja ao sabor da vaga.
O que viaja, ao sabor e à ordem da vaga, o vagante, é por si mesmo, o eterno conformista, que néscio ou conscientemente se deixa arrastar pelo Destino, pelo Fado (Fatum-i), num total determinismo apático, inodoro e insalubre.
Ora o Extra-vagante, é o vagante que usando a sua vontade, e mais a sua força ou energia intelectiva, enfim: usando o seu livre-arbítrio consegue fazer face, opor-se, contradizer o “vaguear”. E mesmo que “afinal” venha aceitar o jugo determinista, o faz com pleno desejo sofredor.

Há mais de 4 (quatro) décadas até hoje, venho insistindo privada e publicamente, e a nível nacional e internacionalmente, em alguns areópagos culturantes, que a cultura e a Filosofia Portuguesa, não é melhor, nem pior, do que a de qualquer outro Povo, ou civilização. O que ela é – é verdadeiramente diferente da dos outros Povos!
E por que é que ela é diferente?
Porque aqueles que a “pensam”, que “a cultivam” sendo uma síntese da Paideia do Povo que a cria, a pratica, que a vive, estão no mundo, não como “vagantes” mas sim como “extra-vagantes”.

Comungo pois inteira e completamente, com o título que encontrastes para nome da Vossa Revista, a que uma vez mais auguro os melhores êxitos.

Vosso Irmão na Defesa e Divulgação
Do Pensamento Português

Abel de Lacerda Botelho

sábado, 25 de abril de 2009

EM LISBOA, A 30 DE ABRIL: MATEUS SOARES DE AZEVEDO NA ASSOCIAÇÃO AGOSTINHO DA SILVA

Brasil. Está assente. Na próxima quinta-feira, 30 de Abril, pelas 19:00, na Associação Agostinho da Silva, em Lisboa, o escritor Mateus Soares de Azevedo apresenta o seu mais recente livro, Homens de um livro só, bem como a recente tradução para a língua portuguesa do livro de Frithjof Schuon, A Transfiguração do Homem. A organização é do blogue Sabedoria Perene, da autoria de Miguel Conceição e Nuno Almeida, e tem o apoio da AAS, que gentilmente cede o espaço.
O pensador brasileiro irá ainda proferir duas breves palestras. Na primeira, intitulada “Esoterismo e Exoterismo no Sermão da Montanha”, apresentará uma interpretação “perenialista” de um dos textos mais importantes da tradição cristã. A segunda prelecção tem, de alguma forma, um carácter mais político-religioso e centra-se na tentativa de resposta à questão "Estará esgotado o papel histórico dos Estados Unidos da América?”. Mateus Soares de Azevedo enquadra a resposta no cenário internacional actual e com a função do fundamentalismo islâmico e do sionismo.
Mais informação e mapa...

OS POETAS LUSÍADAS, 10











NEVOEIRO

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço de terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fatuo encerra.

Ninguem sabe que coisa quer.
Ninguem conhece que alma tem.
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ancia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a Hora!
Valete Fratres.
[10-12-1928]
Fernando Pessoa

NO PORTO, A 30 DE MAIO



Nomes. Os de António Telmo, Pedro Sinde e Alexandre Teixeira Mendes, que irão participar na sessão de apresentação de Universalidades, primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, no Clube Literário do Porto. Será no dia 30 de Maio, sábado, pelas 21:30.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 9


AO TRISTE ESTADO

Passa por este vale a primavera,
As aves cantam, plantas enverdecem,
As flores pelo campo aparecem,
O mais alto do louro abraça a hera.

Abranda o mar, menor tributo espera
Dos rios, que mais brandamente decem,
Os dias mais fermosos amanhecem,
Não para mim, que sou quem dantes era.

Espanta-me o porvir, temo o passado,
A mágoa choro dum, doutro a lembrança,
Sem ter já que esperar nem perder.

Mal se pode mudar tão triste estado,
Pois para bem não pode haver mudança,
E para maior mal não pode ser.

Frei Agostinho da Cruz

quinta-feira, 23 de abril de 2009

EM SETÚBAL, A 14 DE MAIO

Apresentação. Mais uma, a sexta, de Universalidades, o primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, desta feita na Academia Problemática e Obscura, em Setúbal, na noite de 14 de Maio, com início às 21:30. Depois de Rodrigo Sobral Cunha e Renato Epifânio terem dado a conhecer o projecto, logo no dia 21 de Março, na Casa de Bocage, Luis Paixão e Pedro Martins irão marcar presença nesta nova escala da inquietude por terras à beira-Sado.

EM MONTEMOR, A 16 DE MAIO

Simpósio. O segundo de uma série de quatro, num ciclo subordinado ao tema 12 Teoremas do 57 – Actualidade dos teoremas do Movimento de Cultura Portuguesa. Na Livraria Fonte de Letras, junto à Câmara Municipal de Montemor-O-Novo, com início às 16:30, e em conjunto com a apresentação de Universalidades, primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante.
Desta vez, os apresentadores e os teoremas em foco serão os seguintes:
Rodrigo Sobral Cunha e a Filosofia da História
Helder Cortes e a Universidade
Pedro Martins e a Pátria
Cada interlocutor convidado apresentará durante dez minutos um teorema.
Finda a apresentação iniciar-se-á o debate alargado a todos os convivas do simpósio.
Na semana que antecede a realização deste simpósio, os teoremas respectivos serão publicados no blogue dos Cadernos.

EM SESIMBRA, A 9 DE MAIO

Lançamentos. O do livro Congeminações de um Neopitagórico, de António Telmo, agora com a chancela da Zéfiro, e o do terceiro número da revista Nova Águia, que tem como tema O Legado de Agostinho da Silva, 15 anos após a sua morte. A sessão, com início marcado para as 15 horas, tem lugar na Biblioteca Municipal de Sesimbra e conta com a presença do autor de História Secreta de Portugal, do editor Alexandre Gabriel, de Pedro Sinde, que fará a apresentação das Congeminações, de Renato Epifânio, um dos directores da Nova Águia, e de Pedro Martins.
Tal como Brasília, foi Sesimbra um dos traços de união no mapa da convivência espiritual que Agostinho da Silva e António Telmo mantiveram durante décadas. Por isso, nos dias que antecedem o evento, este blogue irá dar especial atenção à presença e à acção dos dois grandes vultos por terras e mar de Sesimbra.

EXTRAVAGÂNCIAS, 15

Dom Carlos
por Pedro Martins

Tive há pouco notícia, pelo Pedro Sinde, de que o Dom Carlos, drama em verso da autoria de Teixeira de Pascoaes, já está em cartaz (e assim irá permanecer até 17 de Maio), representado pelo Teatro Experimental de Cascais. Soubera do respectivo desígnio, há cerca de um ano, pelo António Cagica Rapaz, que então o escutara ao grande actor João Vasco, como ele sesimbrense, e, com Carlos Avillez, um dos esteios da companhia cascalense. Vejo agora, com renovado júbilo, que o propósito de animar o drama se concretizou afinal.
A peça, publicada em 1925, não fora nunca levada à cena. Só agora o foi. Teve, para isso, de esperar pouco menos de um século! (Por aqui se vê como este é um país perdido…) A fortuna editorial da obra também não é famosa. É certo que conheceu várias edições – a que possuo é a 3.ª – no ano em que saiu a lume; mas, depois disso, apenas foi reeditada pela Bertrand, no âmbito da publicação, inconclusa, das obras do poeta, que Jacinto do Prado Coelho ali promoveu. É hoje um livro raro, preciosidade de alfarrabista, que dificilmente se encontra à venda. Dado que o drama subiu, enfim, ao palco, poderá a sua próxima impressão ocupar as cogitações da Assírio & Alvim, casa editora que, há mais de duas décadas, nos vem devolvendo o legado de Pascoaes?
Posto isto, não há senão que ir ver a peça. Ou sobre ela discretear a voo de pássaro. A muitos, não deixará porventura de causar surpresa o jaez apologético por que, nela, o poeta, presumível republicano, reabilita e exalta a memória do rei assassinado. Fá-lo como quem desagrava o soberano, tomando as dores de um Junqueiro havia pouco desaparecido, e, em seus últimos dias, roído pelo remorso, por julgar haver contribuído, com a violência exortativa do seu verbo (pense-se n’O Caçador Simão, do famigerado Finis Patriae), para as trágicas mortes do monarca e de seu filho, D. Luís Filipe. A esta luz, e como já deixei escrito em ensaio que será publicado proximamente na revista portuense Cosmorama, o Dom Carlos pode ser visto como um acto de contrição junqueiriano, mas havido a título póstumo e por mercê alheia, graça devida a quem, desde 1898, tomara a amizade de Junqueiro por uma “dívida” que se tornaria uma “sagrada lembrança”.
Claro está que o desagravo, no seu fito justiceiro, não passa sem reparo. De um certo ponto de vista, firmado na objectividade histórica descritiva dos últimos anos do reinado de D. Carlos, o panegírico não resiste, por exemplo, ao cotejo com o relato demolidor que Sampaio Bruno pôde exarar nas páginas indignadas d’A Dictadura. Mas diversa se antolha a perspectiva em que Pascoaes se coloca, visto como, segundo creio, foi movido por um desencanto profundo ante o descalabro da Primeira República que o poeta compôs o drama em verso, e bem assim o Jesus Cristo em Lisboa, tragicomédia escrita em parceria com Raul Brandão. Eis o que, pelo prisma das coincidências estrutivas, pretendo mostrar em próximo livro.
Como quer que seja, o que do Dom Carlos sobretudo ressalta é o poder transfigurador da palavra demiúrgica e encantatória de Pascoaes, mormente na assunção, pelo autor, da via ascética e mística a que o alter ego do Alma empresta um trilho angelógico, mormente na recriação mítica de um messianismo de timbre brunino, a que a personagem do Príncipe Real, D. Luís Filipe, confere surpreendente modelo sebástico.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 6

António Carlos Carvalho

Vivemos hoje num tempo de confusões verbais – é vulgar lermos e ouvirmos que «a Torre de Belém é um ‘ex-libris’ de Lisboa» (claro que quem diz isso nunca viu um verdadeiro ‘ex-libris’ colado na página de um livro), que este ou aquela é um «ícone» (sem perceber que o verdadeiro ícone é uma imagem religiosa dos cristãos ortodoxos) ou que «a minha ideia vai de encontro à sua» (sem entender que isso significa «chocar» ...). E assim por diante. Às vezes parece que as palavras perderam o sentido que tinham e adquiriram um outro.

Mas há uma confusão de palavras que é muito mais antiga – dura há séculos. É a que diz respeito ao verdadeiro sentido de «profecia» e de «profeta». Confusão que está, aliás, consagrada nos próprios dicionários. Abrimos um deles e lemos:
«Profecia – predição do futuro, oráculo, vaticínio, prognóstico, presságio e conjectura.»
«Profeta – o que prediz o futuro, por inspiração divina; adivinho, vidente; título que os muçulmanos dão a Maomé» (repare-se na omissão: é como se não houvesse profetas na Bíblia, só no Alcorão. Curioso, no mínimo).
Mas quando lemos os textos bíblicos, a Profecia e o Profeta não «encaixam» nessas definições do dicionário:
-- a Profecia só acessoriamente é antecipadora dos acontecimentos;
-- o seu *dizer* não é um *predizer*, é uma categoria da Revelação divina;
-- a Profecia prossegue a espera, o tempo histórico em que o futuro é imprevisível.
O fim da Profecia, em termos bíblicos (nos séculos VI-V antes da era comum, com Hagai, Zacarias e Malaquias), não é o fim da História: a História prossegue, com a passagem do testemunho aos Sábios e, do outro lado do Mediterrâneo, o início da Filosofia (poucas vezes se repara nesta coincidência -- fim da Profecia, início da Filosofia...)
A leitura atenta da Bíblia mostra-nos que a Profecia é, sobretudo, o desvendamento do sentido da História segundo o ponto de vista do Criador; a Profecia anuncia a era messiânica; a Profecia é, primeiro que tudo, uma «informação» sobre a situação do indivíduo e do povo em relação à Aliança com Deus.
Por seu turno, na mesma Bíblia, o Profeta (que o texto hebraico chama Nabi) é aquele que é «chamado», o escolhido por Deus para ser o seu enviado, o seu porta-voz, o portador da Palavra Divina.
O Nabi recebe um apelo (chamamento) de Deus para ser o seu parceiro, para viver uma experiência a dois: o encontro entre o Homem e Deus na Aliança – isto acontece desde Abraham, o primeiro a ser chamado Nabi (Genesis, 20, 7). Abraham é chamado, é enviado, é o confidente de Deus, com quem dialoga e junto de quem intercede (como acontece no episódio de Sodoma). O Nabi é investido pelo Espírito, é escolhido «arbitrariamente», às vezes antes mesmo de nascer, como acontece, por exemplo, com Jeremias. Escolhido para quê? Para avisar, para lembrar as condições da Aliança ao povo de Israel mas também às nações (a Aliança noética ou noaquita, a que foi estabelecida entre Deus e Noé).
Para o Nabi, a Profecia (Nebuá) é um peso, um fardo – sozinho, mas com Deus, o Nabi apela ao arrependimento, ao retorno aos caminhos apontados por Deus. O Nabi surge nos períodos de maior crise, quando o Povo perde a sua natureza (de povo de reis, sacerdotes e profetas), quando o Rei não aplica a justiça, quando o Sacerdote abandona a noção de pureza – então surge o Nabi para restabelecer o diálogo entre o Povo e Deus. Por isso, muitas, vezes, ele é um contra-poder.
O Nabi não se reduz a proferir oráculos ou a predizer futuros falaciosos – não é senhor do tempo, não sabe o que será o futuro, deixa apenas avisos e uma palavra, Laken, «talvez», «todavia», porque sabe que Deus também se arrepende, é justo, e os homens também. O Nabi é um arauto da justiça, é um lutador, um combatente: bate-se pela ética, que tem prioridade sobre a religião, anuncia, denuncia, lembra, exorta, faz actos simbólicos. Ele é um mediador entre o Céu e a Terra. O Nabi é «o intérprete do grande diálogo entre o Divino e o Humano a que chamamos História» (Martin Buber).
Deus diz a Jeremias: «Tu serás como a minha boca» e a boca do profeta é aberta à força (15, 19). O Nabi fala para os homens do seu tempo e o seu «slogan» é «paz». Só fala depois de escutar a Palavra e de obedecer (porque está apto a escutar).
Como dizia Maimónides, a visão profética é uma audição, na Profecia é o ouvido que vê, é a escuta que é o sentido da visão.
Pode-lhe acontecer sonhar, ter um sonho profético ou visionário, mas o sonho é uma 60ª parte da Profecia ou o fruto não amadurecido da Profecia. A visão tem de ser traduzida em palavras, porque só a palavra cria, actua. A palavra do Nabi deixou de ser subjectiva – é comunicação, transmissão de uma mensagem divina; é a resposta a um apelo, não é mais palavra, é vocação. O Nabi assemelha-se a um cativo, não prediz futuros, não faz milagres. Quer provocar uma tomada de consciência (o verdadeiro Profetismo não é catastrofista). O Nabi faz compreender as consequências, falando em nome de Deus – e a palavra de Deus é reversível, não é uma fatalidade. O Nabi diz ao Homem que ele também é um criador. Se o Nabi provoca a crise, se faz terríveis advertências, também constrói e planta, restitui a Aliança e suscita a Esperança, não o desespero.
Toda outra vai ser a posição dos apocalipses e dos autores apocalípticos; neles, o futuro está previsto e é visto como algo que acontece por si mesmo, sem que o Homem o possa impedir. O Apocalipse, que vem através de um canal persa, fala de salvação e descreve uma situação dramática, é uma revelação total e definitiva – surge no contexto do Segundo Templo e do exílio de Israel. O autor apocalíptico não fala, escreve – escreve um futuro pré-determinado, um destino; anuncia que o fim da História está próximo. É um discurso escatológico, um saber sobre o fim; revela o que será esse fim, é uma predição. O Apocalipse sucede à Profecia e substitui a Profecia.
É esse o sentido do texto de Daniel, que será tão citado pelo Padre António Vieira e que ele tanto elogia: Daniel, «um grande profeta», «tem o primeiro lugar entre os verdadeiros profetas, porque é um Profeta dos Reinos e das Monarquias».
Vieira, intérprete do tempo, ao qual chama «o mais certo intérprete das profecias», diz também que o Bandarra é «verdadeiro profeta», «profetizou», e as suas profecias, «já cumpridas», «são mais de cinquenta»; Bandarra foi «alumiado pelo lume sobrenatural, profético.» Mais, o Bandarra é «o profeta para Portugal.»
Vieira vê a profecia, que diz ter-se perpetuado na Igreja, com olhos muito próprios: «Qualquer sujeito, por indigno e indigníssimo que seja, e ainda que careça da própria fé, contanto que seja criatura racional, é capaz do lume da profecia, e de ser verdadeiro e propriamente profeta». Para Vieira, profetizar é anunciar e prever. E os sonhos são profecias, as revelações são feitas em sonhos: «O modo ordinário de Deus revelar as coisas futuras aos profetas ou é por visões ou por sonhos, e de ambos estes modos eram as revelações que Deus fazia ao Bandarra», «intérprete do futuro.»
Por outro lado, Vieira afirma que S. João foi «o último de todos os profetas antigos» e «as profecias do Apocalipse são próprias do tempo que hoje corre.»
É neste contexto ideológico e teológico que António Vieira escreve o que escreveu. Por isso não é de estranhar que, no século XX, Fernando Pessoa, seu discípulo, tivesse lançado o apelo: «Troquemos Fátima por Trancoso.»

terça-feira, 21 de abril de 2009

PENSANDO À BOLINA, 2

Pedro Sinde


O desenho que a vida faz
A nossa vida é um acto contínuo; mas só vista de longe, de um ponto remoto a que dificilmente conseguimos chegar, precisamente porque se trata da nossa vida.
Quando olhamos a vida de uma pessoa no passado ou lemos a sua biografia, podemos ver esse acto único, contínuo. Mas, em relação à nossa, isso é mais difícil, porque estamos tão perto dela que nos aparece como um pontilhado de um quadro impressionista: se visto de perto, não se distingue a imagem lá figurada, mas apenas um conjunto de traços fugazes.

desenho de Albrecht Dürer

Para percebermos o sentido da nossa vida, para vermos a figura que cada gesto nosso vai desenhando subtil ou grosseiramente na tela, temos de encontrar esse ponto de distanciamento (nem longe em demasia, nem excessivamente perto) que nos permita, vendo o que já está desenhado, antecipar a direcção do traço presente. E, no fim, um anjo ou um demónio será a figura final.

Estamos sempre a tempo de mudar a figura toda, porque cada gesto do presente actua sobre todo o desenho do passado. Assim, um bandido transforma a sua vida passada, que mostrava a figura disforme de um monstro, numa figura belíssima de anjo, no momento exacto em que, de uma vez por todas, se arrepende.
texto originalmente publicado no blogue Maranos

segunda-feira, 20 de abril de 2009

NO CORAÇÃO DA ARTE, 1

Cynthia Guimarães Taveira

A Galeria
O pintor foi a uma reunião. Nada mais angustiante do que entrar nessa galeria em pausa entre exposições. Paredes brancas, frias. As galerias são desertos artificiais onde se esperam visões. Por sua vontade nunca exporia ali. Nem iria ali. Têm o sentido do deserto mas não são o deserto. O deserto é quente e as areias mudam de cor com o vento e com o sol. Por que não há galerias com plantas, veludos e sofás? Sim, com espelhos e candeeiros de luz dourada? Quem disse que assim não se veriam os quadros? Quem disse que ficariam oprimidos por outros belos objectos? Se se pinta para acrescentar beleza ao mundo porquê renunciar às outras belezas: espelhos venezianos, sofás com cornucópias em madeira, candeeiros de Lalique, plantas em ascensão, e essa luz dourada das lâmpadas em abajures confortáveis? Não será tudo arte? “Para a próxima vez exponho no deserto”, disse o pintor de si para si, “Perto do sol e do calor e aí beberei champanhe com mais prazer. Talvez, lá, tenha ideias em tons d’ouro”.

domingo, 19 de abril de 2009

AMANHÃ

Estreia. A de uma nova rubrica, No Coração da Arte, da lavra da pintora Cynthia Guimarães Taveira, habitual colaboradora deste blogue e autora do artigo "Coincidências", em Universalidades, primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, que também ilustrou. São cerca de trinta breves reflexões, olhares lançados sobre a arte e o artista, da perspectiva do próprio artista. Com periodicidade semanal, a publicação começa amanhã.

OS POETAS LUSÍADAS, 8

SENHORA DE MARÇO

Chegara Março. Eu via abrir-se a vida
Como uma rosa enfim desabrochada:
A terra, era mais verde e mais florida;
E madrugava mais a madrugada.

Das altas ondas do mar largo erguida,
A névoa se esvaía em luz doirada;
Cada frágua, uma fonte enternecida;
Toda a pomba, feliz e acasalada.

O espírito divino da Beleza
Tinha encarnado em ti, ó meu Amor:
De ti vivia toda a Natureza!

Eu tinha o mundo em mim: em tudo esparso,
Eu era a onda e a ave, a luz e a cor…
- Era o meu coração um mês de Março!

Belinho

António Corrêa d’Oliveira

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 11

[Álvaro Ribeiro, o símbolo e a inspiração]

“Ao verdadeiro artista não se põe o problema de exprimir sinceramente a sua sentimentalidade, mas o problema de constituir imagem sensível de uma realidade insensível. A esta imagem se dá o nome de símbolo. O artista incapaz de imaginar, de verter o insensível no sensível, tem de recorrer a símbolos já feitos por outrem, e tal é o caso quando a escola forma tradição.”

“Chama-se inspiração aquela graça que o artista recebe depois de muito ter exercitado a imaginação. Quem desconhecer os nomes e as significações das nove musas, nunca chegará a compreender o que transcende o valor da obra artística. Inspirada, a imagem simbólica é a revelação do mundo sobrenatural.

Este poder de dar forma ao que ainda não tem forma, este poder demiúrgico, é efectivamente análogo ao poder divino. Lembremo-nos, porém, de que a forma significa o contrário da figura, na medida em que o exterior significa o contrário de interior. Há no instinto algo de que o artista tem de conseguir o domínio consciente para imaginativamente o relacionar com a vida sobrenatural.

Quando a obra de arte representa esse êxito, ela é divinamente comunicativa como nenhuma das mais. Então se pode falar de imaginação criadora, de imaginação que aumenta a realidade, enfim, de ideia. Todo o homem que tal atinge, estremece de paixão, de sentimento e de emoção, como se regressasse ao estado de alegria.”

Álvaro Ribeiro
(excertos retirados de A Razão Animada, INCM, 2009)

sábado, 18 de abril de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 7


LUZ DE CIMA

Como se espalha e vive no Universo
A luz de cada estrela
É que a verdade vem de cada verso
Como eu não desejava merecê-la.

Afonso Duarte

PALAVRAS QUE FAZEM VER, 10

[Álvaro Ribeiro, a Liberdade e o Estado]

“Eliminar a caridade ou os conceitos equivalentes de misericórdia, beneficência e assistência, de entre os fins atribuídos às instituições públicas, eliminá-los por incompatíveis com os meios legais e regulamentares, equivale a limitar a liberdade humana de associação para fins transcendentes e sobrenaturais.”

“Quando, no exercício das suas funções públicas ou da actividade profissional, alguém se recusa a beneficiar o seu semelhante, o seu subordinado, ou o seu inferior, alegando que para tal não lhe foram concedidos poderes, ou que teria de infringir o que está determinado no texto da lei, temos nessa argumentação a prova confirmativa de que das relações humanas vão desaparecendo as virtudes teologais. Quem pensa que as relações entre pessoas devem ser determinadas por semelhança com as relações entre coisas, e assim julga progredir segundo um ideal de objectividade jurídica, nega imediatamente o princípio de individuação, a liberdade do ser espiritual, e os fins dessa liberdade concedida por Deus. Claro está que nos cingimos ao direito público, mas esclarecemos ainda que esta crítica não interfere com as iniciativas de direito particular, nem com as esmolas concedidas a troco de pedidos, cartas e requerimentos, visto que quem humilha, por isso mesmo que humilha, não pratica a caridade.”

“É absurdo pedir liberdade, ou mais liberdade, ao Estado. Só um liberalismo erróneo, expresso em verbos gradualmente afastados da acepção própria, poderia confundir a liberdade com a justiça. A liberdade humana, que é de pensamento e não de vontade, tem origem em ideia superior a todas as categorias sociais”.

Álvaro Ribeiro
(excertos retirados de A Razão Animada, INCM, 2009)

sexta-feira, 17 de abril de 2009

PARA LER


Revelação. Dom Sebastião e Santa Teresa de Ávila foram contemporâneos. Separados pela linha da fronteira, nada, aparentemente, os ligava... A não ser talvez aquilo de que Abdel Hayy nos dá conta em O Lugar da Alma. Um episódio pouco conhecido, mas muito para além da mera curiosidade histórica.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

OUVIR UM IMPORTANTE PENSADOR BRASILEIRO EM LISBOA

Apelo. O blogue Sabedoria Perene, da autoria de Miguel Conceição e Nuno Almeida, que os Cadernos de Filosofia Extravagante vêm seguindo com grande atenção e interesse, está em vias de concretizar um desígnio ambicioso. Com efeito, em resultado de uma inesperada deslocação a Lisboa, o ilustre escritor brasileiro Mateus Soares de Azevedo (na fotografia) predispôs-se a apresentar publicamente o seu último livro, Homens de um livro só, bem como a primeira publicação da editora Sapientia, a tradução por Alberto Queiroz do livro de Frithjof Schuon A Transfiguração do Homem, ambos os livros já abordados no Sabedoria Perene.

Existe ainda a possibilidade de condimentar aquelas apresentações com a discussão sobre dois temas sobre os quais o escritor se tem debruçado recentemente, um primeiro associado ao Esoterismo e ao Exoterismo no Sermão da Montanha e um segundo, com teor algo diferente, relacionado com o esgotamento do papel dos Estados Unidos no cenário internacional e com a função do fundamentalismo islâmico e do sionismo nesse processo (este último tema relacionado com o seu mais recente livro).
A realizar-se, este importante acontecimento poderá ser agendado para o final do dia 30 de Abril. Contudo, os organizadores consideram que apenas se justifica encetar diligências para a sua realização caso se garanta um número aceitável de presenças.
Deste modo, pede-se aos eventuais interessados na realização deste evento que confirmem com a celeridade possível essa intenção e disponibilidade para a data sugerida, através de um contacto por correio electrónico (mfm.conceicao@gmail.com).

Os promotores desta iniciativa agradecem ainda a sua divulgação junto de potenciais interessados no evento, e esperam poder anunciar brevemente informação detalhada sobre a localização e hora deste acontecimento.

PENSANDO À BOLINA, 15

Pedro Sinde

«Deseja tudo o que tens e terás tudo o que desejas»

Um dos padres do deserto – seria?, não recordo – terá dito isto. Esta frase é uma chave para que possamos medir o lugar em que nos encontramos, quer dizer, a distância a que nos encontramos de ser homens mesmo, de reencontrar uma condição que foi a nossa e que temos a obrigação de procurar reencontrar. A evolução é ao contrário: homens que fomos, para animais caminhamos. Estamos demasiado habituados (o hábito que desfaz o monge – o ser unificado, que é o que significa monge) a ver-nos assim uns aos outros e disseram-nos que somos humanos. É verdade, mas apenas em potência; temos condições para nos tornarmos humanos, porque o homem é um ser intermediário entre o divino e o cósmico: alguém entre nós pode reivindicar esta condição real?
Como só desejamos o que não temos, não podemos ser o que desejamos. Felizmente! É que nós não sabemos o que desejar ser…
A filosofia portuguesa dá-nos chaves várias para caminharmos do vale à montanha. Uma dessas chaves é dada por Álvaro Ribeiro, mestre de filosofia, de meditação, de contemplação e de oração (este último aspecto será abordado detalhadamente em livro, se Deus quiser).
É nesse livro luminoso e, por isso mesmo, iluminante, que é A Razão Animada, que se pode aprender, por meditação gradual, a separar a essência da substância, o que somos do que temos. Em gradual destilação de alquimia da alma, separando no misto que somos o superior do inferior, em linguagem hermética que Álvaro Ribeiro traduz em linguagem aristotélica para lhe dar forma filosófica: a essência e a substância.
São estas as misteriosas palavras de Álvaro Ribeiro:
Ao dizer-se eu, ao distinguir a sua personalidade da sua propriedade, cada homem reconhece que no desprendimento se dá um desenvolvimento, e que esse desenvolvimento equivale a uma evolução. Alcançaria a nudez essencial ou essente para que tende o movimento evolutivo, se existente não fosse a mediação do meu.
Estas palavras devem ser lidas em toda a sua realidade vivencial e não apenas como uma abstracção; mais, devem ser meditadas palavra a palavra, porque ali me parecem esconder-se chaves para a nossa salvação. Não, não creio exagerar. Temos, é claro, de ter presente que Álvaro Ribeiro não é o “racionalista” que pintam quantos o querem denegrir, ainda que o elogiando muitas vezes. O papel da razão não pode ser subestimado no seu pensamento, mas também não pode ser sobrestimado. A razão é um meio ortopédico, de rectificação do nosso pensamento e que tem sobretudo a tarefa de proteger o fluir mental dos automatismos mecânicos. O esforço da razão liga-se com a perenidade da consciência. A razão não dá a verdade, mas ajuda-nos a caminhar até ela, como um barco para atravessar o rio – chegados à outra margem, deixamos o barco na margem. Nisto, como em tantos outros aspectos, Álvaro é brunino (lembrar as verdades acima da razão, deste último). Para lá da razão está o intelecto angélico, diz-nos Álvaro Ribeiro, e aquele factor divinizante que é a imaginação. Se é divinizante, isto é, se nos aproxima de Deus, é porque é criadora, poiética, é porque é uma expressão do Criador, é porque é no homem um dos aspectos da imagem e semelhança, à luz da qual o homem foi criado. Estes aspectos afastar-nos-iam das reflexões convencionais sobre a filosofia portuguesa, porque a filosofia de Álvaro Ribeiro, ele o diz, não coincide com a filosofia portuguesa. A filosofia portuguesa pode-se tornar, se não for vivida, se não for vivenciada operativamente, apenas numa coisa que se tem e não em algo que se é. É que nós somos ainda razões animadas ou com alma e não já espíritos angélicos. Mas que, nesta separação entre o que é essencial e substancial, que é condição do caminho para a divinização, que não se arrisque o homem a separar aquilo que Deus uniu, nem a unir o que Deus separou.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

ANOTAÇÕES PESSOAIS, 5

António Carlos Carvalho

Há duas semanas ouvi a curiosa notícia de que ninguém sabe bem a quem pertence um quinto do território português. Dias depois, ocorreu aquela tragédia do terramoto em Itália. E eu pensei: aí está a resposta, indirecta, a essa dúvida portuguesa sobre a posse da terra. A terra, toda ela, aqui, em Itália, no resto do mundo, pertence ao seu Criador. Nós só temos o usufruto disso e de tudo o mais. Fomos colocados neste mundo, que não é nosso, para o guardarmos e melhorarmos.
Tudo o que temos é um dom -- a começar pela própria Vida, obviamente (por isso é absurdo o que se ouve por aí, constantemente: «A vida é minha, faço dela o que quiser!»)
Mas se é assim com o mais precioso, a Vida, então passa-se o mesmo com o resto, menos importante: nós não somos donos, proprietários, senhores de coisa alguma. Tudo o que julgamos, ilusoriamente, ser nosso, «por direito», é apenas um empréstimo, algo de provisório.

Mas claro que só percebemos estas coisas evidentes quando a terra treme e as nossas casas desabam sobre nós, quando de repente nos encontramos sem nenhum dos bens que julgávamos nossos, muito nossos.
Ou quando, no limite, a vida que nos foi dada nos é retirada e partimos de vez, deixando para trás todos os tais bens que julgávamos adquiridos.
Emile Benveniste demonstrou claramente que o verbo «ter» se formou ao mesmo tempo em que a propriedade se instalou.
O Baal, divindade arquetípica da idolatria (contra o qual se levanta um Elias), é etimologicamente o «senhor», mas também «o esposo» e o «proprietário». A civilização ocidental, que se tornou mundial, e que fez da sua História um historial de destruição de bens e de vidas (basta ver o que se passou no século XX), fez do «ter», da «propriedade», o seu ídolo maior. E atribuiu um preço a cada coisa – incluindo a terra, a água, a casa, os alimentos, a saúde, a cultura, os próprios bens espirituais. Constantemente somos chamados a «ter» -- e não a «ser».
Curiosamente, todos os grandes sábios e mestres foram homens que nada tinham, nada possuíam, de nada eram proprietários. Mas que se preocuparam em ser – seres humanos, verdadeiramente.
E foram nómadas, claro. Como cada um de nós o é, na realidade: estamos aqui de passagem, não somos de cá, temos raízes no céu. Quando termina a nossa viagem por este mundo, levamos apenas connosco o que o nosso coração tiver aprendido, por ter sabido dar, isto é, por ter sabido usar bem os dons que o Criador lhe forneceu para essa mesma viagem.

terça-feira, 14 de abril de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 14

Os Cadernos de Filosofia Extravagante*
por Luís Paixão

Não sei se foi de propósito terem escolhido o primeiro dia da Primavera para o lançamento da revista. Se foi essa a razão, escolheram bem; senão, o acaso fez-nos o favor de acertar connosco. Um pouco como as Coincidências referidas no texto da Cynthia; ou como o Rodrigo, quando descobriu e nos transmitiu essa misteriosa e inovadora doutrina do acerto de ritmos que produzem a harmonia, do condiscípulo e amigo de Leonardo Coimbra, Lúcio Pinheiro dos Santos. É pois, com muita alegria, daquela alegria primaveril cheia de promessas e de esperança, que estou hoje aqui para vos apresentar a publicação Cadernos de Filosofia Extravagante.

Independentemente dos colaboradores, dos quais tenho a honra de fazer parte, e do editor, o João Tavares, meu amigo de longa data e de muitas aventuras, não quero deixar de referir um triângulo que tornou possível a feitura desta publicação. O magistério de António Telmo e os dois obreiros cujo primeiro nome é Pedro: o Sinde e o Martins, incansáveis desde o primeiro momento na revisão dos textos, no arranjo gráfico, nos contactos e no acerto com os colaboradores e com a gráfica. Os meus agradecimentos, bem-hajam. Nunca é demais realçar que o fizeram sem qualquer interesse de ordem material, apenas e só por amor à sabedoria.
Entremos agora no miolo d'A noz. Que o mesmo é dizer na substância da revista. Diria na amêndoa e no figo que é o coração e o corpo. Para tanto e para não faltar à verdade socorro-me do texto do António Telmo muito bem escolhido pelo Pedro Martins.

[ler aqui texto de apresentação]

Creio que a extravagância vai mais longe ainda, porque o próprio filosofar nos dias de hoje, e na “terra mais antifilosófica do planeta”, como nos diz Leonardo Coimbra, é também extravagante. É como se fosse a extravagância dentro da extravagância.

Os Cadernos aparecem dentro de uma sequência de várias publicações produzidas pelo - muitas vezes - designado grupo da Filosofia Portuguesa, tuteladas inicialmente pelo magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho e, mais tarde, por Orlando Vitorino e António Telmo. Desde o 57 em 1957, passando pela Espiral, a Acto, a Escola Formal e, mais recentemente, a Leonardo e os Teoremas de Filosofia, que insistem e demonstram que ainda existem pessoas nesta Pátria que pensam em português. Nem sempre concordantes, nem sempre fiéis às teses que foram expressas por Sampaio Bruno e, mais tarde, em 1947, designadas por Álvaro Ribeiro Filosofia Portuguesa, tem havido recentemente uma progressiva exigência de alguns pensadores no sentido de reconduzir este movimento filosófico à sua matriz inicial. Numa aproximação livre e naturalmente subjectiva, vou tentar definir-lhe algumas características:

1º Há uma exigência de crença ou de fé, ou seja, o pensador tem que acreditar em Deus. É como se fosse a letra a do alfabeto da filosofia. Vivemos num mundo completamente ateu e antiteísta.

2º O pensamento é o dado sobrenatural no homem e é a manifestação do espírito em si próprio. Só é possível experienciar esta realidade desde que se pratique a reflexão e a autognose. Num mundo completamente virado para fora é um esforço de heróis.

3º É como se o pensamento fosse uma espécie de oração. Esta noção classifica o pensamento como acto operativo e efectivamente transformador do ser humano.

4º As religiões são, portanto, para serem pensadas.

No nosso caso, o do Ocidente, que é o das três religiões monoteístas e abraâmicas, esta atitude levanta problemas e inquietações em relação às ortodoxias ciosas da estabilidade do dogma.
Por isso, sopra a brisa fresca da heresia e a respectiva condenação em muitos pensadores da Filosofia Portuguesa.

Paradoxalmente, é mais fácil para as igrejas aceitar as doutrinas filosóficas ateias. É como se a filosofia não pudesse conduzir a outro lugar. Só nos resta portanto o pensamento da razão prática: a ciência positiva.

Não percebem os donos da verdade que, para haver um pensamento actual vivo e de esperança, ele terá que se libertar das correntes da razão prática da ciência materialista e do dinheiro, e erguer-se a outras alturas.

O pensamento português não é contra as religiões, antes pelo contrário. Nelas busca a verdade, a beleza e a bondade da tradição primordial.

5º Também há heresia em relação às autoridades da ciência, porque o pensamento não se aceita sujeito à razão científica, e esta, que eu saiba, não tem também incluída a ideia de Deus. Não demonstrou mas virá a demonstrar a Sua Existência. Para isso teremos que esperar pela resolução de uma equação, talvez a do 5º grau.

Agora vamos à capa.

A escolha do belo desenho da palmeira do Carlos Aurélio foi uma feliz escolha, porque ele é portador das mais amplas e profundas significações: a palma de ouro do herói Eneias, a palma do Domingo de Ramos e da ressurreição de Cristo. A configuração das folhas que são semelhantes à coluna vertebral e que remetem, por isso, o seu sentido para a iniciação. A nitidez do helicóide, da sua inserção no tronco.

Esta incidência no elemento vegetal é de altíssimo valor simbólico, porque a semente é acolhida e enraíza na matéria-prima, que, neste caso, é a tradição portuguesa, havendo, portanto, um movimento para dentro, de recolhimento, para só depois se abrir para a Luz.
Esse tronco robusto, com a inserção das folhas em espiral, desenvolve-se abrindo os ramos ao Sol; mas, cada um é, com efeito, diferente, porque recebe a luz de uma maneira diferente, consoante os pontos cardeais para que está orientado. O virado para Sul mais luminoso, o virado para Norte com mais sombra, obscuro. Do mesmo modo são distintas as expressões dos colaboradores desta revista. Completam esta exploração pela flora simbólica as magníficas fotografias dos bosques, das clareiras da floresta apanhadas pelo Tiago Cunha, retratos daqueles belos versos de Dante:

“Da nossa vida a meio de uma jornada
Em tenebrosa selva me encontrei
Perdido era o caminho verdadeiro”

Quem fala em tronco fala em escol, ou escola, em ligação de vários tempos e gerações, e é isso que também se sente pela variação das idades dos autores, entre os vinte e os oitenta anos.


* Texto lido na sessão de lançamento dos Cadernos de Filosofia Extravagante, em 21 de Março de 2009, na Biblioteca Municipal de Sesimbra.

NO PORTO, EM 30 DE MAIO

Porto. A inquietude faz escala na cidade da liberdade. A apresentação de Universalidades, primeiro número dos Cadernos de Filosofia Extravagante, na terra do Infante já tem data marcada: será no próximo dia 30 de Maio, sábado, pelas 21.30, no Clube Literário do Porto, instituição a quem desde já agradecemos o magnífico acolhimento dispensado ao nosso projecto.
Entretanto, a 16 de Maio, será a Livraria Fonte de Letras, em Montemor-O-Novo, a acolher uma outra sessão de apresentação dos Cadernos, em conjunto com a realização do II Simpósio sobre os Teoremas do 57. O início desta sessão está marcado para as 16:30.

EXTRAVAGÂNCIAS, 13

Um Sonho
por Pedro Martins
Desenho: apontamento de Sant'Anna Dionísio

Um sonho havido esta noite, durante o sono, bem entendido: Renato Epifânio convida-me a escrever num próximo número da Nova Águia, e, comodamente, propõe-me o tema, que quase se diria um título: Leonardo Coimbra e o movimento do Y. Num primeiro momento, tomo a proposição como uma charada, ou uma bizarria; logo depois, como um enigma sério, que urge decifrar, imediatamente, ali mesmo, perante o Renato.

Concentro-me na letra: há, com efeito, um movimento no seu desenho, uma árvore, ou haste, que se bifurca em braços, ou ramos. Então, num ápice, como um náufrago que se agarrasse à tábua de salvação, antes de acordar, lembro-me ainda de certa passagem, já celebrizada, do prefácio que António Telmo escreveu para um livro de Pascoaes: Álvaro Ribeiro afirma, em dado momento, que não há uma, mas duas escolas de filosofia portuguesa. Não diz por meio de que pensadores se faz a divisão, mas não estará errado supor que estaria pensando em Sampaio Bruno e em Leonardo Coimbra. Eu vejo, quando evoco estes dois espíritos, a Igreja de João e a Igreja de Pedro perfilando-se no horizonte destacadas uma da outra, mas iluminadas pelo mesmo sol.

A esta luz, que é já a da vigília crítica, o movimento do Y passa por ser o da própria filosofia portuguesa. Suspeito, porém, que as duas hastes venham invertendo reciprocamente a direcção dos respectivos destinos originais, rumo ao infinito da Luz. Não sei, ao certo, que haverá a esperar do seu encontro. Mas o X em que agora estão representadas é um símbolo das encruzilhadas de Deus.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 12

Apresentação de Álvaro Ribeiro aos Sesimbrenses*
por António Telmo

Compreende-se que a organização desta homenagem a Álvaro Ribeiro me tenha escolhido a mim para fazer a sua apresentação, isto é, para tornar o filósofo presente entre nós como um ser vivente e não como forma abstracta de pensamento. Compreende-se, porque de todos os que aqui vêm falar sobre ele e que com ele conviveram eu sou o mais antigo, aquele que durante muitos anos privou com ele e que sempre o procurou seguir em tudo quanto escreveu, embora por caminhos próprios, que não quer dizer que sejam os melhores.

Álvaro Ribeiro é (com Agostinho da Silva) o mais notável discípulo de Leonardo Coimbra. Não o mais notado. O mais notado, embora também notável, é Agostinho da Silva, já um dia homenageado nesta mesma sala. A sua vida decorreu obscura, repartida entre o modesto trabalho de ganha-pão e o estudo, isto é, o desejo que realmente importa satisfazer um dia. Exprimo-me assim, porque estudo, do latim studium, significa o desejo por excelência. (...) ler mais

sábado, 11 de abril de 2009

OS POETAS LUSÍADAS, 6










ANDORINHAS

Voa a andorinha, d’asa em foice aguda,
Corta o ar, sobe ao Céu, e vai e volta;
Não sei de ímpeto audaz que não lhe acuda
No delírio sublime, em que anda envolta.

Juntam-se às vezes numa coorte muda,
E, a um sinal, que uma andorinha solta,
Partem, povo liberto que sacuda
Asas, bandeiras negras de revolta.

- Eh! lá! eh! lá! Oh! andorinha espera,
Pára: que eu vou também, quero emigrar,
Tenho saudades duma nova esfera.

Agora, vá… largai! que além do mar
Abre o seio e sorri a Primavera…
Eia! Andorinhas, é voar… voar…!

Jaime Cortesão

sexta-feira, 10 de abril de 2009

EXTRAVAGÂNCIAS, 11

Santa Liberdade
por Pedro Martins

Como sou jurista, gosto de pensar, porventura erradamente, que o princípio da indivisibilidade da confissão vale também para o domínio da hermenêutica poético-filosófica. No fundo, isto pode querer dizer que nos não é lícito levar em conta no pensamento alheio apenas aquilo que nos agrada ou convém. Um autor há-de valer por tudo quanto disse e escreveu, mesmo que amiúde se contradiga. Lembre-se, a este propósito, o caso extremo, e sumamente inquietante, de Teixeira de Pascoaes, pensador refractário a qualquer cristalização. Não teremos nós de o considerar no desconcerto do seu movimento perpétuo? Creio bem que sim.
Mas, mesmo para Pascoaes, há palavras que são como âncoras. Uma, pelo menos: Liberdade. Não se cansou de repeti-la, numa entrevista que, em 1949, concedeu ao Diário de Lisboa, em apoio à candidatura do General Norton de Matos, contra o regime salazarista. Nela, o poeta distingue a justiça, ligada ao pão do corpo, da liberdade, ligada ao pão do espírito. Aquele deve ser igualmente distribuído por todos; este, consoante o que for do agrado de cada alma.
O entrevistado cede ao prosaísmo quando, logo depois, resolve pôr as coisas por claro:
– Quero pensar conforme as minhas tendências intelectuais e sentimentais ou filosóficas e religiosas. A liberdade filosófica e religiosa é a liberdade suprema.
Só por si, esta última frase seria o bastante para inscrever Teixeira de Pascoaes na lista gloriosa daqueles que, na casa de Portugal, sempre souberam honrar a santa Liberdade. Não vale a pena enumerá-los: estão lá quase todos.
Mas Pascoaes vai mais longe, e chega a afrontar a censura quando explica:
– Necessitamos duma certa desordem na ordem, a respiração do ar, em Abril, que fecunda as plantas, e o bater das asas que andam a construir os ninhos. Desta certa desordem ou liberdade deriva a liberdade política, a formação de vários partidos simbólicos de vários ideais políticos dignos de existir e colaborar no Governo dum país. Um único partido legal tem uma existência passiva e infecunda.
Não se confunda o sonho do vate com a realidade actual, mesquinha e rasteira. Tal como as coisas estão, há sempre um partido único no governo do país.
Na esteira de Sampaio Bruno, seu mestre, que n’O Brasil Mental se declarara “socialista anarquista”, ansiava Pascoaes por um culto cristão que conciliasse a liberdade espiritual, anarquista, com a fraternidade amorosa, comunista. Escreveu-o em A Minha Cartilha, sensivelmente na mesma época em que concedeu a entrevista ao Diário de Lisboa. Tal como Álvaro Ribeiro, o poeta estava ciente de que o filósofo não é um homem de partido, e de que a verdade se divide na concorrência das doutrinas.
Renato Epifânio irá colaborar no segundo número dos Cadernos de Filosofia Extravagante com um artigo a favor do novo Acordo Ortográfico, que já escreveu e deu a conhecer, em três entradas publicadas ontem no blogue da Nova Águia. Mesmo ciente de que, sobre esse assunto, muitos de nós pensam de modo diferente, e até oposto, não deixou de, com galhardia, aceitar o repto, que António Telmo lhe lançou, de defender as suas ideias. Seja bem-vindo.
Na imagem: Teixeira de Pascoaes
Água-tinta sobre papel de António Carneiro